UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Vigésimo Sétimo Episódio

Roteiro 3 (terceiro-esboço)

(Des)memória 3 (próximo do espelho): Não vai me dizer… Não! É claro que não! Até me admiram por isso! Isso mesmo! Você sabe! Sou admirado, um sujeito que saiu da merda e venceu. É lógico que entre os pares de profissão continuo tendo o carimbo da exclusão. Marcado como o gado. Miséria tem cor e cheiro. Na verdade só não morri na esquina, mas estou morto há muito tempo, em todas as dobras, em todos os atalhos, em todas as relações. Desculpe-me, você nada tem a ver com isso. Nem sei o motivo de tê-la colocado nessa situação. Não foi você que não fez a pergunta. Fui eu que nunca me perguntei: Você está bem? Você é feliz? Você está bem? Você é feliz? (olhando-se demoradamente no espelho.)

 

(continua)

Negócio a meias

O vendedor de chapéus, que viera das Furnas, parou na loja do senhor Noé. Entre pilhérias e cálices de aguardente, todos os dias mestre José Pacheco “Ferro-Velho” passava lá quase todo o dia. O visitante propôs-lhe que fosse vender por si os doze chapéus que restavam, ficando metade do dinheiro da venda para cada um deles. O ferreiro não demorou a regressar, mas trazia ainda meia dúzia de chapéus. Entregou-os ao dono, e disse: “Eu já vendi os meus. Agora vai tu vender os teus.”

Daniel de Sá

Um homem sensível

O dia inteiro sobre faturas, letras de câmbio e contas a pagar e a receber, perdia a noção de que era um ser humano. Voltando à casa, sentava-me e começava a dar marteladas na cabeça. Única forma de me sentir vivo. Mas até com isso tive de parar, porque minha esposa ficava sobremaneira irritada com as manchas de sangue no sofá.

Álvaro Cardoso Gomes

O balanço literário e a continuidade

Entre Outubro de 2010 e Dezembro de 2011, o site PNETliteratura e o Centro Nacional de Cultura levaram a efeito um balanço literário da primeira década do século.

Durante este ciclo tiveram lugar as seguintes conferências: “A expressão literária como esteio da lusofonia” por Guilherme de Oliveira Martins, “O romance português” por Miguel Real, “O romance brasileiro” por Maria Aparecida Ribeiro, “A poesia do século XXI em Português” por António Carlos Cortez, “Os desafios da tradução” por Maria do Carmo Figueira, “O papel da crítica literária” por José Mário Silva, “A Literatura na África lusófona” por Ana Paula Tavares, “O acordo ortográfico e a literatura no espaço lusófono” por Vasco Graça Moura, “A ilusão (da) crítica: os estudos literários africanos e a ordem eurocêntrica” por Inocência Mata e, por fim, “O mundo editorial na primeira década do século” por Jorge-Reis Sá. Sem cariz massificado, mas mobilizando públicos significativos e interessados, o balanço literário da primeira década do século foi um sucesso.

O encerramento do ciclo foi marcado por uma mesa redonda que teve lugar, no passado dia 15 de Dezembro, e que contou com a presença de Miguel Real, Jorge Reis-Sá, António Carlos Cortez, Ana Marques Gastão e Guilherme de Oliveira Martins. Nesta mesa redonda, houve algumas linhas conclusivas que foram entafizadas e que merecem ser aqui sinteticamente repostas.

Em primeiro lugar, a tendência para uma desconceptualização da literatura. Tendência observada, quer pela via do “romance de mercado” (um percurso iniciado pela antiga Oficina do Livro), quer ainda pela via de dominantes poético-literárias presas ao quotidiano e desfocadas do que Pound ou Goodman caracterizaram como essência do estético-literário: a densidade do sentido.

Em segundo lugar, foi sublinhada – no caso do romance – a continuação de uma tendência que vinha já dos anos noventa e que se tem pautado pela adaptação do imaginário literário a formas de identidade que deixaram de ser nacionais (ou fechadas). A ‘quête’ pela identidade passou a policentrar-se, refectindo um mundo em que o local é cada vez mais a metáfora de uma desagregação.

António Carlos Cortêz evidenciou uma terceira tendência: o colapso da renovação da linguagem poética levada a cabo por escolas (como aconteceu repetidamente ao longo do século XX). Por outro lado, a afirmação mais individualizada a par da paródia (L. Hutcheon foi citada neste contexto) têm estado a reatar diversas tradições da chamada ‘arte rude’ ligada ao literalismo com raízes nos anos setenta (Joaquim Manuel Magalhães e o grupo Cartuxo) e até mais tarde na década de noventa (caso de Paulo Barriga) do século passado.

Em quarto lugar, não foi esquecido o tema da progressiva dessacralização do literário assim como o fim do “Escritor” como senador do espírito ou espelho privilegiado da comunidade. Ana Marques Gastão, particularmente sensível a esta última temática, realçou ainda o impacto da profusa produção de textos no nosso tempo (do jornalismo à rede) em conjunção com a enunciação literária. Um palimpsesto nem sempre esteticamente rico e estimulante.

Por fim, sob o ponto de vista da mais recente história editorial, Jorge Reis-Sá focou sobretudo a questão da concentração, articulando-a com a resistência das pequenas editoras e com a dificuldade de os livros – não apenas a literatura – chegarem aos pontos de venda.

Guilherme de Oliveira Martins encerrou a sessão. Ficou a certeza de que um novo ciclo de debates irá ter lugar muito em breve. Mais uma vez em cooperação estreita entre o site PNETliteratura e o Centro Nacional de Cultura. Uma boa notícia a iniciar o novo ano de 2012.

Luís Carmelo

Despedida

Tom suave, quase a medo, ele disse, dá-me um beijo, logo ela descia a ladeira, partia sem olhar para trás. Ela, lábios em fogo, de ela fugindo a correr.

Ele ficou-se a olhá-la, mãos frias perdeu-se na noite rumo a uma outra cidade qualquer.

Depois fez-se tarde.

Augusto Baptista

Xilofone

O menino recebeu um xilofone no aniversário. Começou, lentamente, a tocar, aprendendo, pelos seus meios, várias músicas. A facilidade com que aprendia novas músicas, levou-o a ganhar gosto pelo xilofone e a tocar todos os dias.

À medida que foi crescendo, o menino foi tocando menos tempo, até que o xilofone ficou guardado e esquecido, dentro de uma caixa de sapatos. O menino cresceu, tornou-se um viajante e, à semelhança do que acontecera com o instrumento musical, foi viajando cada dia, um pouco mais, até que perdeu o caminho de volta.

