Gente de meio palmo

A mãe fazia panquecas. As crianças – a filha e os primos – olhavam e esperavam. Ou esperavam enquanto olhavam. Disse ela: “Há pessoas que gostam de panquecas com chocolate…” Respondeu a filhita, três anos ainda incompletos: “Eu sou pessoa.”

Daniel de Sá

A correcção e os novos fascismos

A “Gherush92”, ONG italiana que colabora com a ONU em matéria de Direitos Humanos, considerou recentemente a Divina Comédia de Dante uma obra “ofensiva e discriminatória” e pediu que fosse retirado do currículo das escolas italianas, ou pelo menos adoptado com extremos cuidados, porque os jovens – dizem – não têm “filtros” para descodificarem o texto.

De acordo com estes senhores da “Gherush92”, a obra – cito – “difama os judeus, retrata o Islão como heresia e, além disso, é homofóbica”. É claro que mais uma estéril polémica foi criada com este episódio, havendo gente (dir-se-ia normal, sem pretender ofender seja quem for) que reagiu em defesa da obra.

  Se a história da literatura fosse passada por este crivo – descobrir laivos de racismo, islamofobia, antissemitismo e anticristianismo –, creio que ficaríamos reduzidos às obras (ditas ficcionais que agora se vendem muito) dos apresentadores de televisão. E a ONG ficaria contente a par de todos os novos partidos da correcção que dão corpo à vaga fascizante que parece estar, a pouco e pouco, a tomar conta do planeta.

Diz a presidente da dita cuja ONG, Valentina Sereni, que “a arte não pode estar acima das críticas”. Perguntamos nós: e as almejadas ‘proibições’ de todos os textos mitológicos, para já não falar da literatura – sim, pois os mitos atentam à “humanidade” com “H”… muito grande –, estaria acima de qualquer crítica?

O curioso desta patologia contemporânea que defende proibição atrás de proibição é que ela se assemelha em tudo ao dogma. Diga-se que o dogma, figura central de todas as religiões e de toda a intolerância, não pôde nunca competir com a capacidade quase infinita de reinvenção que é própria dos mitos (facto que Blumenberg tão bem explicou). Enquanto o dogma se pretende como resposta a um conjunto de interrogações fundamentais, previamente dadas, não admitindo, pois, a necessidade de outros questionamentos posteriores, o mito deixa-se trabalhar quase indefinidamente. O mito, tal como a sua filha mais ‘mal comportada’ – a literatura – não precisa de responder a perguntas, na medida em que imagina algo antes que a pergunta sequer possa surgir. A ficção que se antecipa à correcção e que arrisca a – livremente – metaforizar o mundo.

Sublinhe-se a reacção de pessoas como o escritor e crítico literário Giulio Ferroni – citado pelo Expresso* no mês passado – que considerou as declarações de Sereni “um frenesi de correção política somado a uma falta absoluta de senso histórico”, acrescentando que a Divina Comédia “precisa de ser lida no seu contexto histórico”. É o mínimo que poderia ter sido dito.

*http://expresso.sapo.pt/divina-comedia-considerada-uma-obra-ofensiva=f714541

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Quinquagésimo Quinto Episódio

Cena 3

Para tristeza da mãe, Lindsay cresceu igual ao pai. Não tinha interesse nem pela televisão nem pelos livros. A menina-moça gostava mesmo era de ouvir rádio. Rádio de válvulas. Lindsay não deixava escapar qualquer casa de antiguidade. O primeiro salário foi gasto na compra de um rádio igual ao que o pai usava em suas viagens. A mãe reclamou, mas a filha aprendeu a ouvi-la como uma sintonia distante e desinteressante. Com a idade, Lindsay apegava-se mais ainda aos estranhos sons vindos do estrangeiro. E Lindsay, tão logo pode, montou outro barracão no fundo do quintal. Diariamente, logo após o jantar, dirigia-se ao lugar. O caderno com anotações e que a mãe nunca soubera, facilitaram as viagens aos mundos desconhecidos. Um dia, Lindsay sintonizou o pai, era dele a voz… Mas foi muito rápido. Com sutiliza tentou novamente um contato, mas não conseguiu. Aguardaria. Naquela noite Lindsay não dormiu de tão ansiosa e feliz. Ninguém acreditaria que experimentara contato com outra dimensão, nem os físicos, teóricos do tal chapéu mexicano. Nem a tia metida em Alan Kardec.

 

(continua)

Meus queridos estranhos

Manoel foi e continua sendo o grande amor da minha vida. Único, não tive outro. Até recentemente, quando ele disse que precisávamos conversar. Estranhei, ele estava calado, sério, sombrio. Outro homem, de repente. Fomos jantar fora.

Assim que entramos no restaurante, sentamo-nos de frente um para o outro. Havia um branco em seu rosto. Senti a angústia chegando, sei bem como vem, pressão, aperto, quentura, como se fosse uma pata de elefante estacionada no peito. Manoel me olhava com firmeza; essa coisa terna, de uma hora pra outra, sempre me deu medo. Acho que depois de voz baixa e doce, vem a crueldade. Girando o gelo no copo, e me encarando no fundo do olho, Manoel disse: “Quero me separar.”

Pela primeira vez senti morte instantânea. Me vi despencaando da janela e caindo feito puzzle na calçada. (Quem sabe compondo na eternidade uma paisagem tranquila?).

Lívia Garcia-Roza

O cineasta

Nos degraus da igreja, de capuz sobre a cabeça, o cineasta bebe um vinho claro, espraia os olhos pelo arraial.

As raparigas passeiam e riem-se. Outros dormem à sombra das árvores. A aldeia é pequena. Vendem-se alhos, pimentos, sorrisos. À beira água, uma donzela penteia-se, os cavalos bebem, um anão chapinha. Cabras, ovelhas, joanas por toda a parte.

O cineasta sorri. Por entre as ruínas observa o rosto das donzelas, a postura dos estropiados, as manigâncias dos pedintes, os sorrisos comerciantes.

