Eduardo Lourenço: um ensaísta inigualável | Adelto Gonçalves

I

Eduardo Lourenço (1923) cumpre uma trajetória ímpar na história do pensamento português, sendo considerado o grande pensador e ensaísta da Literatura Portuguesa. A vantagem de se viver muito – bem haja – é que o homenageado pode desfrutar desse reconhecimento. No caso de Lourenço, esse reconhecimento definitivo veio com a publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, de suas Obras Completas, de que saíram à luz três extensos volumes.

Organizado em torno do livro homônimo publicado em 1974 pela Editora Inova, do Porto, o terceiro volume (Tempo e Poesia), além de reunir extenso número de textos dispersos dedicados à poesia e a quase todos os nomes mais relevantes da poesia portuguesa do século XX, traz um conjunto considerável de inéditos, todos revistos e em alguns casos, concluídos com exclusividade para esta edição. São textos que Lourenço escreveu entre as décadas de 1950 e 1970, muitas vezes a pedido de editores e autores.

Assim, o leitor encontrará ensaios inéditos sobre a poesia de Eugénio de Castro (1869-1944), Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), Raul de Carvalho (1920-1984), Maria Teresa Horta (1937) e Salette Tavares (1922-1994). Aqui aparecem também reunidos todos os estudos que o ensaísta dedicou à poesia de nomes indiscutíveis como Teixeira de Pascoaes (1877-1952), José Régio (1901-1969), Miguel Torga (1907-1995), Jorge de Sena (1919-1978), Sophia de Mello Breyner (1919-2004) e António Ramos Rosa (1924-2013), entre outros.

O primeiro volume das Obras Completas, de 2011, tem por título Heterodoxias e retoma textos já incluídos nas versões anteriores, além de recolher inéditos. O segundo volume, Forma da Poesia Neo-realista e outros ensaios, de 2014, reúne tudo o que o autor escreveu sobre o neorrealismo. Além do livro Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, escrito em 1959/1960 e só publicado em 1968, o tomo reúne uma massa enorme de textos dispersos, alguns deles não apenas estritamente sobre autores e obras do neorrealismo literário.

Embora os três volumes tenham igual importância como receptáculo de quase tudo o que saiu da pena do professor e filósofo Eduardo Lourenço, sem dúvida, o terceiro é o que reúne o que há de mais fino e precioso de sua vastíssima produção, constituindo a mais importante obra sobre poesia alguma vez editada em Portugal, como afirmou Carlos Mendes de Sousa na extensa e elucidativa introdução que escreveu para esta edição que contou com a sua coordenação.

                                II

Como bem observou Mendes de Sousa, o que se destaca nos ensaios de Lourenço é a sua heterodoxa maneira de ler o mundo que não leva em conta visões ideológicas e esquematicamente condicionadoras nem os modelos ditados pelo marxismo nem pelo catolicismo tradicional, o que era comum à época, ainda que em seus primeiros estudos sejam frequentes as alusões a episódios, locais e personagens bíblicos. A rigor, influenciado pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), o crítico nunca se limitou a escrever meras recensões ou resenhas de livros, mas, mesmo quando escreveu textos mais leves e de poucas linhas, produziu alentados ensaios que chamam a atenção do leitor por suas imagens e ideias insólitas.

De fato, o pensamento do professor Lourenço, ao longo de uma carreira acadêmica invejável, voou tão longe e alcançou tantos ângulos que hoje é impossível imaginar um ensaio sobre poesia portuguesa sem levar em conta o que ele já escreveu. Nos ensaios do volume III, por exemplo, há frases lapidares que atravessaram o século.

É o caso das duas frases que encerram o ensaio “Orfeu ou a poesia como realidade” em que Lourenço define o papel dos dois corifeus do modernismo português, Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), ícones da revista Orpheu, da qual só saíram dois números em 1915, mas que exerceu notável e duradoura influência por seu vanguardismo: “A importância extrema de Sá-Carneiro e Pessoa na nossa Poesia é precisamente a de terem chegado no fim desse movimento doloroso e exaltante e terem tido olhos, imagens e vida para tomar parte num confronto decisivo para o esclarecimento dos limites e poderes da alma humana. Um perdeu aí a vida que tinha, o outro a que poderia ter tido. Assim ganharam a que finalmente haviam de ter”. (pp. 87-88).

Mas não só. Antes, no mesmo ensaio, pode-se ler: “Naquele tempo eles eram apenas jovens à volta dos vinte anos decididos a ser fiéis às suas necessárias, libertadoras e estranhas experiências. O pouco que se conhece da sua biografia nesse tempo mostra-os cheios de perplexidade. A dialética incomum de Pessoa revela-o oscilante e confundido ante a necessidade de testemunhar por ideias e formas que de todos os lados requeriam lugar e voz. Divide-se, multiplica-se, duvida dos seus panfletos de gênio, abandona os amigos, incapaz de distinguir neles e talvez em si mesmo a loucura e o exibicionismo das suas atitudes; mas finalmente, quando chega a hora, ele está presente, é a grande, visível e invisível presença desse Orpheu, onde se apresentará já, “tal como a Eternidade enfim o mudará”, jogando o seu duplo jogo de seriedade formal de Fernando Pessoa e o da fantasia absoluta de Álvaro de Campos. Ele bem pressentia que Orpheu era a ponte por onde a sua Alma passaria para o Futuro”. (pp.81-82).

III

Outro ensaio que se destaca, entre tantos textos fulgurantes, é o que leva por título “Situação de Régio”. Aqui o ensaísta, depois de reconhecer que o mito-Pessoa começa a se extenuar pelo excesso do seu culto, observa que a voz de Régio “emerge de sua sombra e da sua falsa morte”. E acrescenta: ‘José Régio é um dos poucos autores portugueses de quem, com verdade, se pode realmente dizer que têm um mundo. E isto conta ou deve contar quando se mede a obra de um homem pelo raio da ambição que nele encarna e não apenas pela fulgurância sem espessura de um acerto sem raízes nem alcance”. (p.380).

Em “Evocação espectral”, o ensaísta recorda a Coimbra de seus vinte anos, de quando conheceu o médico Adolfo Rocha, então já conhecido literariamente como o poeta e contista Miguel Torga, no auge de sua fama como autor de Bichos e Contos da Montanha.  Mais jovem 15 anos, Lourenço diz que, a essa época, não seria a pessoa mais indicada para se ocupar da obra de Torga “com objetividade e justiça”, apesar da amizade que mantiveram e que continuaram epistolarmente depois que o “aprendiz de filósofo” se foi para Hamburgo.

Outro texto de poucas, mas densas, linhas é o que leva por título “Jorge de Sena” e que evoca este poeta, romancista, critico literário, ensaísta, dramaturgo, erudito e tradutor, um dos autores mais marcantes do século XX português. Dele diz: “Herdeiro do modernismo tanto como do movimento Presença, foi não menos sensível ao questionamento da cultura e da literatura, levada a cabo pelo surrealismo. Vendo bem, sua obra é inclassificável”. (p. 461).  Acrescente-se aqui que o seu modernismo vinha de sua ligação com o movimento deflagrado a partir da revista Presença (1927-1940), fundada por José Régio, Branquinho da Fonseca (1905-1974) e João Gaspar Simões (1903-1987).