Um dia, num país distante, encontrou um menino a tocar guitarra. Lembrou-se da sua infância e, particularmente, do xilofone. Procurou um instrumento destes, numa loja. Encontrou um exemplar em segunda mão. Comprou-o, mesmo sabendo que o instrumento tinha pouco valor. A grande razão para comprá-lo não estava no valor, mas no significado: se tocasse todos os dias, talvez se lembrasse do passado e, consequentemente, do caminho de volta.

João Nogueira Dias

Asas

O coto das asas surgiu-lhe nas costas quando a mulher se tornou minha amante. O bico e as penas apareceram depois. Já então ensaiava voar, pulando do guarda-roupa para a mesa e daí para o chão. A mulher, irritando-se porque ele defecava no assoalho e passava as noites crocitando, exigiu  que o expulsasse de casa.

Antes que eu tomasse a iniciativa, ele atirou-se da janela. Para minha surpresa, as asas suportaram-lhe o peso, e ele acabou pousando num plátano em  frente à casa.

E de lá passou a vigiar-nos. A mulher atirava-lhe pedras, ele fugia  para longe, mas acabava sempre voltando para a árvore. E sua presença só me fazia crescer o remorso. Suportando o frio, a fome, a sede, mostrava-me o quanto fora ingrato.

Um dia, a mulher me deixou. Em vista disso, temendo pela solidão, chamei-o da janela. Mas ele só fez abanar a cabeça, já toda coroada  de penas, e crocitou:

Never more, Never, more.

Álvaro Cardoso Gomes

Descritivo

Os objetos no aparador da sala e, bastante, apenas um toque. Um leve toque de pontas de dedos e sucessivas as alternâncias de cores, épocas e cenários indizíveis até que uma nota manca vibrasse, com eco, nossas vidas destroçadas.

A mancha de sol no corredor, a incidência da luz. As três partes do dia.

Ernane Catroli

O país de Alice

Num estranho acidente, as mãos da menina Alice ficaram presas na porta do autocarro 35. Avaliadas as hipóteses de desencarceramento, os técnicos concluíram: melhor seria não arriscar. Posta ao corrente, concordou, tanto mais que lhe garantiam o mesmo ordenado do escritório, descontos para a Segurança Social, subsídio de refeição, pernoitas. E, ademais, sempre que quisesse, a família podia vê-la. A partir daí, dia e noite, a menina Alice e o 35 passaram a viver juntos: um casal, a bem dizer. A ocorrência tornou-se notícia, com cobertura mundial de televisões, rádios, jornais. A sorte grande para a menina Alice, que parecia condenada a passar a vida a teclar ofícios, mãos presas à velha Remington.

In O caçador de luas

Augusto Baptista

Os olhos da Mariquinhas

Todos os dias, a meio da tarde, num ritual que se acomodara aos ossos e à carne, ele deixava a casa e tomava o caminho para a taberna da viúva Mariquinhas. Não que procurasse o aconchego do vinho ou das amenas tertúlias com os velhos companheiros; não era isso que o fazia subir aquela rua estreita e íngreme, de calhaus gastos pelo tempo: apenas desejava encontrar os olhos da Mariquinhas, deliciar-se com o seu riso, as suas maroteiras e o chiste na ponta da língua, numa apaixonada formalidade, cortejando-lhe a presença e graça. Mulher ladina, a Mariquinhas ainda era bonita e mantinha uma jovialidade de fazer inveja às outras da sua idade. E ele — tal como ela — estava só. Embora a vida declinasse, ele teimava em não se deixar vergar pela idade e pela soledade, subindo todos os dias aquela ladeira. E aquela subida, qual metáfora, transformara-se no seu combate particular, no seu campo de batalha: fizesse chuva ou fizesse sol. Pouco falava, quedando-se em silêncio, a contemplar. No secreto do seu espírito sabia que um dia ainda conseguiria conquistar o coração da taberneira. E então sim, os seus dias teriam outro brilho, outro calor e a morte, enfim, seria derrotada, pelo menos desta vez, às mãos do amor.

Paulo Moreiras

Entrevista a Luís Filipe Silva por António Pacheco

«Os Anos de Ouro da Pulp

Fiction Portuguesa» – Entrevista a Luís Filipe Silva

Há coisa de três anos e meio recebi um texto de João Henriques, que conhecera recentemente numa formação de escrita criativa, pedindo leitura. O texto chamava-se «A Ilha» e transformava a Madeira num espaço abandonado, tomado por uma criatura com poderes telepáticos que tornara a vida num verdadeiro pesadelo vivo.

Em breve passei a frequentar a casa do João e em cima da mesa encontrei uma maqueta do que viria a ser a versão final do conto «A Ilha», com uma imagem no topo da página que nos transportava de imediato até às antigas publicações de Pulp Fiction (aquelas revistas que se compravam nos quiosques e se liam com o ânimo de quem não descura uma dimensão literária que não pode ser esquecida: a da leitura recreativa).

Mas o interesse desta brevíssima narração está em que olhando a maqueta e tomando à letra o que se dizia por baixo do título, inquiri o João porque não o sabia autor de «A Noite Em Que a Morte Morreu» e «O Regresso D’ele». Ao que o João, no seu preciosíssimo humor negro (adjectivo manifestamente insuficiente), respondeu… «Pois, nem eu».

Aqui está o ponto de partida para irmos ao encontro de Luís Filipe Silva, num conhecido café de Belém: homem da pulp fiction, da ficção científica, com uma energia mental escaldante e um long coffee na mão (se vamos falar de pulp claro que tem que ser num café americano – penso assim que lá chego) que nos acompanhou numa conversa de mais de uma hora (e outras duas em off).

Luís Filipe Silva é autor de vários títulos, entre eles: «O Futuro à Janela» (Prémio Caminho de Ficção Científica», «Cidade da Carne», «Vinganças» e «Terrarium» (em colaboração com João Barreiros), para além de organizador da colectânea «Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa», em colaboração com Luís Corte Real.

Deu trabalho criar treze biografias com detalhes familiares, editoriais, fotografias…

São quase quatro anos de trabalho, porque o concurso através do qual tudo isto começou teve início em 2008.

Como surgiu o concurso?

