MUNDO CÃO | Cristina Carvalho

Lagosta suada em crepes doces
Frango na púcara
Coelho desossado com puré de legumes
Vaca gourmet
Salmão no forno com batatinhas
Atum com salada russa e maionese
Refeição light
Leite creme sem açúcar
Leite creme com açúcar
Pastéis de nata felinos
Pastéis de nata caninos

Ora aí está! À escolha do freguês! Basta ir ao supermercado, deambular uns minutos pela zona da alimentação dos animais domésticos e é o que se nos depara. Comida variada, alguma a preços exorbitantes, comida fina, cuidada e escolhida na qual um “sem abrigo” canino ou felino nunca porá um olho, quanto mais os dois olhos! Mas está bem! São os nossos bichinhos de estimação ou de companhia ou como lhes queiramos chamar. E merecem tudo! São atentos, amigos, protetores cuidadosos; comem à mesa, dormem nas nossas camas, aos pés da cama porque são muito quentinhos; exigem tudo de nós porque, muitas vezes, aqueles olhinhos tão fiéis e serenos são melhores que o olhar de um ser humano.
Ná! Para os “meninos”, só do melhor! E uma visita à loja dos animais? Lá há de tudo! Coleiras de todas as cores e de todos os comprimentos, ossos de borracha, ratos de peluche, cadelas insufláveis, gatas de peluche, mantinhas, telhados de plástico para gatos com cio, camas redondas, quadradas, ovais, mata pulgas, águas de colónia com cheiro a leão, outras com cheiro a tigre, pó de talco, capas de invernoso xadrez para cobrir os seus lombos já de si peludos, latinhas de comida gourmet com especialidades francesas, molduras, brinquedos, música até!
E também há os hospitais e as urgências hospitalares e os psicólogos de animais e os serviços funerários. Até missas deve haver! Tudo em silêncio, sem grandes divulgações, mas deve haver! Cemitérios animalescos cheios de campas e flores frescas, há-os, que bem sabemos onde.
É mais que a conta!
Dantes, muito dantes, no tempo em que os animais falavam, os gatos comiam os restos dos pratos e lambiscavam, quando muito, um pires de leite. E era bela, essa imagem do gato a lambiscar o pires de leite! Estava certa, essa imagem. Um homem é um homem, um gato é um gato. E para o cão cozia-se-lhe um tacho de arroz com aparas de carne trazidas do talho. E também roía uns ossos a sério, ensanguentados, com pedacinhos de carne agarrada e levava um dia inteiro a roer o osso. Satisfeito! Um animal satisfeito!
Ou eu estou a ver mal, ou a vida toda levou um grande avanço! Um grande e bom avanço! Hoje, tudo lhes faz mal. Espinhas, ossos, pescoços de frango, peles, ratos, ratazanas, passaritos, lesmas, nem pensar! Ficavam doentes, de certeza absoluta. Unhas? Cortadas mensalmente para não dizer, quinzenalmente. Um chinelo roído? Nem pensar! Há bonecos de borracha próprios para roer e remoer as saudades dos instintos, quando por 1 euro e meio poder-se-ia comprar um belo par de chinelos no loja dos trezentos e satisfazer aquele gosto antigo.
Dantes, muito dantes, “mundo cão” designava a nossa triste condição humana. Tudo o que de mal nos fazem, nos desejam, nos obrigam a fazer; tudo a que o ser humano está sujeito, todas as humilhações, todas as injustiças, toda a precariedade desta nossa existência.
Talvez ainda hoje seja este o real significado da frase “mundo cão” que traduz esse tal meio inóspito, rude, incompreensível que é o mundo onde vivemos. Mas só mesmo para os humanos, porque para os cães, gatos e outros fiéis companheiros, pelos vistos, não é assim.
Nem todos.

CRISTINA CARVALHO
Crónica de Março de 2012

O incêndio

Um dia queimei a biblioteca da cidade na minha cabeça, sem piedade por nenhum dos autores e fui-me sentar no chão a comer com as cabras e a olhar o mar, que estava ainda perto dos olhos quando os empurrava para a brisa. Chegaste alto e não me importei que não soubesses quem foi Sartre, nem Napoleão nem Walter Benjamin.

