Asas

O coto das asas surgiu-lhe nas costas quando a mulher se tornou minha amante. O bico e as penas apareceram depois. Já então ensaiava voar, pulando do guarda-roupa para a mesa e daí para o chão. A mulher, irritando-se porque ele defecava no assoalho e passava as noites crocitando, exigiu  que o expulsasse de casa.

Antes que eu tomasse a iniciativa, ele atirou-se da janela. Para minha surpresa, as asas suportaram-lhe o peso, e ele acabou pousando num plátano em  frente à casa.

E de lá passou a vigiar-nos. A mulher atirava-lhe pedras, ele fugia  para longe, mas acabava sempre voltando para a árvore. E sua presença só me fazia crescer o remorso. Suportando o frio, a fome, a sede, mostrava-me o quanto fora ingrato.

Um dia, a mulher me deixou. Em vista disso, temendo pela solidão, chamei-o da janela. Mas ele só fez abanar a cabeça, já toda coroada  de penas, e crocitou:

Never more, Never, more.

Álvaro Cardoso Gomes