De uma proposta minha para fazermos uma antologia de pulp fiction em português para a Saída de Emergência. Inicialmente era para ter uma mistura de contos antigos e modernos, mas encontrámos dificuldade em fazer isso num único volume. Uma boa selecção de autores de qualidade, como o Dinis Machado, o Reinaldo Ferreira, até o Ross Pynn, estavam a ser de certa forma reeditados e recuperados na época. A par disso, sentimos que para procurar conciliar ambas as épocas faria sentido ter dois livros.

Então optaram pelos inéditos…

Pensámos em convidar um conjunto de autores para escreverem no género e ver o que saía dali. De inicio era apenas fazer uma antologia de pulp fiction escrita hoje e apresentada como tal. A ideia era: os portugueses também aprenderam com os seus congéneres estrangeiros e conseguem hoje fazer uma coisa tão boa ou com bastante qualidade face ao que foi feito antes. Há um problema com as antologias feitas hoje, que é uma certa dificuldade em legitimar a pulp fiction. Enquanto que a ficção científica, e outros géneros mais ligados aos detectives ou ao western continuam vivos, a pulp fiction escrita hoje tem dificuldades em legitimar-se. Tentativas como as do Michael Chabon, que publicou uma ou duas antologias de autores modernos a escrever à moda da pulp fiction, não foram necessariamente positivas. Tem tudo que ver com o enquadramento. E é um género que vive muito da expectativa. Estamos em crer que este livro, caído do nada, em que viéssemos dizer que os portugueses também escrevem pulp fiction e especialmente com bastantes autores inéditos – uma coisa era se chamássemos celebridades, etc., mas também é um género em que poucas pessoas se movimentam – teria caído num deserto de atenções.

E o projecto acabou por transformar-se neste livro… És uma pessoa imaginativa.

(Risos) Ao começarmos a montar o livro, começou a ocorrer-me que era giro fazermos um projecto que eu já tinha na ideia há muito tempo: a história fictícia da ficção científica em Portugal. Já tinha até feito um conjunto de biografias, mas nenhuma delas está aqui, era uma coisa completamente à parte, para fazer um artigo autónomo, com um artigo a falar daquilo que a ficção científica poderia ter sido se aqui em Portugal tivesse tido o mesmo dinamismo que teve lá fora. Mas eram só ideias. Dos treze textos, só três autores são convidados e os outros textos são da malta que se meteu ao concurso. A maior parte destes textos tinha uma qualidade tal e um espírito pulp tão entranhado que eu comecei a fazer um exercício de projecção: e se isto fosse ambientado? E se cada um destes autores fosse um autor de uma suposta era gloriosa da pulp fiction? Será que isto conseguiria convencer? E por algum motivo acho que se lermos os textos como tendo sido produzidos hoje, eles perdem uma certa originalidade, perdem um certo glamour em comparação com se pensarmos ou dissermos: isto foi feito há quarenta anos.

Já não sei quem é que dizia que parte do prazer de ler pulp fiction era pegar naquelas revistas antigas e naquele papel…

O tacto, o cheiro. Embora não seja possível reproduzir isso aqui, isso é sugerido.

Tanto que ao ler o livro sente-se uma sensação de prazer que vai além do próprio texto.

As antologias são fáceis de fazer depois de ter os textos. E se tivéssemos feito só isso seria uma perda de oportunidade de transmitir uma experiência de leitura.

Quase como fazer uma viagem no tempo.

E dar aos leitores a oportunidade de apreciarem cada conto por si só, porque ao diferenciar-se o layout, cada conto tem personalidade própria.

Isso sente-se.

Enquanto normalmente os contos mais fortes têm que ser colocados numa certa posição, os outros têm que fazer lastro para chegar a outro, etc., aqui demos oportunidade a todos os contos de sobressaírem por si mesmos, como um bónus de experiência de leitura que não seria possível de outra forma.

Contando que o aspecto visual do conto funciona como se nos levasse ao encontro da personalidade do escritor e à época em que foi escrito. E de pertencer a uma revista com certas características próprias, também. Havia muito a questão das duas colunas, etc. Dar toda essa ambiência de época.

Uma coisa de que mais tarde me apercebi foi que não tínhamos honrado as colecções de romances: a Vampiro, a Colecção X., etc. A partir dos anos sessenta houve um predomínio daquelas colecções e não tanto das revistas. O nosso visual foi orientado para a revista. Porque eu tenho um defeito: olho para aqui e só vejo erros, enganos, omissões e oportunidades perdidas.

Eu acho delicioso o pormenor que temos no conto da Ana Sofia Casaca, em que vemos o carimbo da Biblioteca Municipal de Almada. 

(Risos)

 

Não foste à Biblioteca Municipal de Almada, não estiveste lá com uma máscara a mexer em revistas antigas…

(Risos) Isto é uma honra aos meus quinze anos.

Então isto significa que a pulp fiction enquanto género depende mesmo de uma certa expectativa…

De expectativa e de uma postura de leitura. O que é estranho. É muito estranho… Não relativamente à capacidade de se impor, mas quanto à autenticidade do texto.

Isso porque são textos que têm muito que ver com o social. Quando vemos o detective Valente entrar numa sala cheia de gente rica e poderosa…

Bastante.

Quando vemos contos como aquele em que o Sentinela descobre o oficial nazi, tudo isso tem um lado social muito forte. Não será por isso que o livro não resultaria tão bem se não tivesse esse tal embrulho de que falavas numa outra entrevista?

Eu acho que sim. Se calhar as críticas que temos hoje a fazer são muito mais sofisticadas do que as críticas que tínhamos a fazer há cinquenta anos. Se calhar há cinquenta anos sabíamos muito mais facilmente quais eram os vilões e como vencê-los. E por que é que eles eram maus (Risos).

A Besta estava à vista… 

Agora é mais difícil explicar isso com relatórios e com estatísticas de bolsa e certas leis, mas isso são outras questões. Eventualmente eram tempos mais simples. Se calhar em termos mitómanos eram tempos em que se podiam identificar os bons e os maus. Eram tempos mais a preto e branco. E de facto uma coisa de que eu gostei bastante e que ajudou à elaboração deste conceito foi o facto de essas histórias, como «O Segundo Sol», etc., irem captar na perfeição a mitologia do estado novo, dos agentes da PIDE como agentes efectivos do mal, mas com uma capacidade de transposição como se estivéssemos nos anos quarenta contra os nazis. E achei encantador descobrir que no inconsciente dos autores estava submerso este tipo de mitos e de ligação com essa… pá, com esse tipo de arquétipo do mal. E também a nível dos descobrimentos. Um dos desafios abertos do processo de submissão do concurso era que se tivesse havido uma época de ouro da pulp em Portugal, os descobrimentos teriam sido abordados nos textos, com piratas, aventuras nas índias, etc. Seria natural, enquanto um dos grandes marcos da nossa história. E de facto houve pessoas que responderam ao desafio e que fizeram histórias muito boas nesse âmbito. É claro que depois não podemos fazer um livro só de um tema, então tivemos que diversificar e escolher os melhores de cada. Há uma mensagem inconsciente de certos autores, mesmo no tipo de linguagem arcaica e rebuscada que usam, e eu pensei: isto vai ficar bem se for apresentado como uma recuperação. Porque na prática é isso que parece fazer sentido. Quase que o livro está a apresentar-se como tal.