João Pedro Mésseder

Esse sentimento vem

“ As girafas passeiam-se ao fundo do cérebro”

Esse sentimento vem-me por ver a sua esparsa barba sobre a pele negra, a pedir a ponta dos meus dedos. Procuro-o, para só olhá-lo. Gasto horas nisso. Está mal vestido. Dedico-lhe tardes, meia confundida entre os ramos dos arbustos, a segui-lo nas suas tarefas no quintal. Ele carrega tábuas de um lado para o outro. Decoro-lhe os músculos dos braços a falarem do peso da madeira e o suor devagar nas fontes. Aproximo-me do sítio onde descarrega as tiras compridas e sento-me perto. Ele pergunta se estou boa. Não lhe respondo com palavras porque tenho de fixar a sua voz, como se a fosse desenhar a seguir. Olho-o tanto que fico a pensar se não vai ficar gasto, por minha causa. Não sei como lhe vou dizer, que me leve com ele. À tardinha parte rua fora como uma ave num céu demasiado grande, numa das mãos cansadas um saco de coisas, pequenos brinquedos, coisas de nada e de que se ri, quando lhas mostro entusiasmada antes de lhe entregar a bolsa. Não lhe ofereço nenhum livro, tenho medo que não saiba que fazer com isso. Talvez ficasse a pensar que não sirvo para ele, não por ter esta brancura, mas por causa de ir à escola. Quem me dera deixar de saber ler, de repente, para não ter estas aflições. Como se consegue isso? Gosto do seu cheiro forte. Encho muito os pulmões ao seu lado, a fingir que brinco.

Gabriela Ludovice

Malditos Latinos Malditos Sudacas

O livreiro uruguaio Javier Molea chegou a Nova York há alguns anos sem esperar que no seu destino estava abrir um espaço cada vez maior para a literatura íbero-americana na cidade.  Nas prateleiras da livraria McNally & Jackson no Soho, encontram-se livros muitas vezes exclusivos e de pequena tiragem, literatura pura.  Semanalmente, Javier recebe autores para conversas informais assim como lidera leituras de contos em espanhol aos sábados e um encontro mensal no estilo book club sempre regado por vinho argentino ou chileno.  Sobre as cadeiras dobráveis e, por vezes, insuficientes para o número de pessoas presentes, encontram-se poetas, escritores e leitores para discussões descontraídas e fervorosas como pede a cultura latina.  Trazemos ao PnetLiteratura, uma breve entrevista com o meio-ambientalista dos livros e também escritor, Javier Molea:

Qual a receita para a sobrevivência dos livros de papel e da livraria?

La única receta es seguir apostando a los principios de una librería independiente, esto significa un trabajo de curaduría constante, una mirada diferente e independiente (de la industria y de la Academia) del artefacto llamado literatura, nuevas formas de ordenar la tradición que conducen a nuevas formas de leer; y además reafirmar el espacio en la librería como foro público retomando una vieja tradición del vivaz surgir de la burguesía: una relación horizontal entre Académico, Escritor, Crítico y Lector.

Como você vê a evolução do mundo editorial na próxima década?

No veo una evolución porque lamentablemente la Academia va a seguir insistiendo en ciertos patrones de lectura, esto es, micropolíticas y, como todas las prácticas institucionales, va a crear su objeto en lugar de explorarlo.

Rescato el efecto Bolaño, la producción de Aira, Molloy, Chejfec y Cozarinsky en Argentina; Castellanos Moyá; y si bien la Granta en Español ha causado algo de revuelo, es un nivel muy desparejo y no veo alternativas literarias fuertes, en todo caso, Carlos Labbé asoma como una figura a tener en cuenta. En poesía está pasando el efecto anti-neobarroco y espero que se revalúe ese proceso, la práctica de Mónica de la Torre resulta de lo más interesante.

El experimento de España en literatura fantástica y para adolescentes no parece levantar vuelo, pese a los presupuestos publicitarios invertidos .

El comic y novela gráfica pueden ser la nueva gran veta de la literatura en Español .

Quais as tendências da literatura latino-americana que desponta em Nova York?

Creo que Nueva York es un reflejo de toda la literartura que se produce en Español, no creo que exista una tendencia predominante vinculada o ensortijada en el aura de un escritor en particular o grupo de escritores; esto es, no creo que exista una literatura neoyorquina en español; en todo caso,en la producción literaria de los escritores puertoriqueños se puede verificar una particularidad por razones históricas, linguísticas, políticas.

Me puedo animar a conjeturar que la literatura en español en la ciudad oscila entre la propuesta de Antonio Muñoz Molina y la de Diamela Eltit, dos ideas de la literatura igualmente válidas aunque contrapuestas.

E a literatura fantástica tem sucessores?

La literatura fantástica en Español es un género bastante pobre, me gustaría rescatar a la argentina Angélica Gorodischer que sigue produciendo. El resto es mayormente un producto de España para españoles, sin mayor suceso visible en este país o Latinoamérica. Sigue siendo Borges, Bioy, Cortázar, Sommers, Vicent.

O boom literário do século passado ainda surte efeito no processo de criação de escritores em língua espanhola?

El problema del boom es la dificultad de los escritores en español de diferenciarse de ese fenómeno editorial, justamente porque el público en inglés o bilingue es lo que consume, el publisher y el editor van a tratar de enmarcar la obra en la tradición de García Márquez y Vargas Llosa (los dos Nobeles); más interesante resulta el efecto Bolaño, o sea el inicio de otra tradición donde acumular escritores. Demás está decir que el boom debería ser analizado nuevamente para validar su lugar y real importancia en la tradición, lo mismo que Bolaño. Me llama muchísimo la atención de todos modos algunos intentos de diferenciación de Bolaño, presentarse como el anti-Bolaño; este súbito envejecer de un escritor que no lleva 10 años muerto,  parece ser el nuevo nicho que un grupúsculo de escritores quiere explotar justificando que el Bolaño que se consume en Estados Unidos es una manufactura de la industria editorial de este país. Lo chistoso es que parece obviar las maniobras publicitarias de otros (todos)  mercados en Español.

A arte da descrição – II

O espaço pré-moderno era a representação de um propagar sem fim, de que o plano de Leibniz é, porventura, a derradeira versão orquestral. O espaço moderno resulta do recorte levado a cabo sobre essa substância considerada infinita, embora apeada da figura divina.

O figurino moderno foi codificado variada e disciplinarmente e reapareceu através de uma linguagem arbitrária que se desenvolveu entre a cartografia experimental marítima, a invenção da pintura dessacralizada dos países baixos de seiscentos e a aventura de fixação espacial enciclopedista/iluminista de setecentos. Locke havia referido o essencial quanto a estas linguagens: os signos que fazem a linguagem não são, de modo nenhum, a cópia da realidade, criando antes a sua disposição e lógica próprias.