Não me afligiu que não soubesses escrever o teu nome sem que te entrasse ar para os pulmões, nem que juntasses a testa húmida à écharpe de seda que te brindei.

Da biblioteca, não há nenhuma frase importante que tenha sobrevivido a esse fogo, que me pareceu tardio.

Na ponta da minha língua só há restos de erva com areias.

A tua mão desocupada toca uma das cabras e ela entoa um cântico. Depois adeja pelos céus espaçosos e ficamos a vê-la.

Os teus olhos de carvão quente dentro da minha cabeça.

Gabriela Ludovice

Salteadores

Salteadores de estrada não os houve só na Idade Média ou no caminho entre Jericó e Jerusalém. No século XX em São Miguel também apareciam alguns, que inquietavam carroceiros e outros viandantes. Como aconteceu com um burriqueiro que fora das Furnas a Ponta Delgada vender madeira. Num sítio escuso, surgiram-lhe dois larápios a exigir-lhe a magra bolsa ou a curta vida. O homem pegou nas moedas que o negócio rendera e atirou-as ao chão, dizendo: “Amigos, eu tive de trabalhar muito por isto, mas vocês vão ter de trabalhar também um poucochinho para o juntarem.” Mal o dinheiro caíra no caminho e já os dois se baixavam para o recolher. De imediato o burriqueiro pegou no bordão que servia para tanger o burro e para o mais que necessário fosse, e deu sem dó nem piedade nas costas que a avidez lhe oferecera como alvo fácil. E, depois de as moedas terem tornado ao devido bolso, pôs-se a salvo enquanto o par de gatunos dormia um inesperado sono.

Daniel de Sá

Quando jovem

Quando jovem eu gostava de ficar triste. Uma vez passei três dias na cama. Mamãe vinha me perguntar o que estava acontecendo. Nada, eu dizia, e virava de lado profundamente contente. Até que tive que levantar e ser feliz. Que trabalheira.

Livia Garcia-Roza

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Quadragésimo Segundo Episódio

Perdido 103

(ao ouvir o tiro, a polícia invade o recinto, liberada pela policial, das amarras, a mulher corre na direção do homem caído no chão, ao redor uma poça de sangue, acomoda sua cabeça no colo, não precisaria perguntar: Você está feliz? Está bem? O silêncio respondia por ele…)
 

(continua)

Exercício para se não encontrar o chão do mar

Experimentemos a rua inclinada da urbe.

A vitrina que se sucede à vitrina, em fileira na via que para uns sobe e para outros desce, serve o próprio, não para se imaginar em elaborações a partir de si enquanto vulto, mas para se ver como um outro, irreparavelmente, se insiste em nela se reconhecer. Assim pode que aconteça também aos amores que passam de nada a tudo e de tudo a nada, ao mutuamente se fixarem.

Gabriela Ludovice

Atraso

Quando o condutor do camião saiu de casa, dirigiu-se para o veículo que conduzia, assobiando uma melodia que lhe estava no ouvido. Entrou no camião, ligou o motor e iniciou a marcha. Tinha andado cerca de cem metros quando se lembrou que a carteira ficara em casa. Como se poderia ter esquecido, se a rotina preenchia aqueles momentos da manhã, imediatamente antes da saída para o trabalho. Parou o camião e correu até casa. Pegou na carteira e saiu.

O trabalhador estava pendurado, por uma corda, a mais de cem metros de altura, utando o seu trabalho num edifício bastante alto. Estava muito cansado, pelo facto de não ter dormido, na noite anterior. Com o cansaço, nem reparara que tinha atado a corda de forma errada.

Desde que o nó começou a ceder, até que a corda se soltou, não passaram dez segundos. O trabalhador caiu, tendo tempo para pensar que a morte o esperava, no chão. O camião passou por ali, nem antes, nem depois, exactamente no momento em que o trabalhador chegava àquele ponto. Este caiu na caixa do camião, cheia de areia. Depois de se sacudir, parou para pensar na sorte que tivera.