Ficção dentro da própria ficção?

Tem ficção dentro da própria ficção. Começando com biografias inventadas, que foram muito difíceis de escrever por causa das três orientação que regeram a construção do livro e de que me foi apercebendo ao longo do caminho. Uma delas era essencialmente respeitar a pulp a sério. Lá por dizermos: olha, temos aqui uma história alternativa da pulp, não podíamos de repente ignorar que de facto houve pessoas que trabalharam o género e que não foram reconhecidas, que faziam isto por amor ou para ganhar uns trocos fáceis, mas essencialmente por amor, porque ninguém enriquecia com isto, nem ninguém vai enriquecer com este livro. E isso obrigou-me a uma verdadeira pesquisa.

Uma das maiores singularidades do livro – que eu pessoalmente nunca tinha visto – é que em todo ele, de uma ponta à outra, não podemos descortinar o que é factual do que é ficcional, ou o que podemos ou não tomar por factual.

É preciso pesquisar, ir ao google e ver (Risos). Muito do trabalho aqui envolvido foi para pesquisar e verdadeira pulp. Não torná-la o centro das atenções, senão mais valia fazermos um livro sobre a verdadeira pulp, mas colocar-lhe um número suficiente de contactos e dar-lhe um suficiente número de indícios sem deturpar o cânone existente e sem também, a nível pessoal, desrespeitar alguns dos indivíduos aqui mencionados, mas acima de tudo procurar aquelas áreas cinzentas, aquelas partes ocultas e não cotadas da história, para podermos encaixar lá os nossos ganchos narrativos.

Ou seja, criar uma história paralela da própria pulp fiction portuguesa.

Uma das propostas para título do livro que esteve em cima da mesa foi «A história secreta da pulp fiction portuguesa».

Digo isto porque logo na introdução do livro há uma história da pulp fiction portuguesa, e ao lê-la o público em geral não tem forma de saber se um tal António Assunção, que é apresentado como editor e escritor existiu ou não, se Edgar Silveira existiu ou não. Existiram ou não?

Não existiram (Risos).

 

Mas existiram outros…

Houve pulp fiction em Portugal, mas por algum motivo – se calhar por brincadeira – publicavam como se fossem estrangeiros. E publicavam sem dizerem nada a ninguém. Frank Gold fazia isso, o Dennis McShade fazia isso, o Roussado Pinto, etc. Aliás, todos estes nomes estrangeiros que estão aqui são pseudónimos de autores portugueses (Abre o livro e mostra-me o primeiro parágrafo das dedicatórias). E no segundo parágrafo estão os correspondentes nomes portugueses do escritor. Por exemplo, o Edgar Caygil e o Ross Pynn é o Roussato Pinto, o Dick Haskins é o António Albuquerque, o Dennis Mcshade é o Dinis Mahado, etc. Havia uma consciência de brincadeira.

Que hoje há cada vez menos…

Claro. Houve situações, acho que foi na “Colecção X”, onde até surgiu um romance em que eles inventaram a biografia do autor e o suposto título original. Isto honra essa tradição, só que nessa altura não havia a internet para desmistificar.

Pois… (Risos).

Ainda hoje muitos textos estão ocultos entre os autores estrangeiros. Isso sempre me pareceu uma fraqueza. É uma brincadeira gira, mas quando levada ao exagero uma pessoa perde a noção de género, e os leitores não se identificam e não percebem que estão a ler coisas em português. Se esses tipos se tivessem assumido como autores portugueses… Há aqui vários motivos: o motivo económico, o motivo da legitimidade e o motivo da censura, porque às vezes havia coisas que não era conveniente assumir-se. Mas se eles se tivessem assumido como autores portugueses, possivelmente hoje teríamos uma história do género um bocadinho mais forte do que temos. Assim, só alguns carolas que se conhecem uns aos outros e vão lendo alguns artigos é que sabem quem eles são.

Então podemos dizer que existe mesmo uma história secreta da pulp fiction portuguesa.

Acaba por haver uma história secreta da pulp fiction portuguesa, que agora já não é tão secreta para quem ler um conjunto de artigos em certos jornais, mas eles não estão todos recolhidos num livro, e era preciso um livro com entrevistas a várias personalidades para recolher todas essas histórias. Isso era um trabalho monumental, mas fundamental. Nós não nos achámos capazes de fazer isso, mas isto (aponta para o livro) de certa forma acaba por ser também uma achega como quem diz: há coisas giras, devíamos contar esta história. Nós não estamos a contar essa história, estamos a contar a história ao lado. Gostava que isso saísse como efeito secundário do livro.

 

Ao longo da primeira metade do séc. XX a pulp fiction acabou por tornar-se um fenómeno literário duradouro que criou uma tradição de produção literária de baixo custo, especialmente nos países anglo-saxónicos…

Essencialmente. Mas em Espanha também houve coisas como as «Novelas de a duro» ou a «Nueva Dimensión» – que eram folhetins escritos por espanhóis e publicados por poucos vinténs – e que duraram até aos anos setenta, até uma década antes da queda do regime franquista. Muito boa ficção científica, por acaso. Em Itália houve um género muito específico de histórias de terror.

Mas na Inglaterra e nos Estados Unidos a pulp vendia, produzia-se a sério, havia muita gente a escrever e a ler, e isso serviu para estabelecer um género com certas características identificáveis, enquanto que em Portugal foi sempre completamente marginal. Podemos falar de uma literatura pulp portuguesa ou são realidades incomparáveis?

Eu penso que se pode falar de uma literatura pulp portuguesa, mas do que eu conheço era uma literatura de folhetins, muito influenciada pelo estrangeiro, muito baseada nas traduções. Uma das propostas base da história ficcional deste livro é que os portugueses não tiveram vergonha de escrever em português como um português, com nome português e em situações que se passavam cá, e, mesmo influenciados pelos estrangeiros, situarem as coisas cá e construírem toda uma mítica em volta da realidade portuguesa.

