Mapeamento das querenças

O seu todo pensamento anda inclinado, nessa procura do que parafrasear com os dentes. Está aturdido por dentro, mesmo sem fomentar brusquidão no corpo ou misturar altitudes. Um pé só é possível trás outro mais firme, quando em plena boca se exerceu uma mastigação demorada, um repasto ou parte dele. Esse pastoso fogo esculpe milagrosamente sem uso de mãos e utensílios rijos, uma pessoa em estado vertical, inserindo-lhe vontades de desencostar-se do assombramento da magreza, de desaçaimar-se e galgar com alento um qualquer arruamento só porque se consegue espaçoso fôlego. Há sustento para fazer prosperar na panela? Indaga-se, molemente. Há um amar-se essa cheieza de tacho em fervura num recanto de casa, cheiro que depois se come; é esse amar parecido a estar-se descaído sobre uma mulher estendida sem vestido, parecido a apreciar no céu o abarrotar-se de alaranjados no meio de riscos de chumbo, tudo rubores que descem ao corpo e o alagam sem o atestarem como o arame da comida o faz nas articulações e nos ossos. É na praça funda no começo da barriga, onde se estabelecem as querenças. Neto de muita trituração entre gengivas, até o maior poema é lá que acorda. Diz-me, com fome de roer a vida como me atarei ao que tens nos olhos Maryam, senão com uma atazanada doçura já em fios de inutilidade.

Gabriela Ludovice

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa.

Septagésimo Quarto Episódio

 

Pesadelo 1

As balas lascavam caibros e parreiras. Algumas zuniam nos ouvidos. Obrigavam os salteadores a beirarem as paredes da casa, assim se protegiam dos tiros que vinham de cima. Derrubaram a porta do paiol. Liberaram mais fogo para fora. A tensão associada ao álcool. O homem sem controle e matando gratuitamente. Vamos! Desperdiçam balas. Também, que mira pode ter um padre, um médico ou um advogado? A casa em chamas. O estalo de vigamento. O calor e a fumaça. Ouviu-se o sino… Também os tiros. A casa ruía.  Na impossibilidade resta a morte. Ou acordar…

 

(continua)

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa.

Non-sense 12

Após a era de Deus, a era da Razão. De século para século o homem empenhou-se em simplificar, em reduzir o Mistério ao indispensável. Ora, este subsiste em Deus, em sua grandeza inconcebível; o Mistério só capitula diante da Razão, porque  encontra-se no próprio homem.

 

(continua)

Ranário sentimental

A bem da verdade, devo confessar que nada me distingue das demais rãs que ocupam comigo o espaço deste ranário. Sou verde e rugosa e, como elas, também me alimento de insetos. Contudo, ousei sonhar que um dia seria Deus. Não das rãs, mas dos anjos luzentes. Algo me diz que o céu está vazio, e que ninguém ainda tentou arrebatar a coroa.

Algo também me diz que serei Deus (dos anjos luzentes), quando um homem apontar contra meu dorso o cetro do desassossego. Sei que então, ele me abrirá o corpo e me confiscará as entranhas. E a besta me chamará junto a seu seio. Depois de viajar no ventre dela, então, serei Deus. Sete anjos luzentes coroarão meu corpo transformado.

Álvaro Cardoso Gomes

Tentação

Acenas, me chamas, provocas. Resisto. Alegre, circundas, te vais e regressas, me tocas. Resisto. Dengosa, enleias, ondulas, volteias, me tentas. Resisto. Te enrolas, encostas, me cinges, enredas. Resisto. Em labaredas, enfim teu corpo devagarinho pousa no meu ventre ensandecido. E por instantes me perco no teu jogo, cedo ao teu fogo, Morte.

Augusto Baptista

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa.

CAPÍTULO MCCCXL

Cena 1

Esqueceram a mulher no palco, não a do roteiro da desmemória, mas a que trabalhava com Paulo Autran, portanto, a peça que pensamos ter sido apresentada. Se a engenhoca funcionou como devia, inspirada em contos de Edgar Alan Põe, ela morreu no palco fazendo o que mais desejava: ser atriz. Mas teatro é simulacro… A atriz deve estar no banho retirando os traços da personagem. O Paulo, este sim, infelizmente nos deixou, o que nos permite pontuar o tempo da narrativa. Já seus atores continuam a desfilar na mídia, mesmo o corpo-personagem Paulo Autran, um dos personagens do espírito, mas já sem corpo, que morte é essa falta da matéria, de conteúdo, onde a alma diz e respira.

