Na Contraluz

Sobe, filho. Olha a aldeia tão pequenina, lá em baixo. Parece um presépio.

A aldeia sempre me pareceu pequenina mas nunca consegui divisar o tal presépio. Talvez porque me recusava a subir a encosta. Ficava na falda da montanha, rente aos troncos das árvores, de pé firme na solidez da terra, sobre o seu tapete verde com salpicos de orvalho e riscos de sombra.

O meu pai com as botas engraxadas, no seu andar pesado, levantava a poeira do caminho. O cachimbo largava nuvens espessas, até ao adro da igreja. Eu seguia, uns metros atrás, de cabeça baixa, a mão esquerda entrelaçada na mão macia da minha mãe e a direita dentro do bolso das calças, dando voltas e reviravoltas à última pedra encontrada nos campos. Conhecia de cor as suas arestas, porosidades, grânulos.

À entrada da igreja, a minha mãe tirava-me o boné e afastava os cabelos dos meus olhos. Eu sentia o calor dos dedos na testa. O sorriso dela e o toque leve dos seus dedos eram as aguarelas que eu teria usado, se fosse pintor. De um lado, eu e a minha mãe. Do outro lado, o meu pai, cofiando o bigode crespo, e o seu bastão, fincado no empedrado. Às vezes, éramos os três, com o bastão pelo meio, contornos desfocados na contraluz.

Julieta Ferreira

111015

As pessoas ardendo pela cidade ou a cidade em fogo nas escadarias de mármore ou a cidade em som movendo-se, agreste ou as pessoas em som, as pessoas a cidade em chamas subindo degraus, as pessoas as ruas compridas sem nome próprio.

As mãos e os olhos, rompendo.

A cidade um sítio  novo, um mundo novo ou a cidade a mesma casa de sempre mas de portas abertas, por isso, as pessoas uma casa aonde regressar ou as pessoas um ponto de partida e chegada.

A boca e o coração na ponta dos dedos.

João Silveira

Ferocidade como entretenimento

Cada vez que assisto um desses filmes coreanos me sinto um tanto constrangido. Perdi muito tempo assistindo a filmes americanos. Essa é a verdade. The Chaser, primeiro longa-metragem Na Hong-jin, é mais um dos grandes filmes da lavra coreana.

Neste  país a polícia é mal paga, corrupta e violenta. Não, não, as semelhanças são apenas uma ilusão, pois estou falando da Coréia do Sul. Num ambiente onde campeia a violência e a corrupção, Joong-ho, o protagonista, tira vantagens do caos. Para seus ex-companheiros de farda ele é um homem de moral duvidosa. Ex-detetive que virou cafetão por problemas financeiros, começa a se irritar com o despareceimento de suas “funcionárias”. Ao tentar rastrear o paradeiro das moças, descobre que todas as meninas tinham sido contratadas sequencialmente por um único cliente, e que tinham sido assassinadas. Ele então forja um plano para pegar o assassino. Joong-ho consegue capturar o assassino e entregá-lo à polícia. Mesmo confessando os crimes, como não há corpos, não há provas materiais contra o assassino, que dessa forma estará em liberdade em 24 horas. Por algum motivo que o roteiro deixa passar, Jung-ho acredita que uma de suas prostitutas ainda está viva. E aí sim começa a caçada, não do culpado mas dos corpos que devem ser encontrados em menos de 24 horas.

Essa corrida contra o tempo dá o tom do excelente filme, até o momento da inversão do “plot”. O prazo se esgota. A polícia, pressionada pelo governador, num momento em que ha uma intensa pressão por parte da opinião publica pelos métodos brutais empregados pela policia, precisa liberar Yeong-min. A procuradoria sugere que um suspeito que confessa sobre tortura pouco melhora imagem da polícia. Para evitar o escândalo político, o governador decide pela liberação do suposto assassino. Enquanto isso, é pedida a prisão de Joong-ho como o bode expiatório de toda a crise. Apesar de algemando, o ex-policial escapa para procurar Mi-jin, uma de suas meninas que suspeita ainda estar viva.

A intuição de Joong-ho é correta. Mi-jin de fato ainda está viva, tentando se libertar das cordas que a amarram em meio aos corpos das outras 11 mulheres assassinadas, escondidas na casa do assassino. Gravemente ferida porém lúcida, Mi-jin escapa e pede auxílio numa loja das redondezas. Tenta telefonar. Enquanto isso o assassino, já liberado, prestes a chegar a casa, decide comprar cigarros exatamente na lojinha das redondezas… Joong-ho chega tarde demais.

O plot se inverte novamente. Joong-ho passa a tentar encontrar novamente o assassino. Desesperado com a morte do que tudo indica ser mais que sua ‘funcionária’, o ex-policial sente-se derrotado. Vai até a igreja local e percebe que a imagem do Cristo crucificado na fachada, era parecida às imagens que viu por trás do papel de parece do quarto onde Yeong-min esteve hospedado. Consultando o diácono, descobre que o assistente da obre da igreja estaa hosedado na casa de um de seus sectos. Joong-ho segue para lá. Quando chega decide não tocar a campainha, mas usar um molho de chaves que retirara do bolso de Yeong-min. Quando entra, depara-se com Yeong-min.

É bastante certeiro que numa sociedade onde campeia a crueza da violência física e sangrenta, a questão da corrupção e do funcionamento do dinheiro sujeita os comportamentos e os sentimentos à sua força mortiz. Neste filme especificamente, descontados o sangue derramando e a brutalidade nos meios de liquidação dos personagens, o protagonista põe em cena arquetipos de toda uma sociedade. Apesar de alguns pequenos furos de roteiro, o filme mostra com certa ferocidade um certo espetáculo de entretenimento onde a noção e o sentido do absurdo se tornam assustadoramente cada vez mais um lugar-comum. Mss estamos falando da Coréia do Sul, lógico.

Francisco Rogido

rogido@hotmail.com 

UM OVO DE AVESTRUZ – (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios – Décimo Episódio

Estrato 1

Ricardina levita na caduquice própria da idade. Da varanda, vejo-a sentada. Vive no inacabado e nos esquecidos. Parente deixou de ser ou mudou de grau. À mercê da obscuridade e dos cabelos brancos. Tem a memória remota discursada como uma fotografia. Nada de passado atualizado, mas passado como foi. Sem as mentiras da vontade. Nunca mais soube da lucidez. Nem na dor nem na alegria. Sentada em uma poltrona de balanço. Nela não habita uma trama linear, mas amarras e nós sorumbáticos. A degenerescência roubou-lhe o direito de assistir pessoalmente às ilustrações externas, convive com novas e estranhas vozes.

— Preciso fazer uma adaptação de William Shakespeare dentro da realidade brasileira.