Vemos detectives a actuarem em Lisboa… Algo que não estamos acostumados a ler.

Há aqui o fenómeno do Capitão João Silva (risos). O capitão João Silva a comando de uma nave pelo espaço inter-estrelar, durante muito tempo era uma sátira. Se ele se chamasse John Smith já não havia problemas com isso. Nós sempre tivemos esta dificuldade de assumirmo-nos como capazes de pertencer a uma ficção fantástica.

Talvez não fosse uma coisa tão próxima da nossa realidade. A sociedade portuguesa tinha características diferentes.

Lá fora também tínhamos o Macartismo, eles participaram na segunda guerra, eventualmente há aqui uma questão cultural.

Pelo menos duas ou três das histórias deste livro são passadas com personagens alemãs durante o período da segunda guerra mundial. É um tema mais próximo da pulp fiction tradicional.

A pulp fiction na América acaba nos anos cinquenta. As histórias de espiões vão acontecer durante os anos da guerra, um bocado de forma propagandística contra os alemães, com exaltação das forças americanas quando elas mais tarde entram na guerra. Depois vão-se estender obviamente no pós-guerra. Mas a segunda guerra apanha a pulp fiction já após o auge, que acontece em finais dos anos trinta. Nos anos cinquenta, o paperback veio finalmente matar a pulp fiction em termos de revista, porque o paperback torna-se muito barato, os autores migram porque o paperback paga muito melhor. Mantendo-se ainda um conjunto de revistas durante bastantes décadas, o grosso da pulp fiction vai morrer gradualmente, e depois vêm as transformações sociais e culturais dos anos sessenta e acabam de vez com a cultura mais básica, devido a todo aquele experimentalismo, que na literatura de género, com a New Wave, etc., se intromete, procurando dizer as coisas de novas formas. Depois nos anos setenta, com o Star Wars, com a expansão do cinema…

Não havia televisão, só havia os boletins radiofónicos…

A única forma de as pessoas contactarem com a ficção de uma forma regular era nos jornais, nos folhetins e na pulp fiction. A pulp fiction era o ópio dos jovens. Hoje são os videojogos. Os videojogos hoje são a pulp fiction de outros tempos.

E as séries televisivas, por exemplo.

E tal como nas séries, na pulp há coisas que são boas e coisas que são más. Hoje publica-se muita pulp fiction em reacção a coisas do dia-a-dia da sociedade moderna, mas nós é que não lhe chamamos pulp fiction. O que é o surgimento dos romances históricos e o pico dos romances históricos que não pulp fiction? O que é «O Último Segredo» do José Rodrigues dos Santos senão pulp fiction? O que é o Dan Brown que não pulp fiction?

Literatura popular…

Mas sem a profundidade de um clássico, sem a profundidade de analisar uma época. É uma literatura que reage a anseios, a questões, se calhar a gostos imediatos. O Dan Brown, só por si, inaugura, ou lança, ou redescobre um tipo de ficção que é a ficção pseudo-católica sobre mitos católicos. Mitos populares, mas de uma forma que não vai aprofundar a história do cristianismo.

Não achas que a antiga pulp fiction e ficção científica tinham um universo imagético muito mais rico do que esta nova pulp fiction – se lhe quisermos chamar assim – tem?

Pessoalmente tenho grandes problemas com aquilo que é a pulp fiction. A máquina editorial que existe hoje em dia, resultado da globalização e dos grupos editoriais, consegue impor globalmente tendências, temas e livros, o que antigamente não acontecia. As coisas chegavam cá por osmose. Os temas dos vampiros são os que hoje se podem considerar pulp fiction dentro da ficção científica. Se pensarmos na ficção científica como um género que já tem uma certa maturidade, capaz de falar sobre conceitos filosóficos, o devir da humanidade, sobre a nossa situação em relação com a tecnologia, a nossa responsabilidade, etc., temos um cânone e uma respeitabilidade que já não é a da maior parte dos seguidores. A maior parte dos seguidores está a olhar para as coisas simples dos zombies, e aqueles efeitos simples da vampirada, da fantasia. Quando se torna demasiado sério, o pessoal migra outra vez para uma pulp mais light.

Isso pode implicar um certo empobrecimento…

Falando especificamente do nosso país, há sempre uma quebra de cada geração com a anterior, e estão sempre a redescobrir aquilo que já foi descoberto.

Tenho percebido que tens uma perspectiva que procura uma pulp fiction que não negue o trabalho estético ao nível da linguagem.

Um livro é capaz de rasgos conceptuais… Há coisas que se fazem no cinema e não se conseguem fazer na prosa. E no teatro também se fazem cosias que não se conseguem fazer na prosa. Usar um meio para transpor outro meio é uma perda de oportunidade. Não há nada melhor na literatura do que a estética e a beleza da prosa, quando perfeitamente misturada com conceitos. A prosa simples não é o que pretendo. Acho que temos alguns exemplos clássicos de bons autores que transmitem ideias simples com prosa elaborada. Ideias complexas, ideias interessantes, perspectivas inovadoras sobre o mundo, apresentadas com uma prosa elaborada e madura.

Nota-se que isso foi tido em conta ao seleccionar os contos para este livro.

Um conto com um bom enredo mas mal escrito não entrava.

E o contrário também era válido?

Houve textos que estavam muito bem escritos mas não tinham história. Pus-me a pensar que eram quadros, vinhetas paradas no tempo, tal como a Virgínia Woolf fez. Isso não honrava a tradição do pulp. O pulp tem que ter uma história, tem que ter um enredo, no mínimo.

E a pulp fiction, vista como aquela pulp fiction da primeira metade do século XX., ainda tem lugar hoje em dia?

Acho que a pulp fiction existe hoje em dia, senão não a chamaríamos assim. Para todos os efeitos, noventa por cento do que nessa altura se escrevia era muito mau. Os próprios autores diziam que escreviam aquilo numa tarde ou em duas horas e enviavam ao editor sem rever porque precisavam de um cheque para pagar ao senhorio nessa mesma tarde. Eles faziam isso assim, só que é uma forma de vida muito ao limite. Isso obviamente não é literatura ponderada. Contudo, no meio daquilo é uma forma de subsistência.

Hoje continua-se a escrever para subsistir… E às vezes até para subsistir bastante bem.