Septagésimo Segundo Episódio

 

 

(continua)

Ponto morto

Há um único cruzamento no deserto. No relógio de Sebastião os ponteiros mostram uma hora vaga.

“19h10m? 11h09m? 09h11m?”

— Escolhe o teu tempo. É agora!

Sebastião sai do carro, o motor em convulsão, envolto numa nuvem branca que se estende rumo ao azul.

Tem um cano encostado à cabeça. O estoiro sai.

Sebastião é grande e pesado. Tem a barba por fazer e a roupa mergulhada em suor. Cai do seu pedestal. Uma outra nuvem, esta de pó laranja, atormenta-se e rebola em todas as direcções.

E o carro suspende a avaria e arranca para o outro lado do cruzamento.

— Stop!

Visto do céu, Sebastião é apenas um ponto morto.

Bruno Barão da Cunha

O NÃO TEMA | Cristina Carvalho

Escrevi três crónicas e não vou enviar nenhuma delas para publicação. Não as deitei fora, não as rasguei, não as apaguei, nada! Mas uma pessoa escreve, escreve, fica a olhar para o que escreveu e chega à conclusão que uma delas é redundante por exagero de temática, outra é azedíssima e para azedumes já basta o que basta, quanto mais ler crónicas destas e, finalmente, a terceira é uma espécie de lamento que também, nos dias que correm, não vale a pena porque há situações muitíssimo piores. Sendo assim, este mês, o tema desta crónica é um “não tema”.

Que também é magnífico não querer dizer nada de especial!

Ou porque o tempo atmosférico está horrível, porque chove, porque não chove, porque faz frio em Maio, porque de repente veio um calor abrasador e Maio não é tempo dele; porque o descontos do Pingo Doce; mais as eleições em França e os tristes dos Gregos e os achatados dos Portugueses; e aquele sujeito que ganhou sozinho o euromilhões, havia de nos ter calhado; o rapazinho que é um grande artista; e a Feira do Livro, os livros são caros, o futebol enche, a música chama, a música embala; raisparta os impostos; eu quero é a praia; odeia-se esta mulher e também se odeia este homem; a escola está a acabar; um pratinho de tremoços, uma bejéca fresquinha; vem aí o mês de Junho mais os santos populares; deixa-me cá aprontar que o mundo vai acabar, diz que é já no fim do ano, ai meu Deus que mal fiz eu! Rosna, rosna o raio da velha a anunciar tempestades, estende-me aqui o teu dedo só pra ver se estás gordinho; ele é net, ele é jornais, ele é blogues e pardais, incompetentes à solta; o grito que se descai, a revolta que não vinga; estás aqui estás a apanhar, se te ponho as mãos em cima… gira, gira o rodapé mais as cápsulas do café, aquelas tais que eu adoro; gente fina é outra coisa, e os poetas aos milhões vão caindo aos rebolões a desejar muito amor, a deslaçar muita dor, uma fartura de vida, mais curta do que comprida!

Continuando, serenata, serenata, lengalenga atraiçoada:

Era uma vez um gatinho, coitadinho, pobrezinho, um cãozinho abandonado, um miúdo maltratado, ainda o arrumador dos carros, um tacho de arroz de frango só com ossos e pescoços, vou à loja dos chineses que só vendem porcarias, o cheiro a terra molhada, o teu cheiro que consola, a vida que rola, rola, a menina não desista, continue procurando, mais o palhaço na pista, outro estilhaço na vista, a paciência esgotando. Olha as castanhas quentinhas, o Chiado a transpirar, um ou outro palpitar, uma cidade a dormir, país inteiro a gritar, as casas que vão para aí, a vender e a alugar e a malta que quer dormir, a gente quer trabalhar, mas quem é que votou nisto? o que irá acontecer? vou aos saldos a correr; entrecosto no churrasco, caldeiradas de Peniche, sol a rodos, sol a rodos, os morangos lá da estufa qu’este inverno não choveu, a vida está tão difícil, a gasolina tão cara, o Ronaldo muito giro, o Mourinho ainda mais giro, os nossos grandes orgulhos que do resto pouco interessa, vai ver é se eu estou lá fora, não chateies muito mais, abre lá o feicebuque, fala aí com toda a malta; já faltou mais para o Natal, isto se o mundo viver! e se há coisa mesmo boa é uma noite no sofá a destilar velhos vícios, um copito e um bom filme, a criancinha a dormir, a lareira a crepitar mais o parque de campismo, a roulotte a deslizar, a bicha pró wc, belo dia a despontar, piquenique lá na mata, futebolada a seguir, o pessoal a sorrir, bebé a choramingar,a missinha ao fim do dia mais o padre a abençoar.