A fotografia surgiu, no início do séc. XIX, como uma linguagem que representa o espaço, reinventando-o através de um espelhamento que sugere a ideia de motivação (como se fosse conatural a relação entre representante e representado). A história da fotografia tenderá a provar que a linguagem é sempre autónoma em relação ao que ela mesma suscita, independentemente das similaridades perceptivas e das tentações referenciais.

O espaço desenvolvido por dispositivos como a lanterna mágica e o cinematógrafo foi, na sua essência, o espaço fixado pela fotografia. Em alguns casos, este espaço tornou-se em lugar na medida em que se conformou com a experiência diversa e particular de pessoas concretas (apesar da extrema codificação, já em meados de oitocentos, por exemplo na tradição de Disderi).

Esta noção de espaço fez – e faz – também o seu tempo na literatura. Um tempo apeado do tempo, pois a representação do espaço tende a criar perenidade no seio do excurso literário. Veja-se, por exemplo, o modo como Fialho de Almeida retratou Cesário  Verde*. Note-se sobretudo a forma como a pena descritiva se apropria do real para o reconfigurar e reinventar de raiz, emprestando à circunstância do imediato – e à experiência concreta da observação – a autonomia que Locke, no livro IV do Essay Concerning Human Underestanding (1690), já havia consagrado:

 

“Alto e mui grave, vestido de azul e com um colarinho voltado sobre uma gravata escarlate, tinha bem a figura do carácter, e não se podia mirá-lo sem logo lhe ver, na ingénua arrogância, o quer que fosse do ser filtrado misteriosamente por uma estranha e aristocrática selecção. O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loira, rosada de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinham a expressão profunda, rectilínea, longínqua, que a gente nota nas dos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões.”

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*Retrato de Cesário Verde escrito por Fialho de Almeida provavelmente no ano de 1882», Colóquio-Letras, nº. 93, Lisboa, F.C.B., 09/1986, p. 15.

Santas ou vilãs?

Sentaram-se as duas senhorinhas, o corpo de uma encostava no vestido de poliéster da outra, sobre o banco em frente à entrada da estação do subterrâneo. No colo, cada qual possuía uma pilha de panfletos impressos Jesus Hoy e sorria aos passantes sem parar. Desde que lhes retribuí o gesto pueril, seguem-me.  Avisto-as do canto da janela de casa, donde me fazem refém.

Kátia Bandeira de Mello Gerlach

Intermezzo

Possível que ainda exista; espectro, enredado em sombras, mimetizado em tons de verde e seca palha. A mata fechada.

Custa-me crer que eu tenha sobrevivido pejado de sonhos e os desvarios santos sem medos adjacentes. Os desvãos da memória. É só um descuido e me envolvo em maus presságios.

Ernane Catroli

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Quinquagésimo Episódio

Perdido 103

(ao ouvir o tiro, a polícia invade o recinto, liberada pela policial das amarras, a mulher corre na direção do homem caído no chão, ao redor uma poça de sangue, acomoda sua cabeça no colo, não precisaria perguntar: Você está feliz? Está bem? O silêncio respondia por ele…)

(continua)

Efeitos da Fórmica

O silêncio escorregava como verniz pelas paredes de fórmica.  A cabeça se partira ao meio porque ele deixara a porta do armário aberta e ao erguer-se do piso onde limpava um ovo derramado, fragmentara-se, como a gema.

Kátia Bandeira de Mello-Gerlach

A Arte da Descrição

A arte da descrição nem sempre é valorizada. A febre do ‘plot’ e a indução narrativa – a mesma que defraudou as expectativas oníricas iniciais do cinematógrafo – sobrepõem-se praticamente a tudo. Os editores prevêem sempre a qualidade e a intensidade de uma trama realizável, a par de uma linguagem capaz de imprimir individualidade e diferença, mas não receiam – diga-se a verdade – a falta de descrição como critério também relevante.

 

Contudo, a percepção de atmosferas, a construção do corpo e a efabulação espacial incorporam modos essenciais com que nos detemos na vida, à margem do rio da diacronia. Esta doce ilusão de perenidade é um esteio fundamental de resistência existencial e é também um dos modelos de fundo que sempre imergiu e emergiu na literatura. Como se dessa condição de quase cristalização do ser, a palavra literária brotasse à procura da sua fonte precisa.

 

Deixo um exemplo com mais de setenta anos de vida, escrito pelo punho de Teixeira Gomes em Carnaval Literário, e que retrata o interior de um café como quem olha para dentro de uma chávena à procura de magia na singularidade deixada pelo acaso das borras:

“Juntavam-se diária e infalivelmente no «Martinho» três tipos extravagantes e de tão singular aspecto que me inspiraram a curiosidade, em mim rara, de saber quem eram. Sobretudo depois de os ouvir, uma vez que abancaram na minha vizinhança. Após várias referências a brilhantes façanhas donjuanescas, falaram do Fialho e percebi que colaboravam no trabalho acintoso da horda então amatilhada para o desprestigiar, pretendendo mudar-lhe o antigo ceptro literário em mísera cana verde.

Um deles tinha a cara completamente hirsuta de uma tal rigidez de coiro que lembrava um ouriço cacheiro com um par de óculos escanchados no lombo.

Ao outro bailavam-lhe os ossos na pele, que pendia e se ajuntava, sem consistência, para onde o corpo se inclinasse; no rosto franzia em pregas à roda do queixo, e nas mãos os próprios dedos pareciam metidos em tripa seca.

O terceiro, de estatura extremamente exígua, os olhos mortiços, as feições angulares, o crânio desconforme e abaulado, ameaçando com o seu peso desequilibrar toda a máquina corporal; de todos o mais desdenhoso, mas levantava-se precipitadamente da cadeira, apenas assomava à porta do «café» algum figurão de importância, e corria-lhe ao encontro para lhe apertar as mãos entre as suas, cujos dedos mordiam como turqueses de caranguejo.”

(M. Teixeira Gomes, Carnaval Literário, Portugália Editora, Lisboa, 1960 – 1ª edição: 1939)

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Quadragésimo Nono Episódio

Cena 2

Estou em um corredor escolhendo a roupa que vou colocar. Atravesso a porta e estou em uma espécie de baile. Passo pela multidão e chego em amplo espaço. Parece uma praia. As pessoas estão comendo em uma mesa colocada na areia. São antigos amigos da faculdade. Dou um murro em um deles. Ele se levanta para brincar comigo. Rimos… Corro para o mar. E nado… Nado… Nado… Afinal, onde me encontro?