O sujeito-expectador fala enquanto caminha pela calçada ao lado de Paulo Autran, o personagem delirante vestindo um casacão de tecido cru que cobre parcialmente o coturno de solas altas, lembrando um deus ou herói grego, carregando um texto em inglês debaixo do braço, a responder:

— Ninguém deveria adaptar um autor sem ler e apresentar a peça no original.

— Exagero!

Paulo Autran não responde, olha o homem de algum oco do mundo. Depois, longo silêncio, longo tempo monitorado pelo relógio de Beckett. Até uma música interromper a mudez e a caminhada.

Musicalidades. Estranhos são os sons que o nome Lindsay produz. Ela faz questão de ser chamada assim. O que é de Lindsay? Lindsay é vida. Lindsay espia o pai. Criança ainda apesar de quase adolescente. Em pé sobre um banquinho. Nas pontas dos dedos. Lindsay tem dedos de bailarina. Olhos de boneca. Lindsay planta os sons que vêm do rádio, na alma. Ela percebe que o pai viaja e vai junto. Segue as ondas sonoras como se vasculhasse a escuridão do fundo do oceano. Toca as ilhas que o pai visita como uma aventureira. Moradas existentes nas pausas da fala paterna. Nas válvulas sobre a mesa. Há murmúrios e silêncios dentro das válvulas. Do lugar de onde se ouve as vozes. O pai habitando as margens das linguagens. Lindsay também arrisca as bordas. Lindsay vê no pai outra criança. O pai não teme o erro nem alimenta a ilusão de vida eterna. Faz infinito o segundo. O banquinho balança. Não fosse a janela e a força nos braços…

 

 

(continua)

João Barrento – I

O prémio D. Dinis vai já em trinta e uma edições, uma vez que foi, pela primeira vez, atribuído em 1980. É uma idade respeitável para um prémio que tem distinguido todos os géneros, não sendo esta a primeira vez que o seu júri distingue o trabalho de um ensaísta. Nomes como os de M. S. Lourenço, Eduardo Lourenço e Vítor Manuel Aguiar e Silva, contam-se entre aqueles que o receberam, assim alinhando de pleno direito com ficcionistas, poetas e tradutores. A essa ilustre galeria vem agora juntar-se, muito merecidamente e por deliberação unânime do júri, o nome de João Barrento, o qual, de resto, já estava de algum modo ligado a esta casa, uma vez que prefaciou a colectânea de John Ashberry, Uma Onda e Outros Poemas, editada pela Quetzal em 1992, na colecção «Poetas em Mateus».

A João Barrento a cultura portuguesa não deve apenas um trabalho incansável e rigoroso de tradução, interpretação e divulgação da grande literatura alemã do passado e do presente, contrabalançado pelos esforços que tem desenvolvido com o objectivo de tornar mais conhecida a moderna literatura portuguesa na Alemanha.

Devemos-lhe também, não direi um magistério, palavra que me soa pedante neste contexto, mas, falando mais terra-a-terra, uma interpelação que ele nos faz em termos muito especiais e muito pessoais, e que se tem vindo a exprimir numa obra ensaística vasta e complexamente articulada. Dessa obra são de destacar títulos como A Palavra Transversal, literatura e ideias no século XX (1996), Uma Seta ao Coração do Dia, crónicas (1998) que, não obstante crónicas, não deixam de ter um marcado pendor reflexivo e ensaístico, Umbrais, o pequeno livro dos prefácios (2000), que reúne, nas suas quase 300 páginas, não apenas prefácios de que João Barrento é autor, mas também intervenções e apresentações literárias muito variadas, A Espiral Vertiginosa, ensaios sobre a cultura contemporânea (2001), O Poço de Babel, para uma poética da tradução literária (2002) e, agora, O Género Intranquilo, anatomia do ensaio e do fragmento (2010), causa próxima do prémio D. Dinis que, sendo embora atribuído a propósito de um livro publicado no ano anterior ao da deliberação do júri, se tem vindo a consolidar como prémio de consagração da carreira de um autor.

Basta o simples enunciado bibliográfico a que acabo de proceder para se fazer ideia de que o ensaísmo de João Barrento se desdobra numa grande versatilidade temática, a convocar as mais variadas disciplinas nos seus trajectos multidireccionais. A reflexão de João Barrento abrange e interliga a estética, a cultura, a filosofia, a política, a teoria e a prática literárias no arco que vai dos clássicos aos novíssimos, a ideologia, a questão das vanguardas, a problemática da tradução, a temática europeia e os grandes marcos do pensamento europeu dos últimos 200 anos…

Em O Género Intranquilo, é-nos apresentada uma espécie de poética do ensaio, uma poética no seu elaborar-se, sequência in progress que quer surpreender a sua formação a partir de uma espécie de impulso primordial, de uma solicitação intelectual que emerge da razão, da emoção, das epifanias e das palavras do ensaísta, e avança, na sua luta pela expressão, de uma certa desordem para uma certa ordem, até começar a fixar-se e a sedimentar-se qualquer coisa cuja progressão faz um sentido e este se propõe como hipótese de sentido do mundo, exactamente na medida em que o mundo implica uma necessária refracção subjectiva. De resto, é muito interessante atentar nas pequenas vinhetas que fazem contraponto a algumas passagens do livro. Recordo-me de ter visto algumas — se não eram estas, eram muito pareceidas… — num blogue do autor na Internet. São notas, rabiscos, desenhos, mandalas, fragmentos de textos autografos que dão corpo às imagens da deriva, da procura a partir de um tópico, do ganhar de consistência daquilo que virá a organizar-se como ensaio.

Ao mesmo tempo e por via de metáforas colhidas nos mais variados domínios, do orgânico ao mineral, do animado ao inanimado, do concreto ao abstracto, ao mitológico e ao simbólico, por vezes com processos que se diriam trair o trato continuado que João Barrento com a escrita de Maria Gabriela Llansol, esse olhar sobre o ensaio vai-se construindo como poética do género e vai-se questionando sobre a gestação e o significado do texto enquanto ensaio, ou via tentada para o auto-conhecimento. É, por um lado, uma abordagem de matriz fenomenológica do simples acto de discorrer ou deambular discursivamente sobre alguma coisa e, por outro, uma tentativa — isto é, um ensaio —  de chegar não apenas ao que explicitamente se diz, mas também ao que se implica na parte dos silêncios ou hiatos daquilo que fica por dizer.

Repare-se em dois aspectos curiosos: anatomia do ensaio e do fragmento, diz o subtítulo. Por aí, como que se enlaçam o Robert Burton, contemporâneo de Shakespeare, autor da célebre Anatomy of Melancholy, e Walter Benjamin, um dos principais cultores de um ensaísmo do fragmentário no século XX, a quem João Barrento tem dedicado importantes reflexões.