(Risos) Infelizmente em Portugal nem isso (Risos). Não sei se conheces o Max Brand, que foi o tipo que começou as histórias do Shadow, que estão homenageadas na capa do livro: era um tipo com uma formação clássica. Ganhou tanto dinheiro com as histórias que escreveu – acho que ele escrevia um milhão de palavras por ano – que comprou um chalé em Itália e de manhã escrevia sonetos homéricos e à tarde escrevia histórias do Shadow e outros. Tinha formação clássica. Era um bom escritor. O Irmão do Faulkner escrevia pulp fiction, só que era um mau escritor, e conta-se que o Faulkner de vez em quando dava-lhe uma ajuda. O Jim Thompson era um tipo com uma vida destruída, bêbado, etc., mas escrevia histórias noir com recursos estilísticos que no pulp não era habitual ver-se. Na ficção científica, o Barrington Bayley escrevia histórias em que em cento e tal páginas descrevia uma teoria cosmológica inédita. É uma coisa espantosa.

O poder imagético é uma dascaracterísticas da ficção científica e da pulp…

Alguns conseguem introduzir conceitos filosóficos num conto de um tipo que está a atravessar o universo a ver uma história sobre si mesmo.

Olhando para a badana do livro – julgo que esta parte é completamente factual (Risos) – tive que ir ao Google confirmar…

(Risos) Há coisas que têm que se respeitar.

Cresceste a ler o Tintin, a Argonauta, a Vampiro… A literatura popular e de ficção científica fez parte do teu crescimento…

Pelo menos noventa por cento. Li muitos clássicos, e ainda leio.

Este livro é um regresso à tua infância?

Acho que é uma viagem para além da infância. É uma viagem para construir algo, construir um mundo no qual eu gostaria de ter nascido.

Gostarias de ter nascido?

Por que eu gostava de ter tido uma base lusitana, em português – para todos os efeitos a minha língua é a minha pátria, como o outro diz – mas poderíamos ter tido um género, um conjunto de autores que honrássemos, que seguíssemos, que contrariássemos, que rejeitássemos, mas com toda essa dinâmica de estarmos num país com uma literatura pulp viva.

E estamos a tempo de fazer isso em Portugal, ou a pulp fiction é um género completamente esquecido aqui no nosso cantinho?

Acho que não. Não sei o que é que vai sair daqui. Acho que há muita gente a escrever hoje. Há muita gente a ser ignorada hoje, também.

Pouco espaço editorial?

Há pouco espaço crítico. O meu problema não é a publicação. O meu problema é a crítica. Há três vectores para uma literatura se desenvolver: é preciso um autor, uma ideia e um conceito para escrever e para inovar. Depois é preciso colocá-lo cá fora para o conhecimento de todos, e é preciso quem o aprecie. E finalmente é preciso quem o critique. E criticar é um ler informado. É um ler conhecendo as referências, conseguindo isolar as preferências pessoais, com o objectivo de entender o livro como uma obra escrita. Enquanto o leitor se deixa embrenhar pelos truques de magia, o crítico é outro mágico: é o mágico que está na plateia a saber como é que aquilo está a ser feito e a olhar para a técnica e para a intenção e não para a ução.

Isso não existe em Portugal?

Existe muito pouco. E uma pessoa abre o The Guardian, uma pessoa abre o New York Time Review Books, e aquilo… Posso confessar uma coisa: só me preocupei em perceber a mensagem do «Evangelho segundo Jesus Cristo» do Saramago quando vi o livro criticado no The Guardian enquanto proposta literária inserida num cânone católico. Bolas, isto explica um livro. Isto explica a intenção do autor. Porque até então tinha lido bastantes críticas em Portugal em que os críticos estavam mais interessados em fazer prosa literária a respeito de uma crítica. Estavam a chegar a uma ficção em torno de uma crítica e não a fazer uma crítica ao livro. Era a altura em que as críticas eram obrigatoriamente obscuras, densas, mas não diziam nada. Assim não se vai a lado nenhum. E depois há a outra questão. Os autores hoje têm tanta dificuldade em publicar como facilmente são ignorados. E o serem ignorados é: há poucas revistas sobre novidades, as que são abertas e receptivas a todos os géneros têm pouco espaço para crítica. Por vezes num blogue encontra-se mais informação do que em certas revistas. As que têm artigos de fundo olham só para o estrelato e se calhar daí têm alguma altivez.

Há a Bang!

A Bang! é muito limitada e tem outro propósito. Aquelas revistas saíam semanalmente, ou quinzenalmente ou mensalmente com contos, com séries, para fidelizar um público, e inauguraram o fórum de discussão – era o facebook da altura. Quando o Hugo Gernsback lança a «Amazing Stories», apercebe-se do poder da base de leitores e inaugura o correio dos leitores, mas permitindo a troca de opiniões e a discussão entre estes: não só os leitores a dirigirem-se à revista, mas os leitores a discutirem entre si. E isto fidelizou as pessoas, começou a ajudar a formar as comunidades de fãs.

Falando nesse espaço crítico, que sendo pequeno é o que por cá temos, numa crítica que saiu no Público, feita pelo Rogério Casanova, ele dizia que renegar os cowboys, os corsários, detectives e extraterrestres só porque descobrimos os modernistas é o equivalente moral a renegar amigos de infância só porque ganhámos o totoloto. Em Portugal há um certo pedantismo que teima em ver a pulp fiction como um subgénero literário de menor importância?

Eu diria que sim. Não sei lhe chamaria tanto pedantismo como um receio da vergonha. Porque às vezes é difícil defender a pulp fiction quando não se conseguem explicar as virtudes dela. É um bocado como defender a Susan Boyle antes de ela abrir a boca em palco. Há pessoas que não permanecem o tempo suficiente na sala até que ela comece a cantar.

E em Portugal rejeita-se muita coisa antes de se abrir o livro…

Rejeita-se muita coisa pela capa e às vezes nem pela capa. Por exemplo, neste último Fórum Fantástico falou-se do António de Macedo…

O tal que tentou durante anos fazer uma longa-metragem baseada no conto “A Ilha”, do João Henriques, e não o deixaram… (Risos)

Esse mesmo. (Risos). À parte a parte ficcionada no livro (Na biografia de João Henriques, coincidência), ele foi um dos cineastas do cinema novo que foi um entusiasta do género fantástico. Está a ser feito um documentário em honra dele. Foi-lhe recusado todo o tipo de apoios, e é extraordinário como para certas coisas a censura é mais forte depois do 25 de Abril. É mais subtil, mais inteligente.

