RAIMUNDO | CONTO VIII | COLECTIVO NAU | Sónia Alcaso

Dizem que Raimundo conhecia muito mundo. Era um artista e, também dizem, que os artistas na medida em que pisam o chão e aspiram à eternidade é com os homens que têm de lidar e quantos mais homens conquistarem mais alto chegarão. Mas, e isto sou eu que digo, há saltos bruscos que os fazem perder o pé e quem nunca se teve firme, ao debruçar-se nas ameias de um qualquer castelo, atirar-se-á dali abaixo.

Conheci Raimundo pobre. Fomos amigos de infância e juventude, em Cuba, no Alentejo. Já em menino, Raimundo passava a vida a mentir, e a mentir bem. Era uma criatura estranhamente cativante. Quando aprendeu a ler, começou a decorar as histórias que lia e passava os dias a representar. Desde cedo, soube o que queria fazer na vida.

Trocou Cuba por Lisboa para estudar teatro e, quando saiu do conservatório, já estava noutra volta do caminho; tinha agora o melhor do seu lado: a técnica, a arte e a teimosia para vencer.

No início olhava com a mesma desconfiança as asas do futuro e os tamancos do passado, mas as oportunidades criaram-se e Raimundo tornou-se num grande actor. Actuou em palcos portugueses, russos, alemães, franceses e até foi a Hollywood. Vestia a pele dos outros e encantava a plateia com as suas representações. No seu carácter, na luz dos seus olhos, nas suas falas, estava uma força maciça e soberana, irresistível, disputada por grandes encenadores de teatro do mundo inteiro.

Mas, digo-vos agora: aquele à-vontade que toda a gente julgava ser um dom, na verdade era uma pobre defesa. Raimundo era um dos seres mais frágeis que existiu à face da terra. E não resistiu a essa malfadada meretriz, às graças da qual poucos escapam – a vaidade. Sim, asseguro-vos que a vaidade é capaz de destruir um homem. Raimundo tornou-se cego e obstinado como uma varejeira infernizada contra uma vidraça. Bastaria, talvez, ter um momento de serenidade e em qualquer fresta da janela poderia estar a liberdade. Mas, não! O demónio da mosca continuou a teimar, arreliando todos com o seu zunir e… zás.

O declínio de Raimundo começou no dia em que recebeu o primeiro não. Noites a passar em claro cenas inteiras e, no fim, foi preterido por um actor mais novo. Caíram sobre ele mil argumentos confrangedores.

Esse peso, Raimundo, está acima do pretendido!

É inútil combater a idade, Raimundo!

A tua memória já não é como era, Raimundo! 

Raimundo, com 70 anos, ainda não era convidado a aposentar-se, mas já não servia para a grande maioria dos papéis. E, esse facto, era para ele causa de mil inquietações.

Um actor é cheio de artifícios, tanto poderei ter 30 ou 50 anos, tanto mais que sou um actor de teatro, visto ao longe.

Já estás desactualizado, Raimundo, a arte tem esse preço! Sem atraiçoar o passado, recolhe o que ele tem de eterno e retira-te dignamente.

Não, a cena final, em que desanda tudo numa choradeira de funeral, ainda não chegara para Raimundo. Estava-se nas tintas para as tretas filosóficas e as opiniões dos outros e dizia a alta voz que, desde que o money circulasse, tudo se poderia comprar. Até uma personagem. Tornou-se ainda mais combativo, a berrar de um lado, a gritar do outro, com iguais doses de ousadia e pretensão. Seguiram-se muitas derrotas e desilusões. A exaltação foi dando lugar ao ridículo e até alguns dos seus inúmeros admiradores começaram a olhá-lo de soslaio. No palco, o corpo deixou de lhe obedecer; os músculos que lhe exigiam firmeza, amoleciam, a voz enfraquecia, a inspiração faltava-lhe. O mundo pedia a Raimundo para se retirar, dar a vez aos próximos, talvez voltar a Cuba e reencontrar a própria alma no chão que o viu nascer. Mas ele recusava-se a envelhecer como mais um ser incolor e anónimo. E continuou a somar frustrações, a embrenhar-se pelos atalhos negros da perdição. Era doloroso ver as mazelas de um grande artista assim expostas! Onde antes havia uma imagem luminosa, existia agora uma caricatura disforme e aterradora. A fortuna foi esbanjada em sexo e álcool; os casamentos-relâmpagos com jovens oportunistas sucederem-se. Até não sobrar nada. Até nem sobrar homem.

Dizem que Raimundo conhecia muito mundo. Duvido que o mundo o reconheça agora. Há quem diga que o viu, há pouco, numa rua de Lisboa, de mão estendida, com o sorriso habitual, de ironia, a almofadar-lhe o orgulho. Outros garantem que anda pelos jardins do Júlio de Matos, a declamar o Rei Lear. Já eu, iria jurar que o vi no Castelo de São Jorge, debruçado nas ameias, a olhar o longe e a deixar a alma, finalmente serena, sair do peito e voar feliz por baixo das nuvens.