Mas, e uma vez que de ensaios se trata, o autor não podia deixar de aludir a Montaigne. Quando fala no “trabalho na corda bamba do sentido. Aventura em terreno movediço, exercício de pensar: vacilante, oscilante (…)”, João Barrento tem certamente presente uma formulação do autor francês: “certes c’est un subject merveilleusement vain, divers et ondoyant, que l’homme : il est malaysé d’y fonder jugement constant et uniforme”.

É exactamente nisto que se funda uma «anatomia», isto é, um corte seguido de análise e descrição por segmentos. A anatomia implica o estudo da organização estrutural dos seres vivos e também pode significar a abertura ou forma da boca, dois aspectos que relevam simbolicamente para o a natureza e a formulação verbal do ensaio.

Mas estamos perante uma abordagem do ensaio e do fragmento, que é também devedora de Musil, de Benjamin e de Adorno, ou não fosse o autor um grande especialista do moderno pensamento alemão sobre as artes e as letras e a sua relação com a sociedade e o mundo, com a consciência de que a verdade, se verdade existe, apenas se deixa pressentir, ou entrever, mas nunca atingir. Ou, como João Barrento regista, “(…) a verdade não está atrás do véu. É, quando muito, um brilho que nos cegará”.

Montaigne escrevia em 12 de Junho de 1580, dirigindo-se ao leitor: «C’est icy un livre de bonne foy, lecteur. (…): car c’est moy que je peins. (…) Ainsi, Lecteur, je suis moy-mesme la matiere de mon livre.» Quatro séculos mais tarde, José Saramago viria a recordar esse tratamento de si mesmo como « a substância, a matéria do ensaísta ».

Essa matéria, que no género ensaio costuma surgir por derivas quantas vezes fragmentárias, tem o seu correlativo objectivo noutro passo do escritor bordalês : «chaque homme porte la forme entiere de l’humaine condition» (Les Essais, III, II)[1].

A segunda parte deste texto será publicada a 28/11

[1] Michel de Montaigne, Les Essais, ed. Pierre Villey, Paris, PUF, 1965, p. 805.

“A Bofetada” – Christos Tsiolkas – D. Quixote

“É o mundo moderno, Anouk. Somos todos putas.” Pág. 87

“ A bofetada” de Christos Tsiolkas é um rasgo na realidade do leitor. Há livros assim: Pegam em nós e conseguem sacudir a nossa realidade até à quase insuportável inquietação.

A tensão existe e é mantida desde a primeira até à última página.

O enredo apoia-se em várias perspectivas, numa polifonia, sem perder coerência. A narração adopta, frequentemente, o discurso indirecto livre. A perspectiva associa-se de tal forma ao pensamento de cada personagem que, por vezes, não temos a certeza a quem pertence a voz que “ouvimos”. A linguagem apodera-se da realidade, expressa-se de forma obscena e, por vezes, caricatural. No entanto, poucas vezes é utilizada de forma gratuita. O comportamento das personagens consegue melindrar mais do que o léxico utilizado.

De uma maneira ou de outra, o leitmotiv (a bofetada dada a uma criança) é debatido em todos os capítulos. E é desta forma que o texto não perde a coerência e a leitura mantém-se fluente.

Através dos elos sociais e afectivos, cada um extrai o que precisa sem haver a preocupação em retribuir. Vive-se na Era da “New Age” onde a falência moral é uma realidade e a sociedade segue a ideologia de “Why Not?”.

O churrasco em casa de Hector, personagem que acompanhamos no primeiro capítulo, é o epicentro da falência dos equilíbrios precários que existem entre os convidados. É o único local onde temos as personagens do livro reunidas. A tensão entre os elementos já se faz sentir e continuará em crescendo até ao fim. Percebemos o mundo em que entramos e sentiremos, até ao fim do livro, a inquietação que se instala em nós. A festa é um microcosmos onde a principal filosofia é o hedonismo: A tensão sexual é permanente, a linguagem é obscena, partilham-se drogas sintécticas e leves, bebe-se muito álcool. Na página 40, Tsiolkas, autor e também argumentista como Anouk, parece justificar a opção pela abordagem mais crua e menos poética do texto:

“É televisão, Gary, televisão com fins comerciais- Anouk falou num tom simultaneamente cortante e entediado- Não, as famílias verdadeiras não são nada assim.

– Mas estás a transmitir um corrilho de tretas que depois vai influenciar milhões de pessoas no mundo inteiro! Toda a gente pensa que as famílias australianas são exactamente como as da telenovela!” 

Não são e Tsiolkas demonstra-o neste livro.

A inquietação vai crescendo, as crianças lutam entre si e fazem muito barulho, as divergências políticas, religiosas e culturais animam as discussões, os comportamentos libertam-se com a droga e o álcool até tudo rebentar numa estalada na cara de uma criança. É este impulso, um breve momento de violência, que desencadeia a ruptura entre as ligações familiares e de afecto que ligam os convidados. A partir daqui tudo será diferente.

Família e amigos condenam ou apoiam a acção de Harry, que havia batido em Hugo. Os pais da criança apresentam queixa na polícia e levam o caso a tribunal. Extremam-se posições e as decrépitas ligações entre eles quebram-se.

A partir desta ruptura, o autor leva-nos a conhecer uma sociedade multicultural, onde coabitam várias religiões, nacionalidades e ideologias. Há sentimentos em comum e que são muito bem transmitidos ao leitor: o sentimento de perda, de degradação familiar e social, de insegurança enraizada em infâncias e adolescências problemáticas (alcoolismo, HIV, maus tratos, drogas, jogo, suicídio, abandono…) e que influencia a educação das gerações posteriores.

“ Estes miúdos são inacreditáveis. Acham que o mundo lhes deve tudo e mais alguma coisa. Forma mimados até dizer chega pelos pais e pelos professores e pela porra dos media e acham que têm todos os direitos do mundo e nenhuma obrigação, por isso não têm vergonha na cara, não têm valores nenhuns. São egoístas, umas merdinhas ignorantes”, afirma Anouk criticando indirectamente Rosie, a mãe do rapaz que levou a bofetada.

Há uma latente falência da moralidade, as personagens andam perdidas numa escala de valores que não assimilam. Não sabemos que espécie de moral rege os comportamentos dos personagens, mas sentimos o desconforto por termos consciência que essa imoralidade não existe assim tão longe do nosso quotidiano.

“(…)somos todos putas. Os laboratórios farmacêuticos oferecem-me viagens à borla, para mim e para a minha família, em troca de eu dar vacinas a animais que sei que não precisam delas. É o mundo moderno, Anouk. Somos todos putas.” Pág. 87

O comportamento individual roça a obscenidade e, no entanto, é credível. Estamos perante a incoerência de indivíduos inseridos numa sociedade materialista, longe da Igreja e vencida pela velocidade da informação.