 

(continua)

Trevas

Na escola, foi difícil manter‐me atenta. O dia despontara a cheirar a Primavera. Sabia as estações pelos cheiros e pelas luzes ou trevas que perpassavam nos rostos dos que via, nos lugares por onde passava. Nessa manhã, não consegui decifrar a ausência de claridade nos olhares dos senhores de fatos cinzentos e gravatas de nós apertados com as faces muito bem barbeadas e cheirosas onde faltavam as marcas da juventude e de beijos. Traziam consigo sorrisos sem graça e não era capaz de os adornar com palavras ou ideias, como se lhes faltasse uma história.

Olhei a nuca escura de Irménia, sentada à minha frente, o cabelo muito preto, de trancinhas a desfazerem‐se, os ombros encolhidos e os cotovelos pregados à carteira. Houve um instante em que o pescoço dela parecia não suportar a cabeça e metade do rosto lançou‐me um grito estrangulado. Eu não podia fazer nada. Ali não se tratava de a salvar das palavras açoites ou dos gestos desprezo dos outros meninos que queriam vê‐la lavada da cor com que nascera. Até o nome lhe dificultava o resgate da sua condição de mestiça. Irménia das Dores era um nome que pesava como as pedras que escondiam tesouros no quintal da patroa da mãe, para onde eu e ela corríamos, nas tardes mornas de Verão. Era um nome curto mas molesto que tolhia os passos da Irménia e a impedia de fugir das mãos sebentas e ávidas do tio com pele de marfim que visitava a mãe, nas horas ociosas de domingo. Só eu sabia das suas dores. Dores que não tinham a ver com o apelido ou com o seu fraco estômago. Sabia mas não compreendia, naquele tempo em que procurava desesperadamente reter a minha inocência.

Julieta Ferreira

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Quadragésimo Oitavo Episódio

Cena 3

Lindsay descansa na rede.

 

Desmemória 2

Se invadirem, morremos os dois, mesmo você não tendo culpa alguma. (O homem movimentando-se, agitado, com o revólver apontado para a própria cabeça, parando diante da mulher.) Esperem! Se invadirem, eu atiro, mato quantos a arma permitir. Quem chamou a polícia? Vamos! Diga! Filhos da puta! Vizinhos só servem pra isso, bisbilhotar a vida alheia. Se for para flagrar a queda do outro, melhor ainda! Deve ter sido o Jarbas, vive espiando pela fresta da janela. Vai ver tem alguma coisa com você… O sujeito não faz nada, gigolô de luxo, a mulher trabalha e ele usufrui. Além de ter casado com uma mulher rica. Não via a hora de o sogro morrer. Demorou, mas partiu. Vai ver, além de tudo, sou um corno. Só me faltava essa… Trabalhando que nem um burro enquanto a mulher esquenta o pinto do vizinho. Se não foi ele, foi sua mãe, vi quando cochichava no telefone Ele está muito mal, não sei o que vai ser daqui pra frente… Que frente? Um sujeito que não tem passado pode viver no presente ou futuro? (batem à porta, ele aproxima-se dela.) Porra! Esperem! Vou avisando, se invadirem eu mato e me mato. Não custa nada… É só apertar o gatilho… (vai até o espelho onde para e se olha) Vamos! Vamos, seu covarde! Atire! Por que esse apego à vida se nem pode dizer se foi feliz e se está bem? (vai até a mulher) Você sabe o quanto fui covarde! Não! Não vou deixar você aqui… Usufruindo depois de minha morte. Não! Vamos os dois! Nem que um siga para o céu e o outro para o inferno. Mesmo não tendo culpa alguma! Eles precisam acreditar que me matei por outra causa que não a minha própria incapacidade de viver. Dizerem na rua que o bem sucedido empresário se matou por causa da mulher é mais digno do que afirmarem que era um louco varrido. Por que pararam de bater? Pensam que me enganam! Ah! Não! É claro que não! Sei que estão aí, conheço essas técnicas para cansar o sujeito. Perdem tempo… Sem essa de conversar! Nada de papo-furado. Mato e me mato! Estou avisando, não tentem nada! (longo silêncio) Vou resolver isso… É só movimentar o dedo…

 

 (continua)

Grande reportagem

Creio que, nos últimos tempos, tenho beneficiado um pouco enquanto editor da putativa falta de espaço para reportagem – ou para alguma profundidade narrativa, digamos assim – no nosso jornalismo impresso.

Desconfio sempre dessas generalizações sobre o jornalismo porque, normalmente, são proferidas por quem desconhece em absoluto o funcionamento da imprensa, as suas limitações e os desafios que lhe são colocados para ir ao encontro daquilo que os leitores pedem. O desconhecimento não torna as críticas menos legítimas, apenas menos consequentes. É um pouco como protestar contra a falta de dinheiro em Portugal. Não serve de grande coisa.

Eu, que sempre me considerei um repórter, mesmo quando passei muito mais tempo dentro de uma redacção a distribuir instruções a jornalistas do que na rua a recolher histórias, sou insuspeito para falar do assunto – mas não verto uma lágrima. Há menos reportagem nos nossos jornais e revistas? Provavelmente, sim. Mas isso não significa que, nas redacções, tenha desaparecido a vontade de sair para a rua, investigar, recolher testemunhos, registar ambientes e contar histórias fora da agenda. Até porque muitos jornalistas – novos e velhos – não concebem a profissão de outra forma. E, para esses, os livros podem ser uma boa saída.

Por isso, até ao Verão, irei publicar uma obra do jornalista Ricardo Marques (Expresso) capaz de tranquilizar quem teme pela morte dos repórteres – e da reportagem com profundidade e substância. Trata-se de uma reconstituição minuciosa de uma parte da nossa história que continua na mais completa obscuridade: as campanhas portuguesas no Norte de Moçambique durante a Primeira Guerra Mundial. O tema foi explorado por João Paulo Borges Coelho no romance O Olho de Hertzog (Prémio LeYa 2009), mas praticamente ignorado pela não-ficção portuguesa.

Os Fantasmas do Rovuma tem todos os ingredientes para ser um sucesso editorial, desde logo a tensão dramática de uma guerra travada no coração das trevas pelos nossos antepassados. Resta saber o mais importante: se o público concorda comigo.

Francisco Camacho

Bico-d’-obra (1)

I   Bico-de-Arabesco

espio uma ruela p’lo canto do @

lá fora um vaso espreita a flor

não me voa o ciúme na pena da cola

quem me quer amar daqui para fora?

[1] in Bicos-d’-Obra.