Para Lourenço, na poesia portuguesa, de tradição quase só lírica, a obra de Jorge de Sena “é quase uma exceção, pelo seu gosto descritivo, discursivo e, sobretudo, pela sua vontade de se oferecer um inimigo “objetivo” opondo-se ao intimismo confessional”. Diz mais: “O paradigma poético de Jorge de Sena é o de Camões, a quem não só consagrou estudos que fizeram – e fazem – data, mas a quem se assimilou simbolicamente, vendo nele o poeta perseguido pela mediocridade da sua época e pela mentira do mundo”. (p. 461).

                                IV

Eduardo Lourenço, nascido em São Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida, distrito da Guarda, província da Beira Alta, concluiu a Licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa em 1946, assumindo em seguida as funções de professor assistente, cargo que desempenhou até 1953. Desse ano até 1958, exerceu as funções de leitor de Língua e Cultura Portuguesa nas universidades de Hamburgo, Heidelberg e Montpellier.

No período de 1958-1959, atuou como professor convidado na Universidade Federal da Bahia. Foi ainda leitor nas universidades de Grenoble e Nice, na França. Nesta última universidade, foi maitre-assistant, cargo que manteve até a sua jubilação em 1989. Na França, terra natal de sua esposa, Annie Salomon (1928-2013), viveu por seis décadas. Pela editora Gallimard, de Paris, lançou Une Vie Écrite.

Seu primeiro livro, Heterodoxia I, é de 1949. Com mais de 40 livros publicados, é autor de O Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga (1955), Heterodoxia II (1967), Sentido e Forma da Poesia Neo-realista (1968), Fernando Pessoa Revisitado – leitura estruturante do Drama em Gente, (1973), O Labirinto da Saudade – psicanálise mítica do destino português (1978), Fernando, rei da nossa Baviera (1986), Nós e a Europa ou as duas razões (1988), A Europa Desencantada – para uma mitologia europeia (1994), O Esplendor do Caos (1998), Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade (1999), A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia (1999), As Saias de Elvira e outros ensaios (2006) e Paraíso sem Mediação (breves ensaios sobre Eugénio de Andrade (2007), entre outros.

No Brasil, a presença de seus livros é ainda restrita, embora tenha conquistado o Prêmio Camões em 1996. Na sequência, a Companhia das Letras, de São Paulo, publicou Mitologia da Saudade (1997) e A Nau de Ícaro (2001). Em 2015, a editora portuguesa Gradiva reuniu seus principais ensaios de temática brasileira no volume Do Brasil: Fascínio e Miragem.

Acumulou mais de 20 prêmios. Em 2016, ganhou a Prêmio Vasco Graça Moura – Cidadania Cultural. É Doutor Honoris Causa pelas universidades do Rio de Janeiro (1995), de Coimbra (1996), Nova de Lisboa (1998) e de Bolonha (2006). De 2002 a 2012, exerceu as funções de administrador não executivo da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi ainda adido cultural na Embaixada de Portugal em Roma.

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Obras Completas de Eduardo Lourenço III – Tempo e Poesia, com coordenação e introdução de Carlos Mendes de Sousa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 816 págs., 2016, 25 euros.

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(*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

Educação para os novos tempos | Adelto Gonçalves

I

Nesta época de profunda degradação moral em que está mergulhada a Nação brasileira, a publicação de um livro como Educação em um mundo globalizado (Belo Horizonte: O Lutador, 2014), dos professores Sílvio Firmo do Nascimento e Kennedy Alemar da Silva, ganha redobrada importância, pois discute como educar e formar educadores para essa sociedade que se desenha para o século XXI.
Como observa o professor José Maurício de Carvalho, na época da publicação da obra, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ-MG), no prefácio que escreveu para esta obra, os autores consideram essencial a construção de uma nova pedagogia para enfrentar os desafios da sociedade tecnológica. De fato, esse é um desafio de proporções ciclópicas, pois a questão da degradação moral vem da própria família brasileira que, ao longo do tempo, deixou de discutir e incutir em seus pósteros os valores morais mais essenciais, deixando a tarefa para a escola que, por sua vez, não tem condições materiais nem espirituais para desenvolver esse trabalho.
O professor de Língua Portuguesa sabe muito bem como chegam os alunos, em grande parte, ao primeiro ano de qualquer curso universitário: não só sem o domínio da técnica de escrever como sem valores morais. Por isso, pedir aos alunos que escrevam uma resenha de algum livro ou um artigo sobre qualquer assunto é preparar-se para receber uma avalanche de textos tirados da Internet e apresentados como se fossem de sua própria autoria.
Quer dizer, a maior parte dos alunos comete o crime do plágio sem a menor cerimônia. E não se pode dizer que, geralmente, são alunos mal saídos da adolescência porque, não raro, também os mais maduros cometem com facilidade esse tipo de crime. Ou seja, como muitos deles são pais de família, é de se imaginar os valores morais que passam para os filhos.
Para combater essa epidemia de desonestidade, o professor precisa sacrificar boa parte do seu tempo fora da classe para pesquisar no Google a fim de comprovar o plágio. Diante de classes superlotadas – com mais de 80 alunos –, já que as universidades privadas estão preocupadas prioritariamente com seus lucros, não poucos professores desistem da carreira. Os que insistem e tentam ensinar como fazer as citações de textos alheios, muitas vezes, pregam no deserto porque muito mais fácil é “copiar e colar”. Não é à toa que, de vez em quando, estouram (não só no Brasil como também no Primeiro Mundo) escândalos em que figuras eminentes são acusadas de publicar livros com extensas citações de textos alheios sem o devido crédito. Às vezes, o livro que teve trechos amplamente copiados está citado apenas na bibliografia. E os autores acreditam que isso resolve tudo.
Aos docentes que permanecem só resta remar contra a corrente e procurar contribuir para a formação da pessoa humana, tentando passar aos alunos o domínio da escrita e leitura, a capacidade de analisar, interpretar e sintetizar dados e compreender e atuar no meio social, como ressaltam os autores de Educação em um mundo globalizado.