Nesse caso, o detective destas histórias tem que ser muito mais arguto (Risos).

Muito mais arguto. O vilão não está bem identificado mas vive ao nosso lado. É nosso vizinho e até concorda connosco em muitas coisas.

Já não é aquele agente das SS…

Já não é aquele agente das SS.

 

Está previsto algum seguimento para este projecto? Não sei se na Saída de Emergência ou não…

Eu tinha ideias. Há uma coisa que gostava de fazer, que era o best of da Falcão Lusitano. Eventualmente fazer uma antologia de autores modernos que escrevessem à moda dos autores que leram na biblioteca dos pais e dos avós. O Orlando Moreira dos dias de hoje a escrever à moda do Orlando Moreira de Antigamente. (Risos). O João Henriques a escrever à moda do João Henriques dos anos sessenta.

Na ficção tudo acaba por ser aceite.

É a lógica dos filmes históricos em que o gajo tem um relógio de pulso.

Ou uns ténis…

Exactamente (Risos). Isso era escrever um livro sobre as falsificações da pulp fiction que nunca existiu.

 

E este livro? Como é que tem sido recebido?

No global tem sido muito bem recebido. Há a reacção do pessoal que já conhece minimamente o meio ou seguiu a questão do concurso e espantou-se ao início mas percebeu logo que era uma brincadeira, e tens o pessoal que acreditou piamente… Há as pessoas que acreditam durante trinta segundos mas depois vão ao google e percebem logo que aquela gente não existiu. Ainda esta semana soube que o Jorge Magalhães, que é um dos nossos grandes colectores de histórias sobre o passado, e até é mencionado aqui… Já agora ficas a saber que a única parte verdadeira deste livro é este parágrafo (Abre o livro e ponta a página 413).

Então o livro tem uma página completamente verídica. O leitor pode ficar descansado.

(Risos) Contaram-me of record que ele (Jorge Magalhães) disse que estava a procurar nos livros de referência dele e não encontrava aqueles tipos lá. E estava a pensar: mas isto é verdade, não é… E foi só quando viu uma das fotografias, que são de gente conhecida, que percebeu.

As fotos das biografias são maioritariamente de gente conhecida. Actrizes…

Um mafioso de Chicago, por exemplo (Risos).

Fui-me apercebendo que conhecia algumas destas caras. 

Todo o aspecto visual foi com o Corte Real. Ele foi magnífico. Quando ele aceitou esta proposta de fazermos uma edição do passado, teve imediatamente a ideia de fazermos isto em duas colunas, com fotografias, imagens, etc. Eu nisso sou um zero à esquerda. Achei a ideia gira mas fiquei preocupado. Quando ele me mandou as primeiras maquetas eu olhei para isto e pensei: isto está a dar-me ideias para mais. Foi um trabalho de equipa extraordinário.

Quando o livro saiu e eu telefonei ao João Henriques, o que ele me disse foi que nunca pensou que tu levasses a piada tão longe (Risos). Não conheço nenhuma piada literária a este nível, conheces?

Existem coisas muto boas, feitas nos Estados Unidos. Mas se calhar não a este nível. A ironia aqui é dizer que esta literatura pode ter muitos defeitos, mas quando ela quer espicaçar, quando quer bater consegue bater. E depois acaba por ser penalizada na história por ser imposta como uma literatura adulta que teve coragem de criticar alguma coisa.

Já alguém te disse que se sentiu enganado?

(Risos) A recompensa de alguém que sinta enganado é acreditar que este país pode não ter um futuro maravilhoso, mas ele, leitor, acreditou durante aqueles instantes que teve um passado recente glorioso.

És capaz de receber um ou outro telefonema…

A falta de sensibilidade não se resolve.

A minha experiência entre os Abokowo #9

Dentro da selva existe um animal semelhante a um jaguar, cujas pintas são feitas de canções sagradas. Chamam-no asyda e é o animal do tempo. É ávido por anos e o que ele faz é caçar os dias, a juventude (que está cheia de tempo), os anos. Assim tudo envelhece, porque o jaguar sem tempo não tem tempo, e quando acaba cada uma das suas caçadas – que demoraram, para cada presa, uma vida – deixa apenas umas peles enrugadas ou uns ossos prestes a morrer. Ou somente um punhado de terra.

Afonso Cruz

O Planeta

Depois da descoberta daquele planeta, depois da confirmação das condições favoráveis à vida, depois de todo o planeamento, os humanos partiram em busca da descoberta. A mais potente nave alguma vez construída permitiu o que, antes, seria impensável: alcançar um planeta situado fora da Via Láctea.

Quando a nave aterrou, os passageiros estavam radiantes: seriam os primeiros a contactar com vida extraterrestre. Saíram da nave e já tinham quem os esperasse: os guardas daquela base. Foram levados àquele que parecia ser o líder local. Um sofisticado sistema electrónico fazia a tradução, para que humanos e extraterrestres se pudessem entender. O líder dos humanos transmitiu a sensação partilhada por toda a equipa: parecia que eram esperados, naquele planeta. O líder local explicou que os esperavam, efectivamente.

A sua civilização já estivera na Terra e sabia que, mais cedo ou mais tarde, os humanos chegariam ao seu planeta. Na visita que fizeram à Terra, os extraterrestres não tinham encontrado nada de interessante, excepto uma coisa: de repente, a nona sinfonia de Beethoven começou a tocar, naquela sala. O líder local explicou:

– Vocês têm uma capacidade musical extraordinária!

João Nogueira Dias

Aventuras de Pinóquio” – Edição Arte Plural e Círculo de Leitores.

Rejeito qualquer teoria da literatura, qualquer academismo, que normalmente existe nos meus textos, para, simplesmente, falar sobre um amigo de infância. O seu nome é Pinóquio e tenho a certeza de que o conhecem

O livro “As aventuras de Pinóquio”, editado pelo Círculo de Leitores/Arte Plural, obrigou-me a interromper o texto que estava a preparar para esta crónica. A magistral história de Carlo Collodi encontrou as ilustrações que merece. Zdenco Basic fez um trabalho extraordinário.

Há personagens que sobrevivem ao tempo e ultrapassam, inclusive, o nome dos próprios autores. Lembramo-nos de Pinóquio e de Peter Pan. Lembramo-nos também, embora com um enorme desvio interpretativo, de Alice e de Moby Dick. Menos pessoas lembram-se ou sabem os nomes dos seus criadores. E o que será mais importante? Estas personagens habitam o nosso imaginário de crianças, continuam a viver connosco na idade adulta e, certamente, já entraram ou irão entrar no imaginário dos nossos filhos.