João Nogueira Dias

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Quadragésimo Episódio

Canto primeiro

Risos contidos. Cenário de sombras. Cheiro de velas. Assim o clima. Os passos artificialmente leves. Um acalcanhar em medos. A moral apre(e)ndida destoava. Desde muito cedo. Dissonâncias. No presenciado na casa e na rua. Nunca a verdade. Os estranhos sons noturnos como obra Dele. Anjos e santos gemiam nas madrugadas. Maldades zuniam como abelhas. Realidade e boato no mesmo patamar. Mas corpo em brotamento. Passado apagado pela moeda. Tudo tem seu preço. Diante de anjos e santos. Convulsionando. Gemido (in)contido. Fixado no pecado. Não fosse o badalar do sino…

 

(continua)

KARAKARIOKA (VI) – Carnaval no Pão de Açúcar

Olhando daqui do alto do Pão de Açúcar, só vejo pontinhos coloridos aglomerados ao redor do que, suponho, devam ser os trios elétricos. Faz-me lembrar os quadros pontilhistas que a professora de história da arte mostrou no ensino médio: Seurat e Signac, impossível deletar da memória – só que agora transplantados ao Rio de Janeiro, e bem no meio do carnaval.

No caso, não é que a realidade seja representada em pontinhos, cujo sentido precise ser restaurado pelos olhos, refazendo-se a percepção original. Ao contrário, os pontinhos simplemente são a própria realidade que os olhos conseguem captar, sem tirar nem pôr, e qualquer formação imaginada a partir da visão do conjunto não passa de uma – quem sabe interessante – ilusão de ótica. Sei que o mesmo fenômeno se daria em qualquer multidão apreciada do alto, mas neste momento quero crer que tudo isso é especial ao carnaval, e que ele é que faz o pontilhismo manifestar-se assim de cabeça pra baixo. Representação versus representado. Representado versus representação.

Alguém disse pro meu amigo canadense que ele deveria pendurar uma máquina de fotografar no pescoço, colar uma nota de um dólar na testa, vestir uma blusa florida, e com isso ir pular num bloco. Claro que assim, fantasiado de turista, turista é que ele não poderia ser! Ninguém iria chamá-lo de gringo, perguntar se desejava comprar um mapa, ou interessar-se demasiadamente por seus bolsos vazios. Aí ele questionou: E se alguém perceber o meu sotaque? Como sair dessa? Mas ora, sotaque? Quem falou em sotaque? Expliquei-lhe imediatamente que se ele quisesse seguir aquele conselho – fabuloso, diga-se de passagem – e ambicionasse preservar o anonimato, tinha mesmo de ir até o fim: e portanto, só falar em inglês o dia inteiro, representando o papel como deve ser!

Daí porque “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente” deveria ser lema de carnaval, se já não é! O negócio é confundir máscara e pessoa, até que não seja viável estabelecer um limite. Fernando Pessoa e seus heterônimos… Será que Pessoa ousaria fantasiar-se de seu próprio mestre, o Caeiro, o próprio mestre sendo ou quase sendo ele mesmo, numa re-invenção de si?

Percebo que enquanto observo a cidade apinhada, estou sendo ininterruptamente fotografada e filmada por máquinas, celulares, iPhones e iPads aqui em cima.

Pensei que ficando nas alturas conseguiria um tipo de isolamento mágico; seria uma observadora imune à observação dos outros. Enganei-me. Creio que possa ser porque durante o carnaval todos, ainda que não fantasiados, ainda que fora dos blocos e distante dos desfiles, todos sem exceção estejam à merce da curiosidade alheia, passando pelo escrutíneo geral, quer assim o desejem, quer não. Ou talvez pode ser culpa do pequeno abacaxi que usualmente levo equilibrado sobre minha cabeça, como uma marquinha de estilo básica.

Diana Menasché

Prenúncios literários de Lisboa

Ao passar, há dias, pelo Spleen de Baudelaire, reencontrei uma página esquecida e dobrada de onde acabou por emergir a citação que se segue, devidamente sublinhada:

Dis-moi, mon âme refroidie, que penserais-tu d´habiter Lisbonne? Il doit y faire chaud, et tu t´y regaillardirais comme un lézard. Cette ville est au bord de l´eau; on dit qu´elle est bâtie en marbre, et que le peuple y a une telle haine du végétal, qu´il arrache tous les arbres. Voilà un paysage selon ton gout; un paysage fait avec la lumière et le minéral, et liquide pour les réfléchir.”*