Micro-bio-grafia  de Sofia Semper: ave rara, debicadeira aqui e acoli, escrevinhadeira e eterna procuradoira de sonhos. Nos tempos livres, não coleciona penas: escreve sempre a fisgá-las e desenha escapatórias.

Bico-d’-obra (1)

II  Bico-de-Pena

solta a pena que há em ti

Sofia Semper

[1] in Bicos-d’-Obra.

Micro-bio-grafia  de Sofia Semper: ave rara, debicadeira aqui e acoli, escrevinhadeira e eterna procuradoira de sonhos. Nos tempos livres, não coleciona penas: escreve sempre a fisgá-las e desenha escapatórias.

Balaboosta

Sob o fumo azul das respirações, os pratos corriam de boca em boca. O corpo é coisa monstruosa, pele com visco, vísceras das quais a balaboosta fazia cozido na panela de pressão.  De arrebentar o ventre nos partos dos filhos que engordara, de enjeitar os corpinhos cartilaginosos num amanhecer, de acordar com as mãos cheias de escamas, penugens e sangue, de torcer o pescoço de frangos lacrimejantes, a velha não sentia nojo de nada, salvo da colônia after-shave do finado incrustrada em cada criatura parida.

Katia Bandeira de Mello-Gerlach

Lou Andréas-Salomé

Dela disse Nietzsche, um dia, ser “de longe, a pessoa mais brilhante que conheci”. Se a afirmação é ou não verdadeira tal não é pertinente, antes revela claramente o fascínio que a figura desta mulher exerceu sobre os intelectuais mais importantes da sua época, como Nietzsche, Rilke e Sigmund Freud. Na figura de Lou confundem-se a personagem histórica e a lenda. A biografia escrita por Stéphane Michaud procura esclarecer os contornos que constituíram a personalidade controversa desta mulher que foi romancista, poeta, ensaísta, psicanalista e uma pioneira do modernismo europeu.

Famosa pela sua beleza e notável inteligência, Liolia von Salomé(1) nasceu em São Petersburgo, a 12 de Fevereiro de 1861, filha de Louise Wilm e de Gustav von Salomé, um alemão dos países bálticos, quinze anos mais velho. Descendente de hugenotes de Avignon, ocupava o cargo de conselheiro secreto do soberano, na corte imperial. Pertencendo às altas esferas da nobreza, Louise Wilm recebeu as felicitações do czar pelo nascimento de Lou, que foi educada no luxo cosmopolita da corte, condição que lhe permitiu desfrutar de uma ampla liberdade, assim como de um ambiente propício ao contacto e à aprendizagem das correntes filosóficas e literárias em voga. Com o seu estatuto de única menina (nasceu quando o pai já tinha 53 anos) foi excessivamente protegida, numa família de cinco rapazes, dos quais apenas sobreviveram três, Alexandre, Robert e Eugène, mais velhos que ela, respectivamente, em doze, nove e três anos. A presença tutelar dos irmãos projectar-se-á, posteriormente, sobre todos os homens que Lou conheceu. Igualmente, a figura do pai transformar-se-á numa figura omnipresente que a dominará por toda a vida.

Arrapazada, de cabelos curtos e frisados, a criança Lou revelou cedo os aspectos que iriam marcar a sua singularidade: um olhar independente e firme, uma personalidade enigmática e uma tendência imaginativa, que a levava a fechar-se na solidão de um mundo encantado. Durante a adolescência, o mais pequeno pretexto servia para que o pai a libertasse de todas as obrigações – o que terá contribuído para um alheamento em relação às actividades que ocupavam as outras jovens. Mais tarde, em adulta, ela sublinhará à amiga Frieda von Büllow a singularidade da sua infância, referindo que tinha sido o período menos feliz da existência (2).

O espírito crítico de Lou conduziu-a a uma atitude de descrença perante a religião. Recusando o ultra-conservadorismo do pastor Dalton, sedenta de independência e impaciente por viver, foi rejeitando, cada vez mais, a fé em Deus. Com a morte do pai, as esperanças de pacificação com a religião e com Deus desapareceram por completo. Poucas semanas após essa perda, e tendo ouvido falar de Gillot, um pregador em voga, defensor de novas ideias religiosas, dirigiu-lhe uma carta que era um pedido de socorro desesperado e na qual suplicava que a libertasse de dúvidas. Foi às escondidas que, no início, o ouviu pregar.

A intrepidez, inteligência e a sede de aprender de Lou atraíram Gillot que tomou a sua educação a cargo. Lou tinha dezassete anos e Gillot quarenta e dois. Era casado e pai de dois filhos. Lou representou para ele, não apenas um sonho de pedagogo, como transferiu para esse homem a imagem do pai perdido. A educação não se limitava apenas à religião, mas visava igualmente prepará-la para os estudos universitários que fará em Zurique, na Suíça, um dos raros países tolerantes que aceitava mulheres nos cursos superiores.

Gillot apaixonou-se por Lou e propôs-lhe casamento, perspectivando o divórcio. Embora o sentimento de Lou fosse recíproco, como mais tarde nas suas Memórias deixou transparecer (3), fugiu de Gillot, que lhe surgia como um obstáculo à sua liberdade, exactamente como fugirá, mais tarde, de outras relações com Paul Rée, Nietzsche e Rilke, quando justamente a pediram em casamento. O fascínio por Gillot desintegrou-se brutalmente e confessará posteriormente que no seu universo não havia lugar para o desejo nem para o sexo, nem tão pouco, espaço para um casamento.