II

Para mudar esse quadro, Nascimento e Silva defendem a presença de professores cada vez mais qualificados e com atualização permanente, em vez de docentes que apenas transmitam conhecimento acadêmico. Mas observam que é preciso também que a escola mude, pois o professor sozinho não será capaz de dar conta dos desafios educacionais que se impõem neste começo de século. Obviamente, a escola não pode mudar sozinha, o que significa que a mudança deveria ser acompanhada pelo Estado e pela sociedade. Eis aqui um ideal quase inatingível. Afinal, neste mundo globalizado, os interesses políticos se encontram sempre subordinados aos interesses mercadológicos.
No último capítulo, Nascimento e Silva discutem o impacto da tecnologia na educação, admitindo como irreversível o ensino a distância, que seria mais uma tecnologia colocada a serviço da demanda social. Para os autores, o ensino a distância seria “mais eficaz que o presencial devido ao seu maior alcance, sua melhor razão custo e benefício, sua maior flexibilidade (tanto para docentes como aprendizes) e seu maior potencial de personalização e mesmo individualização”.
Para os estudiosos, a tarefa de discutir, analisar, avaliar e aplicar as informações a tarefas práticas será realizada, mais e mais, não através da escola, mas através de grupos virtuais de discussão, no quais cada um se alterna no papel de ensinar e de aprender. “Se a escola puder se reinventar e tornar-se um ambiente de aprendizagem desse tipo, ela pode sobreviver. Mas a Internet, a Web, correio eletrônico, bate-papos, discussões baseadas em texto (grupos de discussão), videoconferências etc. precisarão estar no centro dela e se tornar parte de sua rotina. O que aqui é dito da escola aplica-se a escolas de todos os níveis, inclusive às universidades”, garantem.
Como diz o professor José Maurício de Carvalho, se esse é o novo paradigma da educação, é preciso criar então uma nova forma de ensinar, e isso nos coloca diante da necessidade de pensar a formação do educador que deve ser preparado para essa nova realidade. Por isso, com base nas ideias do sociólogo suíço Philippe Perrenoud, os autores concluem que “o professor deverá se dotar de conhecimentos, habilidades e atitudes para tornar-se um profissional reflexivo ou investigador, com o objetivo de aprender a interpretar, compreender e refletir sobre a realidade social e a própria docência”.
Esse é o grande desafio da Humanidade hoje, pois não há como discordar de Nascimento e Silva quando dizem que a educação é um dos caminhos importantes para superar a crise do nosso tempo.

III

Silvio Firmo do Nascimento (1956) é graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ – 1987) e em Estudos Sociais e Filosofia pela Fundação Educacional de Brusque-SC (1983), mestrado em Filosofia pela UFJF-MG (1992) e doutorado em Filosofia pela Universidade Gama Filho-RJ (2001). É professor de Filosofia e editor da revista Saberes Interdisciplinares do Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves (IPTAN) e membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei-MG.
É autor de Teses morais do tradicionalismo do século XIX (Londrina-PR: Humanidades, 2004), A Igreja em Minas Gerais na República Velha (Curitiba: Juruá, 2008), A religião no Brasil após o Vaticano II: uma concepção democrática da religião (Barbacena-MG: UNIPAC, 2005), O homem diante do sagrado: alguns elementos de antropologia da religião (Londrina: Edições Humanidades, 2008), A pessoa humana segundo Erich Fromm (Curitiba: Juruá, 2010), A centralidade da eucaristia na vida da humanidade (Guarapuava-PR: Pão e Vinho, 2001) e Gotas de sabedoria (Curitiba: Instituto Memória, 2012). Desenvolve o trabalho religioso de pároco em Ibituruna-MG e de assessoria bíblica na Diocese de São João del-Rei-MG.
Kennedy Alemar da Silva (1972) é mestre em Educação pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), de Barbacena-MG, licenciado em Filosofia e especialista em História de Minas Gerais no século XIX pela UFJF-MG. É professor na Fundação Educacional de Lavras-MG e na rede estadual de Minas Gerais na cidade de Itutinga, onde reside. Foi secretário municipal de Educação em Itutinga.
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Educação em um mundo globalizado, de Sílvio Firmo do Nascimento e Kennedy Alemar da Silva, com prefácio de José Maurício de Carvalho. Belo Horizonte: Gráfica e Editora O Lutador, 164 págs., 2014.
E-mails: silviofirmodonascimento@gmail.com
kennedy.silva@unilavras.edu.br
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(*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

Estação de Espera | Ernane Catroli

E nem era um alfarrabista: era um antiquário. Móveis, imagens de santos, pratarias, quadros, porta retratos. Peças sobradas, exiladas, agora errantes, ali, numa espécie de limbo. No fundo da loja, uma estante, muitos livros mal enfileirados nas prateleiras e outros tantos empilhados, no chão. Em tudo, as marcas do Tempo.
E no silêncio, na penumbra do ambiente, um leve arrepio como se me tocassem com mãos de espuma. De éter. Almas.
E vaguei pelo apertado espaço – irmanado – sob aquela atmosfera calma.
Uma luminária de opalina azul, uma aliança de pesada prata, com um nome e data gravados, um medalhão. E, talvez, o que mais me aguardava e exigia num apelo mudo (e me espreitava?): exposto e tomado por uma luz própria, com sua bela capa, “Mulheres Escritoras”, livro de Maria Ondina Braga, que folheei; reverente. As mãos trêmulas.
Traz duas dedicatórias e uma anotação. Dádiva bastante. Amoroso sentimento de posse.

Ernane Catroli.
Em seu livro Grandes mulheres, volume II, Edição da Autora, Rio, 2002, no capítulo dedicado a Maria Felicidade do Couto Browne, a escritora Sophia A. Lyra escreve:

“Maria Ondina Braga, atualíssima escritora portuguesa era amiga de meu filho com quem se correspondia. Foi a autora do livro Mulheres escritoras que constituem o último presente que me foi enviado por meu filho no mês de maio de 1986.
O livro era dedicado a ele: Para o meu querido amigo Roberto Lyra Filho, estes textos simples e sérios por que tanto se tem interessado. Um abraço da Maria Ondina Braga.

Pois bem. Em maio – no dia das mães – meu filho me mandou o livro de presente, acentuando o valor da dedicatória da autora (sua amiga). E deste é que tirei os dados principais sobre Maria do Couto Browne que veio a ter, para mim, uma dupla significação; foi o último presente de meu filho que faleceu a 11 de junho (no mês seguinte), além disso, trata-se da vida de uma ‘Grande Mulher’ considerada uma das maiores poetisas portuguesas do século, em estudo e que não conhecia até então.” Op. cit. p.32.

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Lançamentos da Quetzal no Correntes d’Escritas

Anabela Mota Ribeiro, Onésimo Teotónio Almeida e Sérgio Godinho são os autores da Quetzal que irão fazer lançamento dos seus novos livros no festival literário Correntes d’Escritas, que terá lugar na Póvoa de Varzim, de 21 a 25 de fevereiro.

A Flor Amarela é o título do livro de Anabela Mota Ribeiro. Trata-se de uma extraordinária exploração das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, à luz dos antitéticos parâmetros «ímpeto cesariano» e «flor da melancolia», e através do olhar original e inovador da autora. O que começou por ser um trabalho académico de Estética, tornou-se um texto de grande beleza e interesse para um público alargado, ou seja, todos os que alguma vez foram – ou venham a ser – leitores de Machado de Assis. O livro é prefaciado pelo Professor Abel Barros Baptista.

A Obsessão da Portugalidade é o novo livro de Onésimo Teotónio Almeida. Com enorme frequência surgem livros com Portugal no título, interrogando-se sobre quem somos, porque somos assim, ou como modernizar Portugal sem abandonar o seu passado, elaborando diagnósticos do País, apontando-lhe as mazelas e sugerindo-lhe medicação. O presente livro não pretende fazer nenhum diagnóstico nem oferecer uma receita. Ele resulta de uma leitura do destino da nossa cultura e daquilo que, após o 25 de Abril, se vulgarizou apelidar «a questão da identidade nacional».