No capítulo onde acompanhamos Harry, adulto que deu a estalada à criança, a aglutinação de tais incoerências está patente em vários episódios. O mais ostensivo é quando Harry vai ter com a amante e imagina estar a fornicar a esposa. Quando termina e depois de consumir algumas linhas de cocaína, dirige-se a casa, dando graças a Deus por ter uma excelente esposa, um filho lindo, uma piscina, cozinha nova, garagem, dois carros, aparelhagem e um plasma. E o exemplo de Harry poderia ser o exemplo de outras personagens que, em muitos casos, comungam casos de infidelidade, intolerância e inadaptação.

“A Bofetada” é um livro extenuante não só pelo volume (537 páginas), mas – essencialmente- pelo desgaste emocional a que o leitor é sujeito. Apetece dizer quando se abre a primeira página “ Deixai toda a Esperança, Vós que entrais”. No entanto, Christos Tsiolkas consegue prender o leitor ao texto até à última página. Não é inteiramente verdade que toda a esperança seja eliminada do livro. Há momentos de catarse, tolerância e aceitação. Quando Richie confessa a sua obsessão por Hector, a mãe reage mal e esbofeteia-o. No entanto, ela reconsidera e afirma “Hás-de apaixonar-te por outros homens e muitos homens por ti” Pag.521

Quando a mãe pergunta a Richie se ele vai tomar drogas num festival de música, ele responde afirmativamente. Iria tomar ecstasy e erva. A reacção da mãe é tudo menos conservadora:

“- Oh, meu amor. – Ela esticou o braço para ele, mas recolheu-o abruptamente. – Pelos vistos, já és adulto” Pág. 528

“ A Bofetada” é desconcertante e merecedor do tempo aplicado na sua leitura. O autor conseguiu criar um mundo estranho, frio e calculista. É um livro perturbador e com uma ostensiva negação do banal.

João do Rio, a arte urbana

Nasceu há 130 anos no Rio, viveu apenas 40 anos e o seu nome quase sem fim (João do Rio João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto) converter-se-ia na simplicidade de João do Rio. Da sua oficina extrai-se a memória do recorte urbano do início do século passado. Mas também a fusão de géneros – na ponte entre o devir jornalístico e o literário – e ainda o modo singular e desinibido com que o autor representou o espírito das periferias (sobretudo numa época em que a marginalidade, o sexo e a cor eram edifícios rígidos).

A liberdade da escrita de João do Rio evoca uma certa ideia de passagem ou de descoberta de um meio – a cidade – para o qual o diagnóstico aventuroso da palavra (e do corpo) encontra um espaço pleno. Uma respiração ávida à procura de si. A Alma Encantadora das Ruas (1908) é um exemplo desta entrega. Como refere João do Rio: “Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua”.

O Ponto de Mira propõe hoje a leitura deste volume. Fica um brevíssimo aperitivo para que outros voos o sucedam:

 

“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:

Je suís la rue, femme êternellement verte,

Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte

Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis

Que ce pénible monde est monde, je la suis…

A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: “Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia”. E Domingos Vieira, citando as Ordenações: “Estradas e rua pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas”. A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações.

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não paga ao Tamagno para ouvir berros atenorados de leão avaro, nem à velha Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário. Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado todo o conforto humano. Dá-lhe luz, luxo, bem-estar, comodidade e até impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão.”

 

(texto integral: http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/a_alma_encantadora_das_ruas.htm)

UM OVO DE AVESTRUZ – (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios – Sétimo Episódio

Perdido 78

A pausa é o porto dos prudentes. Um acaso apaga os registros da criatura viva. Aportar é descarregar as malas, esticar as pernas e pensar oceanos. Incauto quem não aborta para repensar a repetição. Nem tudo recomeça depois de uma boa foda, mas é preciso saber olhar. Cheirar. Tocar. Ouvir. Ouça o que o vento tem a nos dizer. Observe os vermes que nos habitarão no fim. Sinta o mais que puder o odor das coisas vazias. Toque as sombras. Mas cuidado para não feri-las.

 

(continua)

A CRIANÇA CAIU EM ALGUM RALO DA RAZÃO – Folhetim em Oito Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa.- Primeiro Episódio

Ziguezaguear passos, coxas bojudas e calcanhares finos metidos em sapatos vermelhos. Amordaçada pela roupa preta grudada às linhas e um echarpe da mesma cor, com delicadas linhas douradas, enrolado no pescoço. Na noite, rostos são difíceis de ver. A mulher bruxuleia o corpo ao ritmo da droga e de Adios Nonino. Dança um tango no vão do MASP, mãos em carícias no sexo. Ritual de sombras sobre o espelho enegrecido da principal avenida da cidade. Tão forte é a música que mulher acredita segurar um filho. Retorna do delírio assustada e com as mãos vazias. A criança caiu em algum ralo da razão. A lâmina foi acerto de contas. É muito semelhante o lamento da música e a necessidade de justiça. Em algum canto escuro e marginal, há um crepúsculo que alberga museus com esculturas e pinturas de anjos perdidos em porões. Ninguém chora no limite, anestésicos adormecem as interfaces e todos caminham na frouxidão da retina. A cidade não é feita de devaneios ou idéias, mas de caminhares, mecânicos e militares passos.

 

 

 

(continua)

 

 

 

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O leitor compulsivo

Ele tinha o hábito de ler atentamente todas as informações dos painéis que encontrava nas estradas: as distâncias entre localidades, a temperatura do ar, as horas, a propaganda governamental, etc. e tal.

Só refreou esse impulso, quando o seu contabilista o informou das despesas anuais com a reparação do automóvel.

Urbano Bettencourt

UM OVO DE AVESTRUZ – (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios – Sexto Episódio

Movimento segundo

Diante da plateia, um sujeito caminha de um lado a outro, fala de um modo fragmentado, carrega um livro na mão que, às vezes, folheia: trópicos transparentes de deuses embutidos em esgotos a transferir elétrons e irradiar tempestades iônicas no pensamento de homens carentes de chumbo líquido e perdido em viagem cósmica entre migalhas de estruturas barrocas enquanto você nada faz diante das sombras provocadas pela ausência de luz e dos gemidos de gozo e ejaculação que condenam pelo próprio gesto e pensamento tal sujeito duplo ao ver-se imagem atrás do espelho.

Do outro lado do envidraçado, meretrizes fecham contratos comerciais. A droga quebra sequências. Um dedo no gatilho e a bala estraçalha encéfalos. Esfacela pensamentos. Acaba em um milésimo de segundo com a identidade, com os traços de poemas e as ideias que seriam utilizadas em prosa. Pneus limpam as avenidas das marcas de restos humanos. Cedo, tudo recomeçará limpo-sujo, clonado. Não há futuro, apenas o amanhã. E o amanhã não será o futuro, mas somente um passado revisitado. Até a morte, presente de passados condensados. O nada existencial. Não há bibliotecas de memorizados nos pedaços encefálicos esparramados no asfalto. Não há corpo, apenas a mente que cria a ilusão de uma existência. Aqui sentado, na mesma varanda que outros se inspiraram, conto as estrelas. Estranho… Desde criança acreditei que estrelas também adormeciam, mas elas ficam ali, olhinhos acesos, enquanto personagens passeiam em outras madrugadas.