Em Setembro de 1880, Lou partiu para Zurique, onde estudou lógica, história das religiões e metafísica. Ainda que se revelasse sobredotada, a sua saúde era frágil. Durante este período confirmou também a sua vocação literária, retomando os poemas escritos nos tempos da sua relação com Gillot e procurando publicá-los em diversos círculos universitários ligados a revistas literárias. No ano seguinte, em Abril, viajou até Roma, onde o clima mais ameno lhe permitiu o restabelecimento da saúde. Tinha pedido ao seu amigo Kinkel uma carta de apresentação para um dos espíritos mais livres do seu tempo: Malwida von Meysenburg. Européia convicta e adepta do livre pensamento, Malwida sonhava com uma sociedade humana liberta das cadeias da religião e dos seus dogmas, lutando para que artistas e filósofos conquistassem o lugar privilegiado que deveriam ocupar. Defendia ousadamente os direitos das mulheres e a sua participação na vida colectiva. As suas idéias arrojadas tinham-lhe valido o exílio definitivo da cidade natal e da Prússia. Pedagoga, ensaísta e romancista, melómana, Malwida tinha, aos sessenta e cinco anos de idade, uma carreira repleta atrás de si. O tempo de exílio que havia passado em Londres transformara-a numa acérrima e feroz defensora de Wagner, que havia conhecido em Londres. Malwida seguia atentamente tudo o que se passa em França. À sua volta formara um círculo de intelectuais, de escritores e artistas que defendia, apoiava e protegia da intolerância e incompreensão dos seus contemporâneos. Tinha acolhido Nietzsche e dois dos seus amigos em Sorrento, numa villa nas encostas do Pausilipo, onde o odor das laranjeiras se confundia com a brisa marítima. Doente, Nietzsche havia pedido à universidade de Basileia uma licença de longa duração e estava acompanhado por dois amigos. Um deles era o jovem discípulo Brenner, que lhe servia de secretário, e o outro era o filósofo Paul Rée, mais novo que ele cinco anos. Este ultimo concluía a sua obra A Origem dos Sentimentos Morais, enquanto Nietzsche trabalhava na redacção de Humano, Demasiado Humano. O estado de saúde de Nietzsche melhorara nesse Outono, permitindo-lhe visitar a família Wagner, que habitava nas proximidades. Porém, quando Lou chegou, na Primavera de 1882, a atmosfera tinha-se alterado substancialmente. A relação com Wagner degradara-se e Nietzsche sentia na pele as consequências do facto. A universidade de Basileia transformou a sua licença de um ano numa reforma definitiva o que contribuiu para um novo agravamento do seu estado de saúde. Rée, cujo temperamento neurótico já era visível, também não foi poupado. Quanto a Malwida, investiu toda a sua paixão nessa mulher-criança, cujo brilho intelectual e audácia a fascinavam. Lou conheceu então Paul Rée, sentindo-se cativada por este jovem filósofo de trinta e três anos, de espírito aventureiro e dado ao vício do jogo. Propôs-lhe viverem juntos, partilhar a casa e o amor aos livros e reunir em torno de ambos, os outros espíritos filosóficos. Rée, desconcertado, pediu-a em casamento o que provocou a cólera de Lou que imediatamente o rejeitou, explicando-lhe que desde a sua relação com Gillot tinha posto um ponto final à sua vida amorosa. Nessa altura e julgando servir os interesses de Lou, Rée escreveu a Nietsche, que se revelou predisposto a aceitar uma relação a três, (igualmente fomentada pela sua amiga Malwida), desembarcando de improviso em Roma à procura da “Russa” e do amigo. Imediatamente seduzido pela jovem, Nietzsche encarregou Rée de lhe servir de intermediário para lhe pedir a mão, o que provocou uma nova recusa por parte de Lou, que exigiu que Rée explicasse a Nietzsche a sua aversão pelo casamento e a perda financeira que isso representaria para ela, pois teria de renunciar à pensão que recebia das autoridades russas, na qualidade de aristocrata órfã. Mas a natureza solitária e a inteligência de Nietzsche não a deixaram indiferente. Sentindo-se demasiado atraída pelo filósofo, refreou essa atracção e refugiou-se na relação terna e protectora de Paul Rée, que a amava e que sofria com a sua indiferença física.

Nietzsche continuava obcecado pela ambição de formar um discípulo que pudesse ser iniciado na sua filosofia e a inteligência e independência de Lou imprimiram um novo rumo à sua existência. Em Lucerna, no Löwengarten, onde voltaram a reunir-se mais tarde, Nietzsche pediu-a novamente em casamento mas Lou manteve a sua recusa obstinada, deixando o filósofo estarrecido com a declaração de que lhe interessava unicamente cumprir a vontade de viver e entregar-se ao estudo da filosofia e da literatura.

Perante os projectos de Lou, que mantinha firme a ideia de viver com os dois filósofos, os irmãos tentaram demovê-la e impedir o escândalo, procurando fazê-la regressar a São Petersburgo. É Paul Rée, que ganhara a confiança da mãe de Lou, quem irá intervir no sentido de atenuar as tensões familiares. Entretanto, Nietzsche introduzira Lou no seu círculo de artistas e intelectuais de Bayreuth, onde ela provoca uma onda de choque pela sua audácia. A irmã de Nietzsche, Elisabeth, via com maus olhos as atitudes daquela jovem mundana e cheia de vitalidade, chegando a provocar altercações violentas e tentando, a todo o custo, destruir a relação entre Lou e o irmão. Por fim, o amor de Nietzsche transformou-se em amargura e decepção. A sistemática recusa de Lou levou-o ao desespero, à beira do suicídio. Só a embriaguez do ópio o salvava dessa dor lancinante, cuja experiência, depois de amadurecida o levou a começar a escrever Assim Falava Zaratustra. Em Fevereiro de 1883, o filósofo redigiu a primeira parte da obra em apenas dois dias. A fulgurância da sua prosa aproximava-se da leveza da poesia, onde a metáfora da dança ocupava um lugar importante. Foi assim que Nietzsche se libertou do fascínio que Lou exercia sobre ele. Jamais voltariam a encontrar-se. Na verdade, a sua irmã Elisabeth minara todas as relações entre os membros do círculo e instrumentalizara todos ao seu serviço: Rée e a mãe, Peter Gast, o músico, a própria Malwida. Não se sabe até que ponto Nietzsche terá finalmente compreendido os nefastos efeitos da teia de intrigas produzida por Elisabeth. No entanto, sabe-se o suficiente para reconhecer que, a partir de certa altura, Nietzsche rompeu com a irmã que acabou por partir para o Paraguai, onde casou com o teórico racista Bernhard Förster. O debate suscitado e os escândalos daí resultantes, alimentando a voracidade de um público ávido, remeteu Lou para um silêncio do qual não voltou a sair. (Mesmo quando Freud, muitos anos mais tarde, a insta a falar sobre o assunto, ela recusa). Respondeu sempre com um muro de silêncio que não a beneficiava, uma vez que não contribuía para clarificar a situação. Todavia, o afastamento de Nietzsche não lhe causou tanto dano que não permitisse que ela continuasse unida a Rée, encontrando, junto dele, não apenas a atenção e a ternura redobrada, como um certo apaziguamento. Quanto a Paul, a presença benéfica de Lou contribuiu para o afastar da paixão pelo jogo e para um reencontro com a tranquilidade. Juntos, reuniram à sua volta alguns dos espíritos mais promissores da época, na sua grande parte alemães e berlinenses, mas também dinamarqueses, como o crítico Georg Brandes, um dos primeiros autores a compreender o impacto da filosofia de Nietzsche, e livonianos, como o barão Carl von Schulz. Destes personagens próximos de Lou, eclodirão novas ciências e rumos decisivos, como é o caso de Hermann Ebbinghaus, fundador da Psicologia, e Ferdinand Tönnies, fundador da Sociologia.