Coração Mais Que Perfeito é o título do primeiro romance de Sérgio Godinho. Depois de Vidadupla, que reúne um conjunto de contos, a Quetzal publica este romance do reconhecido cantor e compositor, agudo cronista e bardo dos últimos quarenta anos portugueses. O livro retrata os insondáveis e pedregosos caminhos do coração, amores imperfeitos que se sublimam até à perfeição e pureza do diamante.

Estarão ainda presentes neste festival literário outros nomes como Álvaro Laborinho Lúcio, Claudia Piñeiro, Francisco José Viegas, Karla Suarez, Luís Carmelo, Manuel Alberto Valente, Maria do Rosário Pedreira e Vasco Rosa. A agenda dos lançamentos da Quetzal no Correntes d’Escritas será brevemente divulgada.

1ª Palavra Preta: Mostra Nacional de Negras Autoras

O 1ª palavra preta: mostra nacional de negras autoras acontece em salvador, nos dias 21 e 22 de janeiro, das 16 às 22horas, na casa preta, rua areal de cima, 40, dois de julho.

a 1ª palavra preta – mostra nacional de negras autoras conflui em salvador o sonho de muitas que trouxeram, de longe e de antes, nossos passos até aqui: sendo donas da nossa voz, da nossa palavra, do nosso canto e de nossa poesia, alimentamos a nós mesmas, e nutrimos também umas às outras em dois dias de música, poesia, artes visuais, e gastronomia feita por, com, para mulheres negras!

a mostra avança na caminhada que reúne a força de nossa herança à criatividade inovadora da arte negra contemporânea que cada uma de nós reatualiza na própria obra. é um espaço fértil e receptivo pro compartilhamento de nossa arte negra afrodiaspórica, vibrante, diversa.

somos muitas, nos expressamos de diversas maneiras! reinventamos as fontes ancestrais, e renovamos os rumos da produção estética, poética, musical, performática. partimos da crítica contundente ao cultivo da semente maravilhosa, à construção das pontes simbólicas que pavimentam nossa vida na trilha do amanhã.

recusamos os lugares típicos em que o racismo, o cissexismo, a lesbofobia, o classismo tentam nos fixar, recusamos a invisibilização e o silenciamento, recusamos que nossas vidas sejam contadas por sinhozinho branco patrono literário e que as mortes dxs nossxs sejam narradas como sangue de plástico na mídia:

nós escrevemos nossas palavras!
nós cantamos nossas canções!
nós falamos nossos poemas!
nós somos donas da nossa voz!

vem com a gente! juntas somos mais fortes, mais lindas, mais plenas ♥

produção:
Luedji Luna
Tatiana Nascimento

apoio:
Casa Preta
La Frida Bike
Julia Morais

PROGRAMAÇÃO:

21/01 (sábado)

cantautoras:
Alexandra Pessoa
Aline Lobo
Aryani Marciano (SP)
Tatiana Nascimento (DF)
Emillie Lapa
Zinha Franco

poetas:
Cidinha Da Silva (MG)
Maiara Silva
Natalia Soares
Dricca Silva

22/01 (domingo)

cantautoras:
A Intêra
Jadsa Castro
Luedji Luna
Marília Sodré
Vanessa Melo
Karla da Silva(RJ)
Verona Reis

+ exposição de aquarelas de Annie Gonzaga Lorde, venda de livros de Cidinha da Silva, e gastronomia (inclusive vegana) com La Frida Café

poetas:
Livia Natália
Sys Fagundes
Jamile Santana
serviço
1ª Palavra Preta: Mostra Nacional de Negras Autoras
onde: Casa Preta (Rua Areal de Cima, 40, 2 de Julho, Salvador)
quanto:Ingressos a R$5,00 (cada dia)
informações: https://www.facebook.com/events/1107530492703531/
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A importância de não se chamar Ernesto num romance de Adelto Gonçalves | Maria Luísa Malato

No romance, tem muita importância o nome próprio. Ele distingue a personagem do figurante, confere densidade psicológica ao retrato e “efeito de real” à ação. Até para o art.º 3 da Declaração Universal dos Direitos da Criança, ter/não ter nome é acentuar/anular conteúdos de ordem psicológica, ou ideológica, delimitando no “leitor” (o Outro) múltiplos horizontes de expectativa. Não dar nome é, retoricamente, reduzir o singular ao coletivo, negar estatuto reivindicativo ao “indivíduo”. Por isso o nome civil, ao contrário da marca, é um valor jurídico que se diz inalienável e inestimável, isto é, coloca o indivíduo acima de qualquer avaliação do que nele os outros podem trocar, vender ou comprar.

Estes vários aspetos são evidenciados pelo uso do nome próprio, num romance de Adelto Gonçalves: Os Vira-Latas da Madrugada. Escrito desde o final dos anos 60, e publicado em 1981, recebeu a menção honrosa do Prémio José Lins do Rego. Em 2015, foi finalmente reeditado com o prefácio original, de Marcos Faerman, arrancado à última hora da edição de 1981, não fosse o regime político reparar demasiado naquelas histórias tristes “como tristes são os tempos que as tornaram reais”. Se, no contexto repressivo dos anos 60-80, a questão ideológica se sobrepunha à questão estética, o distanciamento da reedição permite hoje valorizar estratégias como o uso irónico do nome próprio, assinalado amiúde pelo itálico.

Os nomes próprios revelam aqui uma amálgama de estilos. Não estamos perante um romance de espaço canónico, ainda que se passe em Paquetá, bairro portuário de Santos, no Brasil: a representação de um ponto de encontro incaracterístico de movimentos provisórios é aqui um exercício iniciático, de educação visual. Também não é um romance histórico ortodoxo, ainda que a memória seja a de um contemporâneo da Coluna Prestes, de Vargas e do golpe militar de 1964: “Neste livro, o tempo não existe, os acontecimentos se confundem, as datas são esquecidas”.

Num espaço concentracionário, os nomes próprios evidenciam um tempo não-cronológico: a coexistência da Antiguidade greco-latina (os vagabundos podem chamar-se Plínio, Juvenal, Eronildes, Themis), com a Cristandade (Gabriel, Belchior, Rosário, Epifânio); do tempo pré-colonial (Cariri, Tibiriçá), com um tempo colonial (Negrinho Louva-Deus, Nego Oswaldo) ou pós-colonial, de migrações (Arouca, Valongo). O nome próprio aparece associado à nacionalidade ou à raça, como se Paquetá fosse o mundo inteiro: lá moram a turca Isabel, João de Angola, o garção português, o Grego, a Grega, frequentadores dos Old Kopenhagen, El Moroco, Volga ou Mont Serrat, bares que nos lembram o Mexico-City, de Camus. Nomes patronímicos, que identificam património – Braz Aguiar, Epifânio Peremateu, Plínio Giancotti – são raros e sempre de discurso indireto.

O nome próprio aparece quando muito ligado à profissão, ou à ausência dela, como se fossem um agnome epitético, sem valor jurídico: o vagabundo Plínio, o Malandro Sarará, uma Milena que trabalha no Las Vegas. Os nomes próprios revelam-se equívocos, ironias, ilusões e provocações. O Grego e a Grega só se tinham conhecido por causa do apelido. Eram até parecidos, mas o Grego era português, de olhos azuis, e a Grega catarinense. João de Angola viera do Rio Grande do Norte. Plínio, o velho, é chamado Primo pelos que não conseguem afinal pronunciar o nome.