E Lindsay tinha como estrela maior, o pai. O homem que procurava o silêncio nos poros da solidão. No fundo de um terreno. O mais longe possível da casa. Pudesse escolher, moraria no cemitério. Sempre admirou o ar soturno dos coveiros, o sussurro que carregam nos olhos. A pele como papiro. Ouviam os mortos, tinha certeza disso. Deviam atentar… Como fazia para ouvir os sons radiofônicos. Aproximava o mais que podia o ouvido do aparelho enquanto o polegar e o indicador rodavam sutilmente o botão de sintonia, como o ladrão a localizar o segredo de um cofre. Vacante nas sutilezas do tato, cada descoberta de nova ilhota sonora merecia um sorriso e um registro no velho caderno de anotações. Então, abaixava a bandeira do mastro. Durante horas. E voltava a bordejar. Mas retornaria para decifrar os sons estranhos que ouvira.

 

(continua)

Colaboração Literária de Paulo Serra

I

Para dizer quando foi que tudo começou teria que recuar a uma outra vida, não outra encarnação, mas uma primeira fase da minha vida em que tudo era muito diferente. Basta talvez salientar que a verdadeira mudança se deu quando cheguei a este tempo, ou antes, quando voltei a este tempo. Mas acho que a mudança ocorreu ainda antes de ter cá chegado. Na altura tinha vinte anos e tudo se complicara para mim. Diriam que tratando-se de um adolescente as coisas nunca correm de modo fácil. Mas a razão não era essa. Estava no meu 2º ano de estudos na chamada Universidade, que tem o intuito de profissionalizar os humanos numa área específica. Tinha então vinte anos, no calendário terrestre, em que se vive, numa estimativa incerta, no máximo dos máximos, até aos 90 anos. Desde criança que os meus supostos pais se alertaram comigo, visto que eu não procurava a companhia de outras crianças ou jovens como eu. Ficava fechado no quarto, lendo e lendo, por vezes espalhando todos os meus brinquedos sobre a cama e inventava as histórias mais descabidas, de cavalos alados, príncipes desaparecidos que mudavam de identidade, de catástrofes naturais,… . Havia uma sede de saber que sempre me acompanhou, e que era como um buraco negro dentro de mim. Por mais que lesse sentia que faltava algo. Podia ler dois livros num dia, captar alguma mensagem, e ainda assim sentia-me inquieto, descontente, sedento. Por vezes tinha sonos inquietos. Numa dessas noites acordei e alertado, sentei-me na cama. Uma luz muito forte brilhava e pairava no quarto, como uma estrela cujos raios de luz me atravessavam e estendiam-se a todas as paredes, chão e tecto daquele cubículo escuro. Nunca mais me recordei desse sonho. Até por que julguei ter sido um sonho. E para os humanos um sonho não significa o mesmo que para nós, trata-se de um produto do inconsciente, da sua imaginação. Foi só aos 17 anos que descobri livros que falavam de uma corrente ideológica que ressaltava cada vez mais na altura. O espiritualismo. Comecei a ler livros de espíritos, de religiões, de deuses, de interpretação de sonhos, sobre reencarnação, sobre magia negra e branca, romances fantásticos, de ficção cientifica, livros de ciência, de filosofia. A minha sede de saber encontrara uma fonte diferente, de onde eu bebia o que nunca pensara vir a beber. Até por que em criança neguei a existência de qualquer coisa de místico no mundo. Por vezes lembrava-me que poderia haver um ser qualquer que brincasse com os humanos, do mesmo modo que eu construía as tais histórias com os meus brinquedos. Mas achei a teoria do caos muito mais plausível, por que a partir do momento em que ouvi que uma borboleta que batesse as asas em Tóquio poderia causar um furacão na América, achei que nada tinha uma explicação lógica e racional. Acreditava então num Deus, ainda sem nome, visto que todas as religiões tinham pontos de convergência, e ainda assim nenhuma em especial me satisfazia plenamente. Estabeleci, entretanto, um regime diário de uma hora ou mais de meditação. Mas ainda que isso me trouxesse uma profunda paz e alegria não foi suficiente. Essa sede de saber tornou-se numa calma e serena forma de estar e sentir, e numa compreensão e interpretação totalmente diferente da vida. Tudo tinha um sentido, tudo tinha um propósito, tudo transportava uma lição, e todos nós tínhamos um modo de chegar a esse Ser Supremo. Um Deus. Mas ainda assim esta palavra não era a designação exacta. Por que ele era o Absoluto. E Deuses há muitos. Faltava outro nome que o designasse. Mas, se Ele era o Absoluto, talvez fosse impróprio dar-lhe um nome. Colocar o seu nome nos nossos lábios profanos, que por muito que nos arvorássemos, por muito que lêssemos e vivêssemos, ficávamos muito aquém de entender quem Ele era e a razão dos seus desígnios.

Cansado da passividade da meditação, que acalmava os meus pensamentos e trazia energia ao meu espírito, resolvi tentar canalizar essa mesma energia para algo mais do que as querelas da vida quotidiana. Concentrava-me, nunca por muito tempo, pois ficava desanimado e cansado, em objectos, em especial num pêndulo que tinha ao lado da escrivaninha. Mas nunca objecto nenhum no meu quarto se moveu, sem ser sob a acção dos meus dedos.

Até que um dia, depois de um estranho sonho, que eu então já sabia serem recordações das nossas viagens astrais à quarta dimensão, tudo veio. Mas esquecido o sonho, só me lembrava de uma frase.

O Oculto chama agora por ti.

Mas, como se me castigasse, o Oculto entrou de rompante. As suas manifestações fugiam ao meu controlo psíquico, e descontrolaram a minha vida e tudo aquilo que me rodeava.

  II

Sem sequer me concentrar, bastava ter o pensamento disperso, dar a ordem mental, ou irritar-me, e as pessoas viam uma série de coisas inexplicáveis acontecer. Porque raras vezes aquilo que eu julgava ser o Oculto se manifestava quando eu estava sozinho. Não conseguia estar entre uma multidão. Nem mesmo podia estar sentado num café com os meus amigos. Num exame também tinha medo de encarar o professor e de escutar as perguntas que os meus colegas lhe faziam. Podia ouvir os seus pensamentos. Tão audíveis como se a pessoa pronunciasse essas frases pelos lábios, elas invadiam-me o cérebro sem que eu pudesse fechar a minha mente a essas interferências exteriores. No autocarro então era um ruído insuportável, desde o cantarolar do condutor até às fantasias que chegavam ao obsceno de certos rapazes, tal como o desfiar crítico e  intriguista de certas raparigas. Contudo havia vezes em que esse dom se tornava uma benção. Permitia-me ajudar as pessoas, nem que fosse ao dar-lhes um leve sorriso. Vezes houve em que deixei amigos desconfiados. Mas nunca lhes poderia contar. Se quando eu antes falava do espiritual já me ouviam com alguma condescendência, como se eu contasse um conto de fadas muito bonito, mas completamente descabido, o que me diriam quando lhes dissesse que lhes lia os pensamentos? Claro que não estava no tempo da Inquisição, mas havia diversas instituições de saúde mental.