Não é verdade – se é que a verdade tem algum sentido! – que as árvores e o elemento vegetal sejam um inimigo frontal de Lisboa. Contudo, é um facto que a Baixa iluminista ilustra, como uma matriz, a vontade radical de domesticar a natureza. Algo que a torrente urbana que se iniciou nos anos sessenta acabou por dar, a seu modo, continuidade. Mas com uma diferença essencial: a Baixa obedece a um geometrismo provocado de tipo iniciático (como um romance matérico de plot garantido), enquanto a avalanche de betão, iniciada na segunda metade do século passado, obedece, com honrosas excepções poético-arquitectónicas, a uma cartografia ‘selvagem’: uma espécie de polifonia à solta, sem autor, nem “História”, nem rumo. O ‘media res’ em jeito de ‘arte bruta’.

A visão de sonho de Baudelaire mitificou, em 1869, a cidade literária, emprestando-lhe o prenúncio de uma geopoética moderna e fazendo da paisagem uma bênção lateral. Os ecos da reconstrução total do terramoto de 1755 não teriam, na altura, ainda mais de meio século. Algumas décadas depois do Spleen, Pessoa chegou a alinhar pelo mesmo diapasão em textos que vislumbraram outras metas que não as da atmosfera literária propriamente dita. Ora leia-se:

“Para o viajante que chega por mar a Lisboa, vista assim de longe, (a cidade) ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima da massa das casas, como arautos distantes desse delicioso lugar, desta abençoada região.”**

Na Ulisseia mitológica, a luz e a pedra avizinham-se da água ao mesmo tempo por dentro e por fora. E é nesse deslizar topográfico, à procura de um sentido sem termo, que Lisboa se transforma, dia-a-dia, numa lua simultaneamente nova e depurada, mas também cheia e frondosa. Apesar de a adjectivação ser pouco recomendável, assim é.

Dir-se-á que Cesário Verde descreveu na sua obra o dilema existencial do homem que pisa o mármore iniciático de Lisboa. O homem que, aprisionado, encara ainda assim o infinito. Tal como José Rodrigues Miguéis o caracterizou a bordo daquela sofrida ânsia que desejaria “rasgar o espaço em direcção a mundos novos”***.

* C. Baudelaire, Petits Poemes En Prose (Le Spleen De Paris), Garnier Frères, Paris, 1962.

** F. Pessoa, O que o Turista Deve Ver, Clássica Editora, Lisboa, 1993.

***J.R. Miguéis, Páscoa Feliz, Estúdio Cor, Lisboa, 1974.

O Murmúrio do Mundo

Lançamento: 16 de Fevereiro de 2012

Desenhos: Bárbara Assis Pacheco

Pré-publicação:

“Habituados aos cómodos incómodos dos nossos passeios aéreos, não é fácil pormo‑nos

na pele dos homens das armadas de outrora, amontoados em acanhados cascos de naus e bergantins, galeões, caravelas e outras embarcaçõesde alto bordo e alto risco, com medo de serem devorados pelos monstros marinhos, ou de que os seus corpos, ao entrarem na zona tórrida, lhes ficassem escuros como os dos povos daquelas quenturas, ou com medo de alcançarem o fim do mundo, lá onde os abismos escancaram as goelas e engolfam navios e homens. Mesmo quem não cria em crendices receava doenças e tormentas e enjoos e tormentos durante os temporais:

Na própria nau de Tristão da Cunha, primeiro que partissem, morreram seis ou sete, e por esta causa achava‑se tão pouca gente para o número que ele havia de levar, que conveio el‑rei mandar soltar alguns presos que estavam julgados para ir cumprir degredos a outras partes, porque a gente do reino não se queria meter neste perigo.

Razões não faltavam para recear a comida estragada, a falta de água, os riscos de ir a terra buscá‑la, os ataques dos mouros e bandoleiros do mar:

Coziam os coiros das arcas por se não poderem manter; e sobre a fome, a água que bebiam era meio salobra e tão barrenta dos enxurros das crescentes que traziam os rios naquela invernada, que não assentava o pé em dous dias, e isto porque não havia aguada que os mouros não tivessem tomada; e se às vezes os nossos à força de armas a queriam ir fazer, uma gota de água custava três de sangue.