Paquetá tem outra toponímia para os que lá não moram. Os jornalistas chamam-lhe Boca do Lixo. Mas “Nós, os daquele tempo, sabemos que, se hoje o beira-cais é quase conhecido apenas pelo nome de Boca, deve-se a um maldito portenho que, um dia, desembarcou aqui e achou de comparar este pedaço de porto com o bairro de La Boca, de Buenos Aires. Mas igual a este beira-cais, como dizem os velhos marinheiros, não existe lugar em outra parte do mundo”.

Entre a representação do universal e do irrepetível, os nomes próprios criam, goram e recriam diferentes horizontes de expectativa de quem habita o “beira-cais”, fio-da-navalha: o espaço onde as mulheres das ruas não se entregam porque só vendem o corpo, onde as crianças “dormem com os pederastas e vivem de pequenos furtos”, onde os antigos escravos sonham com a moça loira que anuncia a Coca-cola num out-door, e os trabalhadores da estiva gastam o salário no esquecimento prometido pelas tabuletas utópicas: Estrela da Manhã, Chave de Ouro, Gold & Silver, Las Vegas, Salão Azul, Imperial, Pavão de Ouro, Zanzibar, Zanzi, e tc… Ah, a ironia dos analfabetos no bar ABC, ou dos famintos no Maxim’s!…

O equívoco do nome próprio é quase um tema, desde as primeiras linhas: qual a origem etimológica de Paquetá? O narrador recupera uma nota de rodapé do volume II da História de Santos, de Francisco Martins dos Santos (o nome do historiador é um “nome motivado”, como os que existem nos romances). Segundo aquele historiador, Paquetá não significa, como é ideia comum, um “lugar ou viveiro das pacas”.

O vulgo e os historiadores são vítimas de “etimologias simplificadas”, da “invenção de tradutores fáceis”. E as pacas, como toda a gente sabia, só vivem em água doce e límpida, impossível nos pântanos (ainda visíveis numa fotografia de Paquetá de finais do século XIX). “Conta ainda que a verdadeira etimologia da palavra Paquetá é PAÃIQUÊ-TÃ, por contração: PÃ-QUE-TÀ, que, com o tempo e por evolução, se tornou PA-QUE-TÃ. E explica: ‘PAÃ – atolar; IQUÊ – lado, costado; e TÃ – apócope usual de TA TÃ – duro, forte -, significando lugar de atoleiro forte, mais forte do que em outros lugares da ilha habitável”.

Não menos fantasista que a do vulgo, esta explicação “científica” de F. M. dos Santos assemelha-se afinal a um processo romanesco. Também a ficção reproduz fenómenos de contração e apócope, sincretismo e esquecimento. O romance, como a evolução de um nome próprio, é um processo de densificação do tempo-espaço, e faz do “efeito de real” um exercício de possibilidades. Também por isso este é um romance, como escreve Faerman, “de sons delicados”.

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(*) Maria Luísa Malato é professora associada (com agregação) na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Membro do Instituto de Literatura Comparada e da Sociedade Portuguesa de Retórica, faz parte da direção da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Especialista no século XVIII português, é autora de Manuel de Figueiredo: uma perspectiva do neoclassicismo português -1745-1777 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995), Por acazo hum viajante… a vida e a obra de Catarina de Lencastre, Viscondessa de Balsemão,1749-1824 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008), História da Literatura Europeia: uma introdução aos estudos literários (Lisboa: Quid Juris, 2008),entre outros.< o:p>

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Os Vira-Latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman, apresentação de Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes e ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 216 págs., 2015, R$ 35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br

Segundo Festival Cultural e Concurso Literário do Sarau da Onça | Valdeck Almeida de Jesus

O II Festival de Arte, Cultura e Concurso Literário Sarau da Onça foi aprovado no edital Setorial de Literatura da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). “O projeto tem patrocínio do Governo do Estado, através do Fazcultura, Secretaria da Fazenda e Secretaria de Cultura do Estado da Bahia”.

O Sarau da Onça divulgará em 10 de janeiro de 2017 um edital que visa selecionar dois poemas de cinquenta autores de Salvador nas categorias: Poesia (quarenta textos de 25 linhas, no máximo) e Conto (dez textos de no máximo 25 linhas) e consequente publicação em 5000 exemplares de uma antologia, sem custo para os participantes, que receberão cinco exemplares cada um, a título de direitos autorais.

Além do concurso literário, serão oferecidas oficinas de teatro, dança, Hip Hop, criação literária, que vão ser ministradas por membros do Sarau da Onça e convidados, com carga horária de quatro horas aos sábados ou domingos, com apresentação de mostras ao final do festival, num grande encontro no qual poetas, dançarinos, músicos, atores e demais participantes do certame se encontrarão durante um dia inteiro, com almoço servido aos presentes. À noite, no sarau de encerramento da temporada, serão feitas homenagens a pessoas e entidades ligadas à cultura popular, educação e história do bairro e do seu entorno.

O grupo Sarau da Onça atua em Sussuarana (Novo Horizonte) há mais de cinco (5) anos, nas dependências do Espaço CENPAH – Centro de Pastoral Afro –  pertencente à Paróquia São Daniel Comboni. Vale salientar que o bairro se localiza numa região periférica de Salvador, onde os bens culturais nem sempre são acessíveis, devido à distância dos principais centros culturais, bem como pela baixa renda de seus moradores.

O Coletivo Sarau da Onça, nessa perspectiva, ocupa um lugar de importância ímpar, atraindo jovens e adolescentes para atividades culturais, o que lhes pode livrar de serem cooptados por atividades destrutivas à cidadania. O Sarau da Onça desempenha suas atividades com o apoio da CENPAH, cedendo o espaço físico e equipamentos de som etc. O grupo de jovens e adolescentes que organiza o evento o faz voluntariamente e sem recursos financeiros, buscando parcerias na comunidade onde mora e fora dela, sempre que possível. Um segundo livro produzido pelo coletivo não só dará consistência ao trabalho que é realizado desde 2011, como também trará fôlego ao ânimo dos participantes e atrairá muito mais pessoas para o trabalho coletivo, literário e cultural, ampliando, assim, o raio de atuação e alcançando novos horizontes no cenário artístico e cultural da cidade.

O coletivo Sarau da Onça atua, também, contribuindo em outras ações como Festival de Hip Hop na Onça, Seminário de Padre Heitor, Noite da Beleza Negra, Caminhada da Consciência Negra e Marcha Contra o Extermínio da Juventude Negra, todas as ações em Sussuarana, o que demonstra a sua importância na conscientização da juventude do bairro para os direitos humanos e atuação política cidadã.

As ricas manifestações artísticas dos jovens da comunidade de Sussuarana ainda são pouco conhecidas e valorizadas. O Sarau da Onça é fruto da iniciativa de jovens da comunidade de Sussuarana, que, insatisfeitos com a situação de violência vivida pelos jovens negros, pobres e periféricos, resolveram atuar como fortes aliados no resgate de valores e na construção de uma sociedade mais igualitária, através da música, dança, teatro e poesia. O Sarau é hoje um dos polos de maior quantidade de atividades ininterruptas de cultura e educação para os moradores do bairro.