E sempre assim por diante, assim se constrói a vida, essa tal de rica vida, mais curta do que comprida…

 

CRISTINA CARVALHO

Crónica de Maio de 2012

Contraluz

Também o olhar. Um olhar a esmo. Às vezes, fixo: de varar distâncias. Mais tarde, as estampas de santos emolduradas, entremeadas de espinhos, dispostas no chão onde havia de pisar. O corpo retesado. E os gritos. Os meus gritos somados ao som da sirene da ambulância cortando a cidade. Foi ontem. Foi ainda hoje. Não houve. Agora quantos anos?

Ernane Catroli

Brisas domésticas

Está a levantar-se um vento… Isto dito, já ela vogava no ar, sem que alguém lhe pudesse valer, algo houvesse para se agarrar. Longe, pensou: Se ao menos o vento amainasse. E logo caiu: sobre a cama, por sorte. O marido, concentrado nas palavras cruzadas, limitou-se a reflectir: Excedeu-se, ao jantar. E, sem pressa, foi fechar a janela.

Augusto Baptista

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa.

Perdido 354

Nenhum de nós… Na maca o comatoso é corpo inerte à mercê de mãos, soros e ideias. Palavras e imagens brincam em seu cérebro sem saber se o resultado compensa. Literatura é algo assim, fruto de um suicida mal-resolvido, muito mais que de um psicótico… (é sempre necessária a repetição)

.

 

(continua)

A Feira do Livro chegou

A Feira chegou! E com ela a chuva, infelizmente. Logo neste ano, em que a crise obriga a saldos que se poderiam dizer pornográficos, se a pornografia merecesse tamanho insulto. São saldos do outro mundo, isso sim. Mas o outro mundo não existe – esqueçam. São os saldos da Troika. Tróikósaldos portanto. As editoras estão a esvaziar os armazéns. Quase que oferecem livros. Nós, leitores, sorrimos de satisfação. Pena não termos dinheiro para sorrir com satisfação redobrada. Baixam os preços mas sobem o preço da luz, da água, da gasolina: daqui a pouco até o ar custará alguma coisa – de que nos vale? E nós, editores, trememos de medo: como ficará o mundo da edição depois das pessoas acharem que os saldos devem ser para sempre?

Jorge Reis-Sá

Tecelagem da Vida! 5

O shopping está quase fechando. A perua comprou quase seis mil reais em roupas, sapatos e bolsas. O marido, um ser asqueroso, não tira os olhos da vendedora. Deve ter no máximo dezenove aninhos, imagina. A mulher vai até o caixa passar o cartão, e ele fica xavecando a garota com uma conversa estúpida. Ela o escuta por educação. Pensa na comissão. A esposa volta, e pede para passar o cartão dele, porque o dela bloqueou. Não sei o que houve! Diz ela, se fazendo de desentendida. O marido faz uma cara ainda mais feia do que aquela que já tem, mas paga, contrariado. Eles saem e vão até a garagem apanhar o SUV chinês, para irem jantar no restaurante mais badalado da cidade. A loja fecha, a vendedora sai, e na porta do shopping um jovem lindo, de jaqueta de couro e jeans surrado, espera por ela com dois capacetes na mão. Os dois se beijam demorada e apaixonadamente. O rapaz diz que infelizmente não poderão ir comer pizza conforme combinado, porque ele tem que ficar com a mãe que está muito abalada com o acidente que a sua irmã sofreu. Comenta ainda que o pai está incomunicável. E a vida segue tecendo!

José Eron Lucas Nunes

A linha da porta

Com Hashmukh começou por ser a incerteza da vestimenta, a incomodá-lo a diário. Ora não se convencionava com a cor da pele ou com as feições adquiridas no sono, ora distorcia a competente ossatura e lhe abolia altura ora ainda lhe outorgava ares de pouca comida. Hashmukh sabia que não era aquela farpela a salvar-lhe a vontade, mas outra qualquer também não, coisa vulgar de acontecer a uma pessoa nalgum dia, mas não em todos. Depois, arrastou-se a sessão do não conseguir sair do domicílio, da porta escancarada em observação tarde fora, da escada galgada devagar até meio como se acarreasse onze mundos, da chave apertada na concha da mão até quase sangrá-la, sem por certo alcançar a rua, sem aparecer algures noutro quarteirão, noutra ponta da cidade, nem chegar ao posto de trabalho. Fincando-se nos interiores da casa como se fora dela fosse capitular, despia o casacão doses sem conta, desferrava as botas justas uma e outra vez e sentava-se escorreito no hall de saída, que era o maior espaço da casa. Aí, amiúde e sem uma única hesitação, olha  sossegado as próprias mãos, vislumbra-se inteiro nos degraus algo sujos ainda perto de serem usados.