E os surtos de escorbuto provocados pela falta de frutos e verduras, as epidemias agravadas pelas demoras durante as calmarias temíveis como os naufrágios:

Ao outro bergantim… acabaram‑se‑lhe os mantimentos e, indo‑os buscar a uma daquelas Ilhas, deram os naturais neles de sobressalto e mataram‑lhe quinze homens com o Capitão… e deu‑lhes uma tormenta com que se apartaram os bergantins… e todas as quatro embarcações assim como estavam vieram à costa e se fizeram em pedaços, onde morreram quinhentas e oitenta e seis pessoas.

E a sorte nem sempre era mais generosa para quem não se afogava logo:

Andámos nus e descalços por aquela praia e por aqueles matos, passando tantos frios e tantas fomes que muitos dos companheiros, estando falando uns com os outros, caíam subitamente mortos em terra, de pura fraqueza, e não causava isto tanto a falta de mantimento, quanto ser esse que comíamos muito prejudicial por ser todo podre e bolorento e, além de feder insuportavelmente, amargava de maneira que não havia quem o pudesse meter na boca… e dos tubarões comíamos uma só talhada da grossura de dois dedos, e assim íamos tão fracos que nos não podíamos ter, e assim passámos muita fome e sede…”

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Trigésimo nono Episódio

Non-sense 5

A barata entrou pelo ralo. Percebi como somos frágeis. Fugimos da noite. Desconhecemos as fragilidades do escuro. Com os sonhos, permanecemos diurnos. Acendemos velas aos mortos para que eles iluminem a última passagem. Mas os olhos dos mortos serviram de alimento aos vermes. Cegos para sempre. Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro. Escrevemos… Escrevemos… Para quê? Não é proibido perguntar…

 

(continua)

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Trigésimo oitavo Episódio

CAPÍTULO VII

Canto terceiro

Saio da loja. Encontro a parceira diante de uma vitrina. Ela sorri tão logo me vê. Aguarda-me. Mas, ao me aproximar, entra na loja e se perde na multidão. Fico parado, extremamente angustiado. Sensação de perder algo muito querido. Não demora, ela sai com dois jovens: um deles, alto, vestindo um blusão vermelho e mochila da mesma cor; outro, de cor mais cáqui, vestido de igual modo. Os três saem abraçados e caminham juntos. Eu atrás… No cruzamento, ela se separa dos jovens. Carrega uma expressão estranha no rosto. Talvez a de quem tenha usado droga e passado a noite em claro. Nos olhamos. Não há diálogo. Caminhamos juntos. Paramos em uma esquina. Penso no tempo em que juntos nunca nos falamos de verdade. Acordados, tornávamos insuportáveis um ao outro, dois estranhos que de comum só o orgasmo.

 

(continua)

Perdão, queira desculpar…

Ele usa uns olhos lânguidos, dir-se-ia que em cada um há um animal que se espreguiça com todas as linhas do corpo. É-me usurpada toda a coerência por um momento, ele olha-me de baixo e desde o amendoado dos seus olhos picados de vermelho e eu perdi o cozinhado das palavras, a razão pôs-se como um sol de renda atrás de um muro velho, a impressão que me fez quase correr pelas ruas alivia-se como se tivesse parado o granizo sobre vidros, tem as mãos demoradas sobre as pernas largadas ao chão, estou atada à sua figura, ao seu rosto sublime, quero arredar-me do delírio mas estou suspensa e sem timão, ele continua a olhar-me como se exalasse as próprias estrelas e eu, sem efectivamente olhar em redor, dobro-me e beijo-o.

Gabriela Ludovice

do gesto contemporâneo do negar e afirmar

do gesto contemporâneo do negar e afirmar – ao fim de seu show, após longos aplausos, branford marsalis retorna ao palco. pensando alto, pergunta-se (e, em decorrência, à banda e ao público): – o que iremos tocar? da plateia, alguém sugere em alto e bom som: – giant steps! como quem não tem que provar mais nada a ninguém, branford marsalis, rindo, não titubeia: – giant steps não, eu já me formei na escola há muito tempo. e toca uma música inteiramente desconhecida do público. terminando-a, sem largar seu instrumento, com toda tranquilidade e como se nada antes tivesse acontecido, vira imediatamente para banda e avisa a próxima a ser tocada: – giant steps.