As ações do Sarau da Onça ocorrem quinzenalmente na comunidade de Sussuarana e integram uma rede de ações afirmativas, uma agenda cultural que, fundada nas questões sociais, promove um diálogo na cidade que integra jovens pertencentes a diferentes territórios, entretanto vivenciam experiências comuns na sua relação com a cidade. Realizado por Jovens do bairro de Sussuarana, o Sarau da Onça potencializa debates qualificados sobre as condições de vida dos jovens de periferia e de demais moradores, tendo na centralidade a poesia.

Ao conviver com a comunidade e estabelecer uma relação mais próxima com seus personagens – “figuras populares” – e com o imaginário da história de Salvador, percebeu-se o grande potencial que a Literatura, o rap, a dança, o teatro, o grafite e a poesia negra têm em trazer, através da sua linguagem específica, um emaranhado de fatos e pluralidade de pensamentos populares que muito dizem do que somos e do que podemos ser em nosso local de vida. O maior desejo é estimular o exercício da autoestima, comunicação, relacionamentos interpessoais, capacidade de se auto gerência, tomada de decisões, enfim, contribuir para maior integração e participação da população com seu entorno social e, consequentemente, com sua cidade e história.

Edital do Concurso e abertura das oficinas
Toda a programação vai acontecer no primeiro semestre de 2017 e as informações serão postadas nas redes sociais, no site Galinha Pulando, no blog do Sarau da Onça e divulgadas à imprensa em geral já a partir de janeiro/2017.

Serviço:

O quê: II Festival de Cultura e Arte do Sarau da Onça

Quando: 01.01.2017 a 30.05.2017

Onde: Sarau da Onça – Rua Albino Fernandes, 59-C, Sussuarana, Salvador-BA – Cehpah – Centro de Pastoral Afro Padre Heitor

Quanto: Gratuito

Dúvidas serão esclarecidas via e-mail:

saraudaonca@hotmail.com, ou pelo fone 71 99331 5781 (TIM)

Lágrimas por Alepo | Maria Isabel Fidalgo

É para Ti , talvez desperto
que escrevo sobre Alepo
vestida de cinza repetível
em dia de finados.
É para Ti, o meu carpir na noite
e o aprumo dos meus olhos
no retábulo das lágrimas.
É para Ti ,nesta quadra santa
onde nasceste rei dos reis
feito menino
que te peço crianças
com fulgor de laranjas
num pomar de beijos.
É para Ti que peço ouvidos
para os gritos
e mãos de sol
em lençol de estio.
É para Ti, meu Deus ,
talvez desperto
que choro por Alepo.
 
maria isabel fidalgo

Segundo Poema de Natal | Domingos da Mota

Pudesse do Natal dizer que é mais
que o corre-corre, que a lufa-lufa,
que a passada célere demais,
que a mole humana que se adensa e arrufa
e satura nos amplos corredores,
nas ruas e nas lojas, nos mercados
(valendo-se da casa de penhores,
como outrora do livro de fiados);
pudesse do Natal dizer que é muito,
muito mais que o bulício que se sente
atraído pelo larvar intuito
da febre consumista, futilmente,
que faz da pretensão de ter e haver
o santo-e-senha contra o próprio ser.

Domingos da Mota

[inédito]

Diálogo com a Ibéria hebraica na poesia de Moacir Amâncio | por Adelto Gonçalves

I

Moacir Amâncio (1949) é um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos e passa a ocupar o vazio deixado por Lêdo Ivo (1924-2012) e Ferreira Gullar (1930-2016), de geração anterior, que foram para o andar de cima sem o reconhecimento do Prêmio Nobel de Literatura, que seria o segundo da Língua Portuguesa, depois daquele atribuído a José Saramago (1922-2010) em 1998. (E pensar que, quando se trata da literatura de países do Hemisfério Norte, até compositor de música popular merece ganhar o tal prêmio…)

De fato, depois de um jejum de nove anos, Amâncio cumpre agora, ao publicar o seu sétimo livro de poesia, Matula (São Paulo: Annablume Literária, 2016), uma trajetória singular dentro da Literatura Brasileira, que vai de uma obra romanesca de raízes populares até uma poesia refinada, que repetindo, de certa forma, uma “deglutição antropofágica” à maneira de Oswald de Andrade (1890-1954), absorve a herança cultural judaica, especialmente dos cristãos-novos, e a tradição da cabala para devolver experiências poéticas que levam o leitor a uma viagem através da língua, na busca de um diálogo com a Ibéria hebraica de Sevilha e Córdoba. Essa herança fica explícita com a inclusão no livro de um poema do filósofo hebreu Ibn Gabirol (1201-1055), traduzido por Amâncio:

O inverno escreveu com tinta de chuva

            E a pena de raios nas mãos das nuvens

            A carta no jardim de azul e púrpura.

            Jamais dessa maneira o poeta escreve.

            Nesse tempo do zelo a terra ao céu

            Qual estrelas bordou canteiros breves.

O livro é também resultado de um longo diálogo com o poeta português E. M. de Melo e Castro (1932), iniciado em Lisboa e continuado em São Paulo, mas ainda em progresso. Como se sabe, Melo e Castro é um dos pioneiros da poesia concreta visual em Portugal, autor de Ideogramas (1962), marco fundador da poesia experimental em terras lusas, que se radicalizou com o tempo, passando a utilizar o vídeo e o computador na produção literária, a chamada videopoesia. É o que se percebe nestes versos:

se o poeta ernesto melo e castro encomenda a

            a quem visita a terra traga-lhe uma lembrança dos

            seiscentos anos atrás pelo menos aonde nunca foi

            sabedor não indiferente

            no que converge

            aquele montanhês entre o país das gerais e o país

            de são paulo aprende da vizinha: nunca entra na

            igreja mas se entrares dize tudo que vejo é pau e

            pedra

            do mundo: amanhã será dia bom

            respeita todo aquele que tiver a barba crescida pois

            está de luto (…)

Como observa o editor José Roberto Barreto Lins no texto de “orelha” deste livro, é a partir desse caldo de cultura que Amâncio “monta uma espécie de constelação de textos que permitem uma simbiose entre passado e presente como se o tempo fosse um conjunto aos olhos do poeta que expõe esse panorama caleidoscópico ao leitor, para que este de sua parte detecte os pontos que lhe permitam montar a sua própria rede de significados”.

Já o filósofo Rodrigo Petronio, no prefácio “Moacir Amâncio: poesia e paralaxe” que escreveu para este livro, procura desvendar as influências que marcam a atual fase do autor, notadamente embalada por suas leituras de obras da literatura hebraica, até porque o poeta tem doutorado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo e, atualmente, é professor doutor adjunto da Universidade de São Paulo, com experiência na área de Literatura e Cultura Judaica e Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: poesia, poemas, cinema, judaísmo, literatura e artes plásticas.