Mas ainda que eu não lhes quisesse contar, eles perceberam.

Perceberam quando as luzes das salas de aula começaram a apagar e a acender e as lâmpadas estalaram. Quando as cadeiras e mesas se afastavam, arrastando-se sozinhas no chão, conforme eu passava. Quando as coisas que estavam sobre a minha mesa saltavam disparadas. Quando, ao chegar atrasado à paragem, o autocarro, já a arrancar, parou, e com os pneus a chiarem e a deitarem fumo, deixando traços negros como carvão no asfalto, o autocarro recuou vários metros e as portas e janelas abriram-se, ficando toda a gente abismada. Mas os humanos têm uma capacidade incrível de não aceitarem aquilo que vêem. O motorista contactou a central e disse que tinha uma avaria na viatura, mas a verdade é que o autocarro estava a funcionar perfeitamente, tanto que o motor trabalhou e pudemos ir para a Universidade.

Comecei a ver vultos brancos a passarem na minha frente, como uma mancha de luz, demasiado esbatida mas inegavelmente real. Sentia presenças em torno de mim, às vezes sentia a minha própria mão a ser puxada e os dedos estendiam-se para o vazio. Mas eu combatia essa força. À noite tinha sonhos estranhos, mas quando acordava não me conseguia recordar. Por vezes saía do corpo, sem sequer me aperceber como o fazia, e outras vezes, julgando que estava fora do corpo quando, na verdade, estava completamente presente na minha forma física e atravessava paredes e portas e dirigia-me de um local a outro só de pensar nele. Os meus pais olhavam-me assustados, e obrigavam-me a ficar em casa. Mas da primeira e única vez que me trancaram no quarto consegui que a fechadura estalasse e a madeira da porta estilhaçou-se. Felizmente nunca pensaram chamar exorcistas ou psiquiatras. Muito pelo contrário. Chamaram uma médium curandeira, foi assim que lhe chamaram.

III

O seu nome era Maysa. Não estava muito confiante na eficácia da sua ajuda mas achei curioso ela não ter falado em preços quando os meus pais lhe ligaram. Disse que primeiro gostaria de estar comigo e depois veria qual era realmente o meu problema. A minha mãe falava em Poltergeist. Na verdade, era o que fazia mais sentido. Um espírito ou uma força poderosa, quem sabe demoníaca, que me queria usar e provocava todo o tipo de fenómenos em meu redor. Mas eu não confiava totalmente nessa hipótese. Não acreditava que fosse nenhum demónio nem achava que fosse uma força que provocasse os ditos fenómenos, pois era eu mesmo que provocava algumas das situações.

Como quando rebentei a porta, ou quando fazia implodir objectos de vidro, chamava pássaros e outros animais que me obedeciam, quando lia os pensamentos das pessoas e conseguia fazer-lhes que me obedecessem. Mas sentia-me desconfortável. Sentia que não estava certo, e no entanto fazia-o impulsivamente.

A Dona Maysa veio num Sábado, o nosso sexto dia da semana e o primeiro dos chamados fins-de-semana, quando certos sítios como a Função Pública fecha para descanso do pessoal. Mas calculo que vocês saibam tudo isso, pois afinal devem ter estudado a história do planeta Terra, exactamente como eu também a estudei. Curioso, colocar as coisas nestes termos…

Ela era muito morena, não muito alta mas bonita e elegante, com uns pequenos olhos castanhos sarapintados de dourado. E essas pequenas gotas de mel é que davam brilho aos seus olhos. Vestia branco, umas calças e um lenço de renda preso na cintura, com uma blusa branca de decote acentuado, onde se espalhavam grossos fios de búzios e num delicado fio de prata pendia uma pirâmide de cristal. Percebi que a minha mãe já a conhecia, mas pediu-lhes para fecharem a porta e nos deixarem a sós. Ela sentou-se ao meu lado sobre a cama. Cruzei os braços, depois voltei a descruzá-los e pousei as mãos sobre as pernas.

–                      A minha mãe disse que podia ser um Poltergeist.

 Ela deu uma gargalhada rouca.

–                      Mas eu também disse que não era nada que se pareça. Fala-me do que tem sucedido.

–                      Bem, que posso dizer? Por onde começar? O curioso é que algumas das situações sou eu que as provoco, enquanto outras fogem completamente à minha vontade. Por exemplo, rebentei a porta quando os meus pais me proibiram de sair de casa. Mas fechei-me voluntariamente neste quarto há uma semana e, entretanto, as portas e gavetas dos armários aparecem abertas. Como é que eu paro isto?

–                      Rapaz rapaz. Essa não é a resposta. Sabes que podes controlar isso? Já o tens feito.

–                      Claro. Por exemplo, na telepatia. Antes parecia um rádio que apanhava todos os canais na mesma onda, agora consigo aumentar e baixar o volume, além disso foco-me numa onda de pensamento de cada vez. Percebe?

–                      Óptimo. As vozes podem enlouquecer-nos. Quando desata tudo a falar ao mesmo ao tempo e o barulho é ensurdecedor. Sentimos o mesmo do que eles, até nos apagamos perante eles, confundimo-nos com eles.

A minha mão agarrou a sua pequena mão morena e magra.

–                      Como sabe?

–                      Querido, eu sou bruxa, esqueces-te! Foi por isso que me chamaram cá. Bem, na verdade fui eu que cá me trouxe, fazendo com que me chamassem.

–                      Não estou a perceber nada.

–                      É natural. Mas vais perceber.

Levantou-se e contornou a cama. Abriu a porta direita do roupeiro, exactamente a porta que tinha incrustado um espelho de corpo inteiro. Foi quando ela me chamou com a mão que percebi que ela já sabia que estava ali um espelho.

–                      Esta superfície não é das mais puras e adequadas para este trabalho, mas acho que estás preparado e precisas de compreender o que se passa. Talvez as coisas pudessem ter decorrido doutra forma. Mas não. O plano divino está certo. Aconteceu tudo exactamente como é suposto. Eu é que ainda não consigo entender todo o padrão. E também te vai custar algum tempo. Mas agora calo-me, pois as palavras só te afastam mais do entendimento e da verdade. As palavras apenas servem para nos confundir e fazer perder.