Alberto Pucheu

Ai que me fazes tanta falta! | Cristina Carvalho

ONTEM
Antigamente, quando havia aqueles colossais guarda-vestidos que ocupavam uma parede inteira dum quarto de dormir, enormes, compactos, maciços, sérios e sisudos, a vida decorria serenamente sobressaltada cheia de segredos escondidos e silenciosos, a coberto de paredes de madeira perfumada. De boa madeira. Esses móveis de ar carrancudo continham, geralmente, do lado esquerdo os fatos do senhor e do lado direito, os vestidos e casacos das senhoras. Nas casas mais abastadas, com mais divisões, havia uma destinada a albergar esses colossos e então, um inteirinho era para o senhor e o outro, para a roupinha da senhora.
Dizia eu que os segredos que esses monstros guardavam eram tesouros inimagináveis que punham em risco permanente as vidas regaladas, confortáveis e bem alimentadas dos cavalheiros que lá guardavam as suas indumentárias: as calças, cada par em seu cabide, os fatos completos ou simplesmente as casacas. Por debaixo destas sombras sem corpo arrumava-se os vários pares de sapatos e botins. Chapéus à parte.
Cada casaca tinha pelo menos quatro bolsos, dois por fora e dois por dentro. Quatro bolsos, quatro abrigos, quatro cantos de cotão, muito amor e algodão!
E como eram ardilosos e secretos esses quatro bolsos! Tanto amor e sedução, tanto caso amarrotado em bolinhas de papel escondidas na escuridão mais profunda de qualquer casaco e seus bolsos cosipados.
Chegava então o dia em que a senhora resolvia arrumar o mostrengo e com a ajuda da criadagem, limpar tudo muito bem limpo, tirar todos os fatos, desarrumar os sapatos, soltar do alto os chapéus e de repente, ai! ai! ai! soltava-se a bolinha de papel amarrotado, escapulia-se, rolava pelo chão, escondia-se em vão debaixo dum qualquer tapete sob o olhar precavido e sempre atento da dona da casa, também dona dum certo coração. De seguida, ela dobrava o seu corpo delicado e pouco habituado a torturas inesperadas e com os dedinhos em pinça, cuidadosamente, conseguia apanhar a bolinha de papel. Depois, cerrava os cortinados para que nenhum olhar indiscreto do prédio ali da frente a visse, sentava-se na beira da cama, mandava a criadagem sair do quarto e devagar, muito devagar e sem ruído abria a bolinha de papel.
“Amo-te, amo¬-te mais que a própria vida” – eram estas as primeiras palavras que se podia ler naquele amargo papel e com alguma dificuldade pois a tinta permanente, de permanente não tinha nada. “Espero-te logo ao fim da tarde no sítio do costume. Até lá, beijo-te com desespero e amor, ó meu anjo, ó meu amigo!”
Como é que cabem tantas palavras encavalitadas num quadradito daqueles é que não se consegue perceber. Agora a senhora mal consegue respirar. Levanta-se agarrada à colcha, chama a criadagem, dá-lhe uma fúria, atira com os fatos todos para o meio do chão, lança todos os sapatos, um por um, pela janela fora, desata aos gritos e sem conseguir conter-se solta uivos duma dor desenganada. Sem saber o que fazer, se continuar a uivar, se secar as lágrimas, se abandonar o lar, ou simplesmente fingir que nada se passa. Apanha, então, a bolinha de papel e torna a amarfanhá-la entre os dedos. Manda colocar os fatos e toda a roupa na colossal caverna de aromática madeira. Hesita entre deitar fora a bola de papel ou tornar a pô-la no mesmo bolso donde caíra.
Toda a vida depende agora dum bolso num certo guarda-vestidos.