Ao olhar para a capa, vejo que, na verdade, a partir do momento em que peguei no livro não mais tive hipótese de deixar de o ler, de o sentir nos meus dedos e encantar-me com as palavras e os seus desenhos. E isto porque Pinóquio não deixa de olhar para mim. O seu olhar triste, a sua mão estendida enquanto se mantém sentado, no teatro de marionetas, de perna flectida, é um pedido irrecusável para o levar para casa.

As cordas que o prendem são as nossas e a liberdade que ele almeja é a nossa também. Talvez por isso ele tenha ficado connosco à espera que nos libertemos dessas amarras e nos deixemos ser …crianças. Há muito pouco a ganhar quando se perde a ingenuidade.

Gepeto, o velho e humilde carpinteiro, é uma figura paternal, criadora, que projecta, de alguma forma, os seus defeitos naquele boneco de madeira. A sociedade faz o resto. E é ao percorrer essas dores de crescimento que Pinóquio nos emociona, nos faz acompanhá-lo porque, talvez, sejamos nós no seu corpo, ou os nossos filhos que esperam a nossa ajuda. Eu gosto do Pinóquio e, repito, não me interessa a crítica literária para nada quando revejo um amigo que não cresce, um amigo que sempre esteve comigo para me ajudar a percorrer outras palavras, outras imagens, outros mundos mais libertos da ditadura imposta pelas limitações dos nossos olhos.

Eu ia escrever sobre campos de concentração…mas o Natal está a chegar e vou convidar o menino Pinóquio a sentar-se junto dos presentes e dos chocolates. Ficará ali sentado enquanto uma criança anda a tentar perceber o conteúdo dos embrulhos e a comer, clandestinamente, as bolas de chocolate penduradas na árvore de Natal. Estará connosco até porque nunca deixou de estar.

Zdenko Basic construiu imagens que honram o texto. Tudo é magnífico dentro do livro. Há uma presumível influência de Tim Burton nos seus desenhos: a obscuridade, a expressão corporal, a capacidade de as figuras emanciparem-se das palavras e, por si, contarem a história. A imagética remete para várias influências. Se a capa nos transmite um pungente pedido de acolhimento, a contracapa é sublime: Gepeto, tal como em “Criação de Adão”, de Michelangelo Buonarroti (baseado em Genesis, 1:27, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança), aproxima o seu indicador da sua criação.

Por estas razões, “ As aventuras de Pinóquio” oferecem vários pontos de abordagem: a leitura da adaptação do texto de Collodi por Stella Gurney, a fruição das ilustrações de Zdenko Basic ou…tudo em simultâneo. Assim, qualquer criança, qualquer adulto que ainda seja uma criança, pode adoptar este Pinóquio e acompanhá-lo da forma que quiser.

Mário Rufino

Minerva

Silêncio, antes. A primeira respiração. O corpo contrai-se devagar, suspende-se. As pálpebras duas vezes, devagar, a boca uma fenda delicada para

e fios de aço em trança explodindo súbitos numa maré violenta contra o centro do corpo, uma cortina de fogo descendo, cabelos, pescoço, medula.

Ele encolhe-se perante o som e fecha os olhos com força: encolhe-se para dentro, primeiro, para logo se expandir, os seus braços asas, o seu corpo voo.

Abre os olhos e dos lábios uma película de ar quase uma palavra. Quase amo-te, quase adeus (ou quero-te ou perdoa-me). A primeira respiração, ainda, o ar que o peito retém, fervendo.

O coração inteiro de uma só vez.

João Silveira

A minha experiência entre os Abokowo #8

As palavras entre os Abokowo confundem-se com os gestos. Por exemplo, a palavra “amo-te” implica caçar vivo um minúsculo pássaro castanho e amarelo – que nidifica  dentro de ovos partidos de jacarés –  e oferecê-lo. Já o léxico para vingança é mais simples e apenas exige uma dança frenética, uma loucura temporária, porque, dizem os Abokowo, a vingança é uma demência.

Afonso Cruz

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Vigésimo primeiro Episódio

CAPÍTULO XXXII

Roteiro 1 (primeiro esboço)

(Pouca luz, de modo que só se percebem sombras. No espaço, uma poltrona com uma mulher cabisbaixa, amordaçada, amarrada e nua. Um homem com barba por fazer, descabelado, vestindo terno com gravata fora do lugar, segura um revólver. Às suas costas, um espelho. No chão, álbuns de fotografia e fotos antigas espalhadas.)

(Des)memória 1: Você algum dia me perguntou se eu estava bem ou feliz? Perguntou? Ah?! Vamos, me responda! É claro que não vai me responder! Nem pode. Nunca se preocupou com isso. E o medo que eu dissesse que não! Ah?! Perder seu referencial de sucesso. Reencontrar a sua metade mal sucedida. Bela merda o sucesso! Que foi dele? Um diploma? Uma carreira? Uma vida estável e escrota? Seu silêncio sempre me incomodou. Ah, como me irritava seu silêncio! Não, nem precisa dizer o que pensa. Melhor calar. O silêncio é o soberano entre as respostas afirmativas. Não dizer é confirmar o questionado. E de que adiantaria me perguntar: você está bem, é feliz? Se nem eu sei o que quer dizer isso. (pausa, deixa de intimidar a mulher, distanciando-se.)

 

(continua)

A Ratazana

Todas as noites, o marujo senta-se à mesa de costume. Não troca palavras conosco: volta toda sua atenção para a ratazana, que salta do bolso da sua japona. É o sinal para que o garçom lhe sirva uma cerveja e grãos de milho ao animal.

Enquanto bebe, o marujo contempla-a fascinado e alisa o seu pêlo sedoso. A ratazana, terminando de comer, retribui com cabriolas, que muito nos divertem. Depois, o dono do bar põe um disco na vitrola, e o homem dança com o animal entre os braços.

Contudo, há dias em que a ratazana se recusa a sair do bolso da japona, ou se esconde sob a boina do marujo. Uma noite, incomodada pela solicitude do companheiro, chegou a mordê-lo brutalmente. Mas é uma exceção nos hábitos deste animal, que, via de regra, tem comportamento exemplar, alimentando-se com evidente prazer ou correndo o salão nos braços do marujo.

Álvaro Cardoso Gomes