Diante disso, não surpreende que, em seus versos, retome a arte e o pensamento do século XVI, como observou Rodrigo Petronio com perspicácia, ao desvendar também nos versos abaixo a influência da tradição neoplatônica e cabalista do filósofo, poeta, místico e teólogo Ramón Llull (c.1232-c.1315), ou Raimundo Lulio em castelhano, nascido em Mallorca, e de Abraham Abuláfia (1240-1291), talvez o mais revolucionário mestre da cabala, nascido em Zaragoza:

prefiguração do sempre

num círculo

que abulafiano

que llulliano

rompe o círculo

se faz letra

Em outros versos, percebe-se a influência da circunvolução do mundo, a saga dos navegantes que, de ouvidos moucos para o que (pre)dizia o velho do Restelo, atiravam-se ao destino incerto para descobrir os confins não só nos mares como nas terras da América, da África e de outros continentes. O texto abaixo, por exemplo, parece aludir à Inquisição, mas ao mesmo tempo tem a ver com a expansão colonial e qualquer processo totalitário.  É o que se depreende destes versos:

a grande ratazana imaginou

            a máquina do mundo um vasto cérebro

            pronto a ser roído até o vazio oco

            onde ela se alojasse em próprias fezes

            e o mundo se fizesse por inteiro

            à sua semelhança e justa imagem

II

Nascido na cidade de Espírito Santo do Pinhal, na região Sudeste do Estado de São Paulo, na divisa com Minas Gerais, mas estabelecido na cidade de São Paulo desde jovem, Amâncio estreou na literatura com a novela O saco plástico (São Paulo: Editora do Escritor, 1974), e, depois, surpreendeu a crítica com a prosa fragmentária e experimental de Estação dos confundidos (São Paulo: Símbolo, 1977), romance que trata da vida de Joaquim Chapeta Arruda, um deserdado perdido na desumana e impessoal “terra da garoa”.

Redator de texto conciso e preciso, Amâncio, que passou a maior parte de sua vida profissional nas redações dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, publicou ainda o livro de contos O riso do dragão (São Paulo: Ática, 1981), em que parecia já disposto a extravasar as fronteiras do gênero, deixando de lado certo convencionalismo dos primeiros livros, embora o fragmentarismo e as quebras de frase já indicassem o caminho futuro.

Esse procedimento se acentuou em Súcia de mafagafos (São Paulo: TA Queiroz Editor, 1982), que reúne duas histórias bastante fragmentadas e com a linguagem da prosa já se misturando com a poesia, num tom meio juvenil. O autor não renega sua obra anterior, mas, aparentemente, prefere deixá-la esquecida, pois não consta dos dados bibliográficos que aparecem em seus livros mais recentes.

O que se conhece é que se rendeu à poesia a partir de 1992, quando lançou Do objeto útil (São Paulo: Iluminuras), disposto a oferecer uma nova proposta ao gênero, como se tivesse por meta escapar de certa linguagem exaurida pelo uso ao longo de todo um século de experimentação, repetição e diluições, para se assumir aqui o que o romancista Eustáquio Gomes (1952-2014) escreveu na apresentação de Contar a romã (São Paulo: Record, 2001).

Em Figuras na sala (São Paulo: Iluminuras, 1996) faz uma homenagem à melhor tradição modernista brasileira, assumindo-se como herdeiro do impulso poético de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), mas também paga um tributo ao poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), que se valia de símbolos para expressar seus sentimentos através da sugestão, mais que da narração.

Em 1997, publica um livro de reportagens e artigos, Os bons samaritanos e outros filhos de Israel (São Paulo: Editora Musa), interrompendo a sequência de obras dedicadas à poesia. Mas logo volta com O olho do canário (São Paulo: Musa Editora, 1998), que, aliás, diferencia-se de seus livros anteriores de poesia na alternância e variedade dos ritmos, como observou Carlos Vogt na apresentação, e na linguagem elíptica que emprega.

Como gosta de jogar com a ideia de que as línguas latinas são, na verdade, um só idioma, defendendo o argumento de que determinadas emoções e ideias só caberiam adequadamente em italiano, outras em francês, em português, romeno, catalão ou espanhol, Amâncio publica Colores siguientes (São Paulo: Musa Editora, 1999) em que reuniu poemas escritos em castelhano. É o livro que marca o início de uma série de peregrinações poliglotas, que vão atingir o seu auge com Abrolhos em que várias composições estão escritas em hebraico. Esses poemas em hebraico formam um conjunto, na verdade, um livro, que foi inteiramente publicado pela revista Etc., de Curitiba.

Antes, o poeta já havia experimentado no então parcialmente inédito At a construção em inglês de um universo paralelo ao português. Já em Contar a romã presta homenagem ao idioma de Góngora (1561-1627), Quevedo (1580-1645) e Cervantes (1547-1616), especialmente em “Duelo de la nariz y la cara” em que transita do espanhol para o português e igualmente da poesia para a prosa poética (e vice-versa) sem perder o sentido.

III

Em 2001, Amâncio doutorou-se em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo com a tese Dois palhaços e uma alcachofra: uma leitura do romance ‘A Ressurreição de Adam Stein’, de Yoram Kaniuk (São Paulo: Editora Nankin, 2001) em que discute as diferentes formas de se ver o Holocausto em estudo sobre a expressão judaica contemporânea centrada no escritor israelense Yoram Kaniuk (1930-2013) e seu romance Adam filho de cão (Rio de Janeiro: Editora Globo, 2003, tradução de Nancy Rozenchan).

Em Ata (Rio de Janeiro: Record, 2007), reuniu seis livros de poemas publicados até então e outros inéditos, além de ensaios como Dois palhaços e uma alcachofra e Yona e o Andrógino – notas sobre poesia e cabala (São Paulo: Nankin/Edusp, 2010) mais a antologia por ele organizada e traduzida de poemas do israelense Ronny Someck (1951) sob o título Carta a Fernando Pessoa (São Paulo: Annablume, 2015). Também traduziu Badenheim 1939 (São Paulo: Amarilys, 2012), livro de Aharon Appelfeld (1932) e participou da tradução dos poemas da poeta israelense Tal Nitzán (1960) incluídos no livro O Ponto da Ternura (São Paulo: Lumme, 2013).

É autor ainda de O Talmud, tradução de trechos e estudos (São Paulo: Iluminuras, (1995), Ato de presença: Hineni (São Paulo: Associação Humanitas, 2005), organizador, coletânea de ensaios em homenagem à professora Rifka Berezin, Kelipat Batsal (Rio de Janeiro: Book Link, 2005), conjunto de poemas hebraicos que foi publicado também em Ata, e Óbvio, poemas (São Paulo: Travessa dos Editores, 2004).

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Matula, de Moacir Amâncio, com prefácio de Rodrigo Petronio. São Paulo: Annablume Literária, 169 págs., R$ 40,00, 2016. Site: www.annablume.com.br

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(*) Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

Citação | João Barrento

De entre estes novos e mediáticos escritores o único cuja obra eu considero original é o Gonçalo M. Tavares. É um escritor douto, capaz de abarcar um largo espectro de temas, de formas de linguagem, é imensamente culto e consegue trazer essa cultura para dentro dos seus livros.

João Barrento: “A literatura foi contaminada pela acumulação de atualidade”

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João Barrento: “A literatura foi contaminada pela acumulação de atualidade”

Entre o “tempo das chamas revolucionárias” e o actual “tempo das cinzas”, o novo ensaio do tradutor e crítico João Barrento olha para as últimas décadas da literatura portuguesa.