HOJE
Um sinal que pica como um alfinete, um ruidozinho equilibrado e certeiro, insistente, teimoso, uma maquiavélica manchita sonora que fica gravada. Um pequeno ecrã esverdeado que se agita e treme e vibra, que chama a atenção nas alturas mais incómodas, um sinal, um sorriso ou uma lágrima impossível de fugir, impossível ignorar.
Caiu mais uma mensagem no telemóvel. O telemóvel esquecido. O perigoso telemóvel. Assustador. Encostado ali ao canto, em cima daquela mesa, onde está o telemóvel? não encontro o telemóvel! que diabo, onde raios o telemóvel…
O som vem de dentro dum roupeiro.
Ele a trabalhar.
Ela em dia de folga.
Limpezas. Hoje é dia do roupeiro!!
E de repente tudo vibra, o chão estremece, sol escuro já não aquece, alma negra, negra alma, mais os jeans pendurados, é som que vibra abafado e aparece o telemóvel, sem saber-se porque sim nem porque não, ali de repente cai e sendo assim, assim sendo, logo se lhe deita a mão e com as pontas dos dedos, afagando devagar, o ecrã muda de cor e a vida corre num esgar, o medo vai de espreitar e o que se vê afinal? o roupeiro é temporal, os jeans são vendaval, “amor vem, quero-te tanto, amor vem ver que te espero lá no sítio do costume…”
Maldição, ai maldição! Vai-te embora ó meu macaco, não posso ver-te outra vez…
Ou como um pequeno objecto consegue estilhaçar toda uma grande vidraça e esmigalhar-se no empedrado do passeio.
Nem mentira nem verdade. Mensagens. Muitas mensagens.
Ainda ontem em papel amarrotado. Hoje ainda, em pequeno ecrã esfumado.

CRISTINA CARVALHO
Crónica de Fevereiro de 2012

As confluências do diverso

“Conhecem Eeva Park, a autora bem sucedida da Estónia? Ou Sigitas Parulskis, o vanguardista da literatura da Letónia? Também Slavenka Drakulic, uma das escritoras mais famosas da Croácia, é desconhecida por uma grande parte do público europeu”. As palavras são de Ingrid Hamm, presidente da Fundação Robert Bosch, na abertura da terceira edição do “Relatório Cultural – Progresso Europeu”, uma edição do Instituto das Relações Internacionais (“ifa”) e da própria Fundação Robert Bosch em cooperação com o British Council, a Pro Helvetia, a Fundação para Cooperação Teuto-Polaca e ainda a Fundação Calouste Gulbenkian. Os escritores referidos por Ingrid Hamm estão entre mais de trinta, com origem em 18 países diferentes, que participam na estimulante publicação.

Os problemas abordados no Relatório são variadíssimos e merecem leitura atenta. Por razões muito diversas. Desde logo porque o papel da literatura, enquanto interface de ligação entre culturas diferentes, é extremamente limitado, devido ao difícil trânsito a que as traduções estão sempre sujeitas. Com efeito, a larga maior parte das traduções entre línguas literárias europeias tem como base o idioma inglês. Com as devidas excepções, são principalmente os escritores da Europa Central e Oriental que permanecem quase desconhecidos no lado mais ocidental do continente. Por outro lado, tal como o Relatório releva e aprofunda em diversos artigos, nomeadamente no texto assinado por Aam Thorpe, o facto de se traduzir intensamente não tem como significado imediato o entendimento mútuo, sendo amiúde reforçados “os antigos clichés em nome da exigência por boas quotas de vendas: a melancolia escandinava, o trauma polaco, o sexo francês”.

Sebastian Korber, Vice-Secretário Geral do Instituto das Relações Internacionais (“ifa”), sintetizou, de modo particularmente centrado, algumas das questões chave a que este oportuno Relatório tenta dar resposta, nomeadamente: “Como caracterizam os escritores a cultura europeia? Quais os avanços e retrocessos observados, na Europa, nos últimos anos?” Ou ainda: como está o continente reagindo e interagindo face ao progressivo papel da digitalização? Que mediações existem, na criação literária, entre a potencialidade dos 140 caracteres do Twitter e a tradição de fôlego de um Guerra e Paz de Tolstoi? Angus Phillips ou Ruediger Wischenbart, entre outros autores, relativam nas suas intervenções estes problemas, sugerindo leituras variadas das realidades emergentes – relativas às tecnologias, aos mercados eou às políticas europeias do livro – e propondo aproximações interessantes.