Ela soltou a mola do fio de prata e depois colocou a pirâmide no centro da testa, enquanto o delicado fio a coroava preso na nuca.

–                      Olha-te ao espelho.

Era um pedido difícil. Gostava tão pouco de me olhar ao espelho que receei que este fosse estilhaçar-se, tal como a porta.

Mas lá estava eu. E não parecia tão feio como pensava. Tinha uns delicados traços, um perfil grego como o das estátuas. A pele era escura, bronzeada. Os meus cabelos caíam em longos cachos encaracolados e espessos sobre os ombros. Uma massa de cabelo escuro e revolto. Mas os olhos… os olhos eram inquietantes e contrastavam com aquela perfeição, com aquela quase beleza. O meu olho direito era de um azul profundo, quase lilás. E o meu olho esquerdo era amarelo, cor de mel.

Na Idade Média era um motivo mais que suficiente para me queimarem na fogueira, pois era a Marca do Demónio. Enquanto que hoje em dia era simplesmente aflitivo quando as pessoas me fitavam nos olhos e se apercebiam. Sentia-me ainda pior do que se tivesse olhos tortos.

–                      Os teus olhos são lindos. Tu és lindo. Porquê essa mágoa?

–                      Não consigo… gostar. Acho que foi justamente por estes olhos que nunca namorei.

–                      Não. Não foi por isso. Houve muita gente que gostou de ti. Mas tu nunca te apercebeste.

Paulo Serra

LOTE 19 (I)

No terceiro andar do lote 19 um homem cospe nos livros de filosofia da sua biblioteca pessoal. Após cuspir, dá omoplatas às lombadas e tende para a cozinha. O homem concentra-se no essencial. Tem fome. No lava-loiça lava um quilo de batatas. Diz, Platão filosofou porque tinha a barriga cheia e criados que descascavam batatas. Pega na faca. O tacho com água. As batatas entram no tacho. A cozinha tem um fogão equipado com dois bicos a gás e uma placa eléctrica. E a questão vital com que este homem se defronta a cada dia é: ao usar o fogão para cozer batatas, gasto luz ou gás? Onde conseguirei poupar? O homem está desempregado. Cuspiu nos livros de filosofia. Nem a longitude do pensar, nem a lentidão, fazem parte das prioridades do mundo ultra moderno. Já ninguém coloca questões como: será a vida apenas um constante fazer cemitérios? Colocam-se outras, essenciais: gás ou luz?

Sandro William Junqueira

Ele há prémios…e prémios

Há uma estranha tendência – pelo menos é o que me parece – em torno dos prémios literários em Portugal. É verdade que somos um país pequeno, mas os prémios parecem uma pescadinha de rabo na boca. O júri, do qual faz parte Vasco Graça Moura, atribui o prémio a Luísa Costa Gomes. O júri, do qual faz parte Luísa Costa Gomes, atribui o prémio a Vasco Graça Moura. Os dois, fazendo parte de um júri, atribuem o prémio a António Lobo Antunes… que, verdade seja dita, ao menos nunca faz parte de júri nenhum.

Quanto à tradução, que todos os anos faz chegar às livrarias a esmagadora maioria das obras, o falido prémio do PEN Clube era entregue – e talvez continue a ser, não sei – mas o envelope ia vazio, era um prémio só para o currículo, mas não para a carteira. Claro que, como todos sabem e eu já aqui repeti vezes sem conta, os tradutores não comem.

Em boa hora, contudo, a Casa da América Latina decidiu premiar a tradução de obras oriundas da região e, neste caso, com dinheiro dentro do envelope: sete mil e quinhentos euros.

Se aquando da publicação de 2666 de Roberto Bolaño logo defendi que Artur Guerra e Cristina Rodriguez mereciam um prémio de tradução, imaginem qual não foi a minha alegria ao vê-los efectivamente recompensados pelo seu fantástico trabalho pela Casa da América Latina. A mestria de uma tradução feita a quatro mãos e quatro olhos, mas apenas a uma voz, e o labor que representa a tradução de uma obra daquela dimensão, ela própria com diferentes registos, perfeitamente entrecruzados, mereciam ser reconhecidos e foram-no de facto.

Refira-se o facto de a Quetzal ter confiado a Artur Guerra e Cristina Rodriguez a tradução de toda a obra de Bolaño, pelo que, se houvesse um prémio para a materialização de um escritor nos seus tradutores, eles seriam sem dúvida contemplados.

Peço desculpa, mas tenho de fazer uma ressalva: Vasco Graça Moura faz parte do júri, mas isso para o caso não interessa.

Maria do Carmo Figueira

A cidade tem outro calor

A cidade tem outro calor. As ruas enchem-se de uma forma estranha e há burkas e miúdos com piercings e coisas do género. A mulher não arrasta a adolescente pela mão porque não existe isso entre elas: o verbo arrastar, o dar as mãos. Dão as mãos à noite, antes de dormir. De resto estão uma com a outra, lado a lado, uma mais à frente, a outra ao telemóvel, uma a ver um livro, a outra a jogar numa consola portátil. Uma adolescente e uma mãe ou duas mulheres, depende do entendimento. Há coisas, pequenos gestos, em que são iguais, mas isso não lhes é evidente. Não são o espelho uma da outra e encaram-se com pensamentos secretos. Cada uma pensa: a cidade tem outro calor. Mas não dizem nada uma à outra.

Patrícia Reis

UM OVO DE AVESTRUZ – (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa – Terceiro Episódio

Capítulo XXVI

Non-sense 1

Há um longo silêncio de espera. Nem sossego, nem paz, nem calma. Aflora o vazio, a agonia do nada. Espreita-se. Como faz o lobo no final de tarde. Então adormeço a tarde e acaricio a noite, como a criança, um pai violento; convulso.

 

(continua)

Companheiros da noite

Naquele tempo os porcos morriam ao nascer do dia. Sob um céu de estrelas ainda, iam os rapazes chamar os parentes e amigos que ajudariam na matança. Ao Roberto e ao seu primo Jaime coube-lhes acordar o velho Augusto, que antes costumava aparecer como vagabundo e pedinte vindo da Ribeira Grande, mas que agora dormia numa antiga moagem onde um tio de ambos o acolhera, dando-lhe comida a troco de pequenos serviços.

Toda a higiene matinal do velho consistia apenas em calçar as botas. Sentou-se na beira da cama, estremunhado, e pegou numa delas. Num gesto calmo, que facilmente se percebia ser um hábito de quem sabia o que era preciso fazer, voltou-a com o cano para baixo e sacudiu-a com delicadeza. De dentro dela saiu então, sem pressa, o companheiro das suas noites de solidão. Um rato.

