O QUINTO RAIMUNDO | CONTO V | COLECTIVO NAU | Pedro Almeida Maia

 

 

Dizem que Raimundo conheceu muito mundo. Aliás, muito mais do que meio mundo, embora ninguém soubesse como nem quando, já que sair da Cuba alentejana era um feito que só podia suceder no anonimato. O bigode delgado dava-lhe um ar latino, os olhos rasgados instigavam frieza e via-se o rir da pele, mas ele era um miserabilista obstinado. Vivia em função da probabilidade da próxima desgraça.
Naquela tarde chuvosa, decidiu entrar na biblioteca da freguesia que o viu nascer e crescer. O sítio fedorento nunca viu mais do que três visitantes juntos, a não ser no feriado municipal, quando uma dúzia de fregueses, sempre os mesmos, os Oliveiras, traziam os lanches da festa e enfardavam ali, longe dos olhares famintos do resto da vizinhança. Costumava ser uma festa de galinhas.
A paz reinava nas prateleiras poeirentas dos escaparates. A empregada de limpeza mascava pastilha elástica e usava perfume de água de esgoto. O bibliotecário era um homem na casa dos cinquenta, com aspeto de quem só lavava o cabelo quando a viscosidade ganhava cheiro. Só tinha olhos para um jogo de cartas solitário. Raimundo interrompeu a cartada e desejou boa tarde. O rececionista retorquiu com um suspiro e um olhar por cima dos óculos baratos.
— Procuro um livro — Raimundo puxou de um papel e desdobrou-o. — Este, se faz favor. É de uma edição limitada.
Os óculos do bibliotecário posicionaram-se a meio caminho do papel e depois voltaram ao encontro do visitante. Ele fitou Raimundo com uma expressão de quem está a decidir se devia torturá-lo naquele momento ou de madrugada.
— Deve estar por ali — e apontou duas vezes. — Por ali.
— Não pode verificar aí no computador? É porque preciso de….
— Estou sem sistema — o cinquentão impaciente fez um estalido com a bochecha e levantou as sobrancelhas. — Lamento!
Raimundo pensou em retaliar. Quis sorrir, mas ficou-se por um esgar. Tinha a habilidade de andar descalço sobre brasas de chantagem, mas era tão otimista que a sua maior expetativa para o futuro era que não chovesse no dia seguinte. Rodou nos calcanhares, contrariado, e seguiu para um dos corredores mais compridos.
Quando o cheiro a água de esgoto ficou mais forte, sentiu um puxão na camisa de flanela. Era a empregada de limpeza, abraçada à esfregona, pedindo com os olhos para ver o papel. Raimundo acedeu, mas as palavras gatafunhadas no pedaço rabiscado deviam estar enfeitiçadas, porque a mulher arregalou os olhos de tal maneira que pareciam estar prestes a saltar-lhe. A princípio, a cara dela mostrava mais espanto do que uma máscara de comédia. Até tinha parado de mascar a pastilha. Depois, quando levou a mão a coçar o cabelo basto, viu-se que aquilo era só dúvida, mais nada. Até que soltou-se-lhe a língua.
— Não sei porque há de querer este livro. A minha irmã, uma vez, leu uma história desse escritor e passou um mês a chorar. Não consegui animá-la, nem com panquecas! Coitada. Ela perdeu o marido dois anos depois de casar e não chegou a engravidar. Ela queria um filho e uma filha. Um casalinho, que é o que a maioria quer. Coisa simples, parece, mas não é! Além de ser difícil arranjar um marido como deve de ser, decente, com dois dedos de testa, ainda é preciso fazê-lo trabalhar na cama. — A mulher fungou e preparou-se para retomar a dança com a esfregona. — Nem sempre aconselho as pessoas, mas, como é para si, não me deixa outra hipótese. Escolha outro. — E calou-se.
Raimundo não queria acreditar em nenhuma mosca que saísse pela boca da empregada, mas acabou por insistir na localização do livro. Só recebeu dela um levantar do queixo em direção ao corredor seguinte. Percorreu o labirinto da galeria, tão linearmente como quem atravessa uma rotunda. Avizinhou-se de uma estante, baixou o olhar e meteu-se de cócoras. O sítio tinha de tudo um pouco, como uma farmácia do século passado. E o que ele procurava estava ali.
A lombada era de um verde-escuro, grossa, cartonada, arredondada e gasta, de acabamento pouco moderno e com letras vermelhas em relevo. Era um daqueles livros que profetizam o romance maléfico, que cheiram a couro podre e têm os cantos das folhas amarelecidos. Pesava pouco mais do que um dicionário breve e a história acabava na página trezentos e tal. A contracapa tinha um parágrafo acerca de uma viagem e a capa não parecia diferente das novelas inglesas de há quatro décadas.
Raimundo sentou-se em frente à mesa de leitura mais distante da receção. Viu as teias de aranha nos cantos da abóbada central, cheirou o mofo que o cercava e ouviu o ranger das madeiras antigas. Depois, apreciou o olhar feroz do bibliotecário e o desprezo com que a empregada de limpeza o fitou. Voltou ao livro e abriu-o. Para Raimundo, o tempo tinha parado. Estava entre o tique e o taque. Pronto para viajar outra vez. Ia conhecer mais mundo. Dizem que ele conheceu muito mundo.

Texto por: Pedro Almeida Maia