O volume, de layout cativante (da autoria, já agora, de Eberhard Wolf), surge dividido em duas grandes áreas – “A Europa Lê” e “Progresso Europeu? – e reúne textos de intensidade e problematização muito diferenciada. Salientaríamos, no entanto, salvaguardando outras opções e entradas, algumas das abordagens, mais incisivas, casos de Uma declaração de amor (Umberto Eco), Ser Traduzido ou não ser (Gabriella Gonczy), Espaços em rede (Sigrid Bousset), Pequenas e grandes nações tradutoras (Josep Bargalló), Velha mas não necessariamente sábia (Ulrike Draesner), Cultura do medo (Beqe Cufaj) e Tão perto e mesmo assim tão longe (Immanuel Mifsud).

Este último autor, Immanuel Mifsud, natural de Malta, enfatiza, no seu artigo, um problema que, sendo aparentemente um problema maltês, acaba por reflectir os alicerces da Europa contemporânea: “Malta sempre se teve em primeira instância como país Europeu, apesar da forte influência árabe na sua cultura e, acima de tudo, na língua. Mas, por outro lado, torna-se também evidente que tanto escritores favoráveis à Europa como políticos fazedores de opinião deixam na ambiguidade o que significa ser europeu. Este facto não causa grande estranheza, se tivermos em conta que esta atitude dúbia é partilhada por muitos outros europeus”. Dir-se-ia, a terminar, que esta “indecibilidade” – para recorrer a um termo de um autor que pensou a Europa de modo muito particular (Jacques Derrida) – é bem mais uma questão de textura cultural rica e variada do que um factor de angústia. A literatura sempre soube conviver com o baixo-relevo acidentado das diferenças, mesmo se expostas e até em ferida. Aliás, este Relatório apenas o confirma. A não perder, portanto.

Luís Carmelo

A estalada

Há duas chávenas vazias em cima da mesa. Trazes um bule com água a ferver,  que poisas em cima de uma base. Sentas-te. Sem dizeres uma palavra,  levantas a mão e dás-me uma bofetada. Fico estancado, de boca aberta, a face a arder. Depois, calmamente, despejas a água nas duas chávenas. Ouço uma delas a estalar. Não consigo desviar o meu olhar de ti. Terá sido a minha?

Bruno Barão da Cunha

Vocação

O médico, o cura e o professor eram as pessoas mais importantes, durante os anos em que cresci e outros que se seguiram, até o 25 de Abril ter chegado àquela aldeia beirense. Levou o seu tempo, mas acabou por chegar. Tudo levava  o seu tempo a chegar à aldeia.

A bitola para aferir esses homens era o grau da sua vocação. Cuidavam, com zelo, dos corpos,  das mentes e dos espíritos, não deixando de largar neles o verme de um disfarçado despotismo.

O cura usava o poder nas dobras da batina, engomada a preceito pela Gracinda, moçoila rechonchuda, que comungava todos os domingos. O Padre Dionísio arregaçava a batina  de pregas vincadas para sentir as nádegas frescas e macias da filha  do Rufino contra a sua barriga flácida. E o Rufino badalava o sino,  durante a eucaristia, muito sisudo, na envergadura de sacristão, orgulhoso da sua prendada Gracinda. O professor usava o poder no ponteiro e na régua que deixava descair, quando menos esperávamos, e nos punha as  palmas das mãos e os traseiros a escaldar ao rubro. O meu pai usava  o poder no bastonete polido, que ele empunhava com nobreza, na curta  caminhada diária de casa ao consultório, e servia para enxotar os  indesejáveis.

Todos eles eram homens bem vocacionados.

Julieta Ferreira

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Trigésimo sexto Episódio

Noctâmbulo 1

Entro em uma loja de artes. Há dois seguranças. Sento-me em uma cadeira. O mais velho se aproxima e me diz que o assento é apenas para ser observado. Não discuto. Sigo em direção da mulher que observa peças de mármore. Digo que a arte só existe enquanto há participação das pessoas, interação com a obra. Mas ela me ignora. Eu insisto: não há arte sem a participação do público. Então ela se vira para mim, observa-me longamente e sorri. Depois, retorna à antiga posição, vai pegando uma a uma as esculturas, atirando-as ao chão. O segurança não reage. A mulher senta-se no chão e chora, copiosamente, entre os cacos.

 

 (continua)