Daniel de Sá

O Filho de Mil Homens de Valter Hugo Mãe … e … A Educação Sentimental dos Pássaros de José Eduardo Agualusa

Valter Hugo Mãe

«O Filho de Mil Homens»

Alfaguara

Valter Hugo Mãe está de regresso ao romance, género a que parece agora devotar-se a cem por cento, ele que começou pela poesia, que debutou na escrita a querer fazer-se poeta. Pois bem, é o romance que mais reconhecimento lhe tem granjeado, sobretudo desde a distinção com o Prémio Saramago, sobretudo, diria, depois de «A Máquina de Fazer Espanhóis». Agora, o livro é outro, «O Filho de Mil Homens», a temática geral não se afasta muito do que vêm sendo as suas preocupações enquanto escritor  atento ao mundo à sua volta. Uma vez mais, são as margens da sociedade que lhe interessa reflectir, as margens e os seus «marginais», leia-se os mais desfavorecidos, os excluídos, os ostracizados, os desprezados, os esquecidos. As minorias, tenha-se, tendo em mente que muitas minorias fazem a maioria, como o escritor, em moldes similares, terá expressado.

De escrita e leitura escorreita, a golfadas de capítulos que quase per si encerram múltiplos contos, sempre numa toada declaradamente poética, sempre com bastante musicalidade, este romance lê-se de uma assentada, ganhando-nos rapidamente pelos personagens que o habitam. Personagens do lado do coração, por dentro do sangue e da carne, personagens palpáveis, cheias de vida e sentimento. Personagens também frágeis mas que se tornam grandes pelo avançar nos dias difíceis – os livros de Valter Hugo Mãe estão cheios desta gente heróica que se faz grande na sua aparente pequenez. Aqui há o pescador Crisóstomo cuja alma «incompleta» lhe pesa fundo por não ter um filho na dobra dos quarenta anos, há o Antonino maricas que parece não encaixar na vida e no seu pequeno mundo, há o Camilo filho de uma anã com «voz de passarinho» que morre ao dar à luz, há a Isaura, senhora de todas as dores e precipícios, há Matilde, mãe de Antonino, o rapaz coisa que se calhar houvera melhor ser virado a varapau para se virava homem como os homens e não como esses que um dia ainda hão-de ter filhos pelo cu.

São, como se adivinha, páginas impregnadas de muitas emoções, sentimentos cruzados que destilam muito do que atravessa ainda a mentalidade portuguesa, aqui retrógrada, ali inquisidora, ao fundo discriminatória, e nisso este livro é muito acusatório, mesmo que tudo nos soe a um sorriso nos lábios – que não passa, contudo, de um ácido e subterrâneo apontar. Mas há também um outro lado, o lado da felicidade, aquele que Valter procura nos interstícios da podridão e da desdita, a felicidade que o escritor decidiu haveria de conceder ao seu Crisóstomo. Nada mais nada menos que pôr-lhe um filho ao caminho, não como pedra, antes como dádiva. Dádiva, é disso que se trata, porque a literatura deve ser lugar de todas as esperanças, lugar de conserto do desconcerto do mundo, lugar de ajuste, de justiça, mesmo que fictícia, mesmo que ficcional. Porque se em alguma coisa podemos ainda acreditar é na capacidade redentora dos livros, e este livro parece apostado em gritá-lo.

 

José Eduardo Agualusa

«A Educação Sentimental dos Pássaros»

D. Quixote

São contos, senhores, são contos, e muitas histórias contadas. Histórias com estórias dentro. Histórias com pessoas, com anjos, com demónios. Histórias de um tempo ontem, de um tempo hoje, de um tempo sem tempo. Histórias que partem da realidade para subvertê-la, permitindo ao autor dizer-se «nas tintas para a realidade». Há realidades que chocam, que ferem, que matem, que são feias, realidades a preto e branco, sem cor, com os ditadores gostam ao ponto de proibirem arco-íris. Em «A Educação Sentimental dos Pássaros» (belíssimo título) há, sobretudo, histórias, histórias muito bem escritas, muito bem, se se quiser, congeminadas. Histórias com estórias dentro, estórias de ver, andar e contar, resultado de vivências autorais muitas, no triângulo-mapa que lhe é reconhecido: Angola, Brasil, Portugal.

Uma vez mais, José Eduardo Agualusa respiga nesta colectânea de contos, díspares no tempo e nos meios em que foram sendo conhecidas, personagens singulares, cheias de maravilha e encantamento. Um homem chamado Escuridão, um ascensorista outrora engolidor de facas e não só, um homem que à noite se transformava em tubarão-martelo, um pintor que um dia ouviu dentro de si uma porta a ranger-lhe o nome Alá, o filho de um Presidente ditatorial que subterraneamente, via Internet, incita à revolução contra o progenitor, anjos que se recusam a voar sem asas, outros que duvidam das suas asas Made in China, ou ainda, entre outras, uma Hillary ou um Jonas Savimbis, estes, quase motu próprio, por via dos seus destinos, alcandorados à condição de personagens maiores do nosso tempo histórico.

Como se adivinha, por detrás de todas as estórias, fábulas e parábolas (uma dia ainda algum estudante universitário se doutorará com uma «Dissertação em Torno da Importância dos Pássaros na Escrita de JEAgualusa»…), o que se joga em pano de fundo, no entrelinhas e alinhavar dos enredos e ficções, é aquilo que desde sempre tem enfermado a escrita de Agualusa: o Homem. O homem enquanto bicho capaz de amar e de apreciar o belo (as mulheres bonitas surgem sempre ao fim de uma linha nas suas histórias, surpreendentemente vindo amiúde a sentar-se com o autor numa esplanda), o homem enquanto animal capaz do mal e do ódio. É de poder, no fundo, do seu exercício – não raro impune, e em desmandos insuportáveis (vejam-se aqui, por exemplo, as denúncias lembradas das mortes perpetradas a mando de Savimbi, esse «pai dos mortos») –, que aqui se trata e lê.

Mas é também, e por oposição, talvez por veleidade de contraveneno, de um sorriso nos lábios da escrita, ou aos seus pés, que devemos também falar após leitura destes contos. É que Agualusa doseia como poucos o apontar de dedo, a denúncia política (no que sobressai também a sua vertente de escrita jornalística e cronista), com um prazer de escrita (dele e nosso) plasmado numa boa-disposição e humor recorrentes. No fundo, Agualusa é um escritor que olha a realidade do ponto de vista da sabedoria maior, feita de vida e testemunho, aquela que já conhece a máquina-(bicho)-Homem por dentro (o seu «aspecto enganador»…) e sabe que nada há a fazer para obstar à sua animalidade congénita e visceral. Talvez por isso o riso, o riso com última instância, instância de resistência, tal como a crença nas mulheres, na Mulher, tal como, acredito, a crença na escrita e no poder dos livros. Quanto a Deus? – que sim, também entra nestas páginas: ficamos a saber que é brasileiro e que já nada o incomoda – facto em si extremamente incomodativo…

Pedro Teixeira Neves