Alguns deles declarar-se-ão a Lou e ela recusará todos os pedidos, convertendo-os em amigos enquanto mantém Rée junto de si. Em 1886, porém, o amigo sentir-se-á traído. A 1 de Novembro, a celebração do noivado secreto de Lou com Andreas, de cuja chegada Rée não se apercebera e que irá ocupar o seu lugar, obriga-o a partir, em princípios de 1887, pondo termo a quatro anos de vida em comum. Rée pediu a Lou que não voltasse a procurá-lo. O sentimento de culpa atormentá-la-á mais tarde, ao saber que Rée foi encontrado morto, em 1901, em circunstâncias estranhas.

Quer Malwida, quer Rée, tão próximos de Lou, ignoravam tudo acerca de Andreas. Porque razão, a certa altura, Lou decidiu casar? O que a terá motivado? A diferença de idades era considerável. Ele tinha 41 anos e ela 26. Príncipe e beduíno do deserto, numa sociedade na qual não se integrava e cujas regras tinha dificuldade em aceitar, era uma figura singular, tanto pela linhagem como pela experiência de vida, pois era filho de um arménio e nascera na Indonésia, em Jacarta. Quando jovem estudara no liceu de Genebra e destacara-se como aluno brilhante pelas suas aptidões musicais e linguísticas. Consagrara-se ao estudo das línguas orientais e tinha obtido o doutoramento em 1868, dedicando-se à leitura de manuscritos persas raros, nas bibliotecas de Copenhaga. Em 1870 a guerra interrompera as suas investigações e ele conseguira uma regência provisória na universidade de Kiel.

Para Lou, Andréas encarnava, em toda a sua perfeição, o ideal do sábio universal das épocas anteriores, o príncipe e o camponês, segundo o modelo russo. A aventureira deixara-se fascinar por esse poliglota que se afastava dos intelectuais que ela conhecera até então. Andreas destacava-se deles por uma “soberania das mais reais”, fazendo-a sonhar com viagens à Pérsia e indo ao encontro do seu lado selvagem e transmitindo-lhe um misto de doçura e de rebeldia que tanto impressionaram o dramaturgo Hauptmann e, posteriormente, Rilke e Freud. O casamento, nada convencional, foi realizado a 14 de Junho de 1887 e, alguns dias mais tarde, Gillot, a quem Lou se recusara na consumação do amor carnal, celebrou uma missa que envolveu Lou de modo mais profundo, oficiando e simbolizando a preservação do interdito, no seio do novo casal.

O projecto de vida comum estabeleceu-se com base numa comunhão de gostos e de estudos, tratando-se de uma união puramente intelectual. Lou obteve de Andreas a garantia formal de que nunca teriam filhos. Revoltava-se contra a ideia de pôr no mundo uma criança indesejada e não suportava a ideia de dar à luz. Repudiava qualquer ligação entre amor carnal e casamento, uma convicção, que Andreas esperava ver alterada, mas jamais se modificará.

O temperamento de Andreas contribuiu para que a actividade social da mulher diminuisse. O seu perfeccionismo e a permanência no Oriente haviam-lhe produzido uma estranheza relativamente aos hábitos universitários. Não conseguiu entregar, dentro dos prazos estipulados, a dissertação que lhe daria acesso ao lugar de professor, passando por reveses humilhantes. Entretanto, dedicava-se a estudar e a escrever um ensaio sobre a obra de Ibsen e de Nietzsche, de quem conservara as cartas.

Em 1890, a adesão do casal à Associação do Teatro Livre veio proporcionar a Lou os contactos que faltavam. Foi Georg Brandes, crítico dinamarquês, que redigiu uma carta de apresentação para o Deutsche Rundschau. Quanto a Wilhelm Bölsche, crítico, romancista e ensaísta, introduziu o casal no círculo de Friedrichsagen, onde residia. Lou conheceu aí jovens escritores para quem a literatura, bem longe de ser um passatempo frívolo, era um imperativo de ordem existencial, um conceito a que imediatamente aderiu, tendo começado a escrever para duas publicações berlinenses de renome e participando da vanguarda literária e artística mais prestigiada da época, com Tolstoi, Maupassant, D’Anunzio a Knut Hamsun. Em 1892 publicou o estudo que originará mais tarde o ensaio Personagens Femininas em Ibsen e, quatro meses mais tarde, escreverá uma série de artigos sobre Nietzsche, os quais serão incluídos num volume futuro intitulado Friedrich Nietzsche nas suas Obras (Viena, 1894).

Nesta boémia literária, cuja fantasia a afastava da austeridade e da disciplina do círculo de Rée, a mulher de quase trinta anos conheceu Georg Ledebour, conhecido pela sua liberdade, que o impedia de se subjugar à religião ou às convenções sociais. Foi essa fusão entre delicadeza e firmeza que atraiu Lou. Embora sensível ao fascínio desse terno amigo que lhe declara o seu amor, Lou resistiu-lhe mas tal paixão acarretar-lhe-á uma profunda crise, no casamento.

Esse aspecto doloroso da sua vida irá reflectir-se na sua obra, numa fase em que escreve com uma tenacidade obstinada, uma actividade que foi injustamente negligenciada, em virtude da sua dispersão por várias colunas de jornais. Dedicou-se igualmente à ficção, publicando, em 1885 Combate Por Deus e, em 1895, Ruth, o seu segundo romance, onde trata, ainda, a sua obsessão por Gillot.