Gabriela Ludovice

Arrastão

Pegaste na minha mão. Eu não queria. Arrastaste-me até ao quarto. Fui assaltada. Fiquei sem roupa, ainda me debati. Fiquei sem fôlego, fiquei sem mim. Nada sobrou. Rendi-me. Fui presa fácil do teu arrastão.

Bruno Barão da Cunha

Fábulas (6)

11 de Outubro, 8:45

(…)

Logo na Duque de Palmela, no pórtico de um prédio, um sem-abrigo mal tratado inspecciona cuidadosamente, como tarefa de fim de dia, dois papéis pequenos que são, sem dúvida, boletins de totoloto usados. Ao lado está um saco cheio deles e o que me parece, durante os escassos segundos que o meu passo permite (a família à espera em casa), é que ele se dedica a procurar nesses restos aquele papel que, inadvertidamente esquecido, possa conter o número certo – periodicamente desiludido, chamado à realidade, vai rasgando um a um os boletins e devolvendo-os, despedaçados, ao sítio de onde vieram.

Da série A Ronda

Paulo Bugalho

Do “Livro das Pequenas Coisas”

15

Ninguém ouve ninguém. Da surdês que começa antes da palavra: nada se compenetra em coisa nenhuma. Exemplo próximo é a normal surdês humana: eu hoje falava na UL de caos e canto e o António Ramos Rosa interrompeu-me e começou a falar da paz que há nos seus livros. Depois falei de Novalis e ele respondeu como se eu tivesse falado de Pascal. Eu também: quando me disse que Adorno respondi que Celan. Alusões. Um ping-pong entre os surdos que todos somos. E quem ouvi era coisa o que escutava. Outras veredas para nenhum lugar.

Casimiro de Brito

E agora Drummond?

De cor o escuro que apadrinha o tecto e quando torço a cara, o resto do quarto e mais para lá ainda o corredor. Chamam-lhe insónia. Na cabeça, brechas. Na estante, coisas para alojar na rua. Arregalam-se-me os olhos, sem que pense melhor. Para que rua? Vão-me despejar da casa. Ficará quanto não posso acarretar nas mãos e com o esforço dos músculos. Deixei de ter salário que assegure o ter sítio onde recostar o corpo sem sobressaltos. Parecia que só acontecia aos outros, e que esses outros são os que têm lábio leporino, que se chamam Michael K e que vivem na África do Sul, ou que esses outros no belo lugar do José são simplesmente os calaceiros, os escusados, os que merecem tornarem-se insectos que se chamam Gregor numa casa kafkiana com venenos próprios. Os livros de literatura e filosofia vão por seus pés acabar numa feira de domingo a cinquenta cêntimos cada, que é o que acontece às coisas repetidas dos mortos. Alguém há-de ler-lhes os sublinhados e talvez escrevinhá-los numa mensagem de facebook, onde diz, em que está você a pensar? Na parte de cima do corpo a cabeça a estalar, como uma parede onde compareceu devagar a chuva durante meses e se tornou sem árvores num jardim húmido e nu. Dentro de um saco grande que se torna ínfimo, sufocante quando amarrado na ponta com uma corda forte, José. Quem estará do lado de fora a atá-lo e a dar-lhe pauladas?

Gabriela Ludovice

Abril – A Escolha do Editor

Algo que me despertou a atenção, e que acho de facto de suma importância, foi um pequeno artigo na revista Ler, de Abril, da autoria de Paulo Ferreira, dos Blogtailors, que desconstrói em uns ligeiros cinco pontos o que um futuro autor pode esperar quando envia um manuscrito para uma Editora.

A meu ver esses pontos  permitem dar-lhe uma visão muito clara da realidade com que as editoras se deparam no dia-a-dia: o número elevado de obras propostas,  as limitações  humanas e financeiras e inclusive de mercado  das editoras, que levam a que a resposta seja demorada e muitas vezes negativa, algo que nunca agrada a um escritor. Para mim este artigo tem relevância, pois creio que permite ao leitor perceber um pouco o nosso método de trabalho.

Manuel Brito