Em 1894, no final de Fevereiro, a escritora desembarcou em Paris, onde foi aceita pela sociedade boémia e literária e conquistou a admiração dos críticos mais influentes, como escritora e ensaísta. Começou a corresponder-se com Schnitzler, que ela admirava profundamente e que irá, mais tarde, reencontrar em Viena. Mas em relação a esse tempo de Paris, onde redescobriu os prazeres mundanos, Lou confessou um certo desencanto, provocado por um afastamento do seu trabalho. De volta a Berlim, permaneceu aí durante o tempo estritamente necessário. Trazia de tal modo entranhado o gosto pelas viagens que partiu, ao fim de seis meses, para S. Petersburgo onde reviu a família e Gillot. Regressada a Viena, onde a atmosfera era semelhante à de Paris, encontrou Schnitzler e travou conhecimento com Hofmannsthal, Beer-Hofmann e Friedrich Pineles, o médico a quem se ligará numa intensa e duradoura relação. Pineles tinha na altura vinte e sete anos e Lou trinta e quatro. Nessa sociedade brilhante, extremamente requisitada e apreciada pela sua capacidade de comunicação, Lou revelava uma lenta eclosão, que fez com que Schnitzler traçasse dela o retrato de uma mulher volúvel, deslumbrante e desinibida, de uma euforia e um gosto pela vida invulgares e anotasse no seu diário esta curta mas decisiva frase: “A mulher começa a despertar em Lou” (4).

Quando Lou e Rilke se encontraram, o poeta era um jovem de 21 anos, com um talento prodigioso, em busca de reconhecimento literário. Colaborava em vários jornais e revistas e era, ele próprio, editor de uma revista que pretendia divulgar as novas tendências da poesia. A relação que se estabeleceu entre ambos foi a de uma mãe-amante para com um filho. No final de Maio, procuraram um refúgio nas montanhas, longe do bulício da cidade. Foi sob o olhar de Lou que Rilke iniciou um novo período de intensa produtividade literária, enquanto procurava compensar, a relação frustrada com a sua própria mãe, nunca inteiramente recuperada pela morte da irmã mais velha. Essa maternidade assumida em relação ao jovem poeta encontrou a sua primeira representação simbólica num baptismo. Rilke tinha recebido o nome próprio de René Maria. Lou, fascinada pelo ardor do poeta e pela sua virilidade amenizada pela doçura, procedeu a um requilíbrio em benefício do elemento masculino: converteu o nome René em Rainer. Esse renascimento, a que Lou preside, não se limita apenas ao nome e arrasta o poeta para um despojamento e para uma simplicidade que libertam a sua poesia de todo o sentimentalismo, obrigando-o a voltar à essencialidade e à celebração claramente existencial, da vida e do mundo. Stéphane Michaud (5), na sua biografia, refere que a fase mais intensa da paixão entre ambos ocorreu entre 1897 e 1901, mas Lou, de comum acordo com Rilke, queimou as cartas relativas a esses anos e só é conhecida a troca de correspondência a partir de 1903 até 1921.

A 26 de Abril de 1898, Rilke, Andréas e Lou deixaram Berlim em direcção a Moscovo. Sobretudo após esta segunda visita, o poeta reconheceu que a Rússia se tornara o seu mundo e a escrita permitiu-lhe transfigurar essa viagem espiritual. Os viajantes partilhavam a mesma paixão pela Rússia antiga, pelas suas paisagens e pelo seu povo e Rilke compôs, em Agosto desse mesmo ano, o ciclo dos «Czares», (seis peças que integrarão a segunda edição do Livro das Imagens, que sairá em 1906), e depois, em Setembro e Outubro, «As Preces», que constituirão o original do que virá a ser o Livro das Horas (1905). Rilke também se dedicou à aprendizagem da língua russa, tendo traduzido A Gaivota, de Tchekov, bem como os poemas do poeta camponês Drojine.

Paradoxalmente, esta viagem afasta Lou de Rilke. O seu diário deixa compreender como a imagem do pai se sobrepõe à do amante. A angústia existencial de Rilke indispunha-a, transformando-o numa figura ameaçadora. Incomodada pela sua presença, aos quarenta anos e reencontrando na mítica Rússia a serenidade desejada, Lou sentiu-se incomodada pela presença de Rilke, forçando-o a partir. Sem remorso, considerou natural que se afastassem para que ambos pudessem crescer.

Sob a orientação do psicoterapeuta sueco Poul Bjerre, Lou iniciou-se no estudo da Psicanálise, acompanhando-o ao congresso internacional em Weimar, em Setembro de 1911. Mais tarde, afastando-se da posição teórica de Bjerre, que se distingue de Freud, Lou tornou-se de uma fidelidade inquebrantável relativamente ao fundador da psicanálise, durante vinte e cinco anos. Só a morte de Lou porá termo a essa relação. Freud confiou-lhe também a orientação da filha Anna, estabelecendo-se entre os três uma cumplicidade intensa. Depois da Guerra, quando Lou sofreu dificuldades económicas, foi o seu dedicado amigo Freud quem a ajudou. Na última fase da sua obra, Lou procurou conciliar a influência da psicanálise – ela própria torna-se psicanalista – com a literatura. Nasceram dessa confluência, os seus mais estranhos contos, povoados por figuras e personagens que se apresentavam como representações simbólicas intensas. De alguma forma, a sua obra surgiu integrada numa contra-corrente literária, pois na literatura alemã distinguiram-se outros autores, mais marcados pela vanguarda da estética expressionista, mais trabalhada pela política, como é o caso de Döblin, de Kastner ou, ainda, de Werfel. Finalmente, Lou escreveu As Memórias, obra que se revelará posteriormente, como um manancial e um testemunho da sua vida, mas onde a sua postura se mantém discreta e reservada, mesmo relativamente aos factos mais importantes e relevantes. Lou sabia exactamente que compunha a derradeira imagem com que havia de deixar o mundo: a de uma mulher com uma beleza que a acompanhará até ao final da sua vida, tendo sempre do seu lado a vida (como dela disse um dia Rilke) e uma capacidade de dádiva que apenas se encontra nas almas superiores. Disso são prova as relações constantes e duradouras que manteve com os homens (amigos e amantes) até ao final da sua vida que terminou a 5 de Fevereiro de 1937, pouco antes de completar sessenta e seis anos.

Lou teria gostado que as suas cinzas fossem dispersas pelo seu jardim. Esse desejo seria, certamente, o modo poético de reconciliação com a terra, o elemento que ela tinha amado. Porém, as autoridades recusaram-lhe esse gesto último e a urna foi enterrada ao lado do corpo de Andreas. Uma morte discreta a celebrar o esplendor do que foi a sua vida, guiada por uma liberdade radical.

 

Notas

(1) É Gillot quem, mais tarde, lhe dará o nome de Lou.

(2) Stéphane Michaud, op. cit., p.34.

(3) E também nos poemas “Prece à vida” e “A Dor”.

(4) Diário de Schnitzler, 1893-1902.

(5) Na obra biográfica, já anteriormente citada, Lou Andreas-Salomé, p.155.