Considera que o último grande romance que se produziu na literatura portuguesa no novo milénio foi Myra, de Maria Velho da Costa, e critica a obsessão dos romancistas e poetas do pós 25 de Abril pelo realismo de inspiração televisiva. A propósito do ensaio A Chama e as Cinzas, agora publicado na Bertrand, o ensaísta e tradutor João Barrento falou com o Observador e partiu em busca dos “pirilampos”: pequenas luzes que “irradiam no escuro da literatura e da poesia”, que não são fáceis de encontrar mas que ainda assim, são aquilo que o faz “acreditar no futuro”.

Neste ensaio que nasce em 1997, a convite de Vasco Graça Moura para a Feira do Livro de Frankfurt, Barrento traça um arco de uma vida, entre “o dia inicial inteiro e limpo”, cantado por Sophia, e a literatura em tempos de indigência dos dias que correm, onde, diz, “a literatura portuguesa tornou-se um reality-show”, onde a crítica e a interrogação do mundo “cederam lugar ao sentimentalismo”. Escritos originalmente em alemão, estes textos tiveram o título Nelken und Immortellen. Portugiesische Literatur der Gegenwart [“Cravos e Perpétuas. A literatura portuguesa contemporânea”] e estão também publicados na editora berlinense Tranvia.

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João Barrento traduziu muitas obras de poesia, ficção e filosofia de língua alemã: Rilke, Paul Celan, poetas expressionistas alemães, Robert Musil ou Walter Benjamin. Mas é também um ensaísta com cerca de duas dezenas de obras publicadas. Foi professor na Universidade de Hamburgo, na Universidade de Lisboa e na Universidade Nova. Atualmente é o responsável pelo espólio e divulgação da escritora Maria Gabriela Llansol.

Defende que a literatura portuguesa das décadas depois de Abril é um sismógrafo da realidade e que os mais interessantes desvios, as maiores audácias temáticas e estilísticas foram feitas por mulheres, em especial Maria Gabriela Llansol. É um traço geral acertado?
Depois de anos décadas de uma “escrita de escravos” debaixo da ditadura, o 25 de Abril e o que com ele adveio — fim do Império, Guerra Colonial, Europa — fizeram com que o mais obsessivo tema da literatura portuguesa fosse a Identidade. Quer através do romance histórico, onde o pano de fundo é sempre Portugal, seja para o corrigir e para redimir nostalgicamente os esquecidos da História, seja para criticar e auto-flagelar a condição de português, seja para satirizar ou para salvar a tal alma portuguesa.

É normal que depois da ditadura tudo o que estava subterraneamente guardado viesse à superfície. Mesmo os livros de Llansol, na sua atemporalidade, e ainda que remetam para a história humana, não deixam de tocar a história portuguesa. O mesmo aconteceu com a poesia em grupos como o do Cartucho (Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, Helder Moura Pereira, António Franco Alexandre) que obrigaram a poesia a um regresso ao real. Mas um real que espelhava o novo Portugal, urbano, fortemente desencantado, profundamente melancólico, mesmo se irónico. É aqui que encontramos também poetas como Vasco Graça Moura, Fernando Pinto do Amaral, Luís Miguel Nava, Al Berto…

gabriela

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A importância das escritoras para a renovação da literatura portuguesa é algo que já vem dos anos 60 mas que se vai solidificar nos anos 80 e 90. Quer no romance, com Agustina, Lídia Jorge, Maria Velho da Costa, Teolinda Gersão, quer no conto com Maria Judite Carvalho, Teresa Veiga, Luísa Costa Gomes, quer em obra sem género definido como são os livros de Llansol ou Hélia Correia, foram as mulheres que mais arrojaram em termos temáticos, estilísticos. Elas introduzem uma desordem, com a polifonia, a meta-narrativa, a intertextualidade, uma nova ordem do simbólico que se manifesta na forma como usam os tempos, a autoreferencialidade, a subjetividade. Nas escritoras a busca de uma voz é a busca de um sentido e, nesse caminho, elas fizeram uma rebelião contra o discurso masculino que dominava a ficção portuguesa. Penso que o romance mais importante que foi escrito depois de 2000 foi Myra de Maria Velho da Costa, que continua a ser a nossa maior escritora viva. Não me parece que nada do que foi feito entretanto se possa comparar.

Nem casos em que a crítica foi unânime, como o de Dulce Maria Cardoso e o livro O Retorno, por exemplo?
Considero que estes romances que estão hoje a ser escritos sobre a Guerra Colonial, o pós-colonialismo, estão demasiado ancorados na linha documental e excessivamente personalizados nas experiências dos seus autores. Talvez esta nova geração necessite de reagir contra a visão mágica e mítica das obras anteriores, como as de Lídia Jorge, de Teolinda Gersão ou mesmo de António Lobo Antunes mas, na verdade, são obras que não rebentam os estereótipos dominantes relativamente a esta temática.

Escreve que a literatura, como a poesia, “não é apenas contar uma história”…
Claro que não. A literatura e a poesia são sobretudo um trabalho de estruturação de um olhar sobre o mundo e depois a colocação desse olhar sob a forma de linguagem. Uma linguagem que não se limite a contar factos (isso, lá está, é o que fazem os media) mas que dê a ver o invisível através do visível. Isto não é uma questão de rejeitar o realismo mas sim da forma como se pode dar a ver esse realismo. Não há certamente escritor mais realista que o Beckett e no entanto olhe-se para a linguagem dos livros dele…

velho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No seu livro escreve que voltámos a uma ficção conservadora, que “parece estar totalmente refém da linguagem televisiva, do videoclip, e totalmente incapaz de interrogar criticamente a consciência do leitor e o mundo em redor”. Porquê?
A imposição do romance quase como sinónimo de literatura apagando a poesia e o conto, o realismo de cariz conservador e banal, a pobreza da linguagem, são sintomas de um mundo sem memória, onde a cultura, a arte e a literatura se regem por paradigmas economicistas. O único lugar onde ainda existem valores é na Bolsa. A vida das pessoas gira em torno do consumo e das vivências do corpo mas apenas na sua perspetiva hedonista. Logo, o simbólico, a letra, a palavra saem a perder. A tecnologia apaga a palavra. A literatura foi totalmente contaminada pela acumulação de atualidade, de informação, abdicando do espaço da História, da memória. Obriga-nos a um eterno presente onde imperam as imagens.

Sob esses escritores e poetas permanentemente sob os holofotes espreita a perda da capacidade de ler, o enfraquecimento da capacidade de enfrentar e decifrar enigmas, porque toda a sua capacidade simbólica está enfraquecida pelas mensagens dominantes, demasiado ruidosas e demasiado simplistas. Uma das grandes perdas do nosso tempo é essa capacidade imaginante só alcançável através da palavra, de uma imaginação que progride a partir da força da palavra.

Criou até uma série de siglas que usa para classificar essa nova “literatura realista” de que fala. Começou com RUST, para Margarida Rebelo Pinto. Que categorias são essas?
RUST significa Realismo Urbano Sentimental Total e criei esta sigla para a Margarida Rebelo Pinto, mas agora também lá colocaria o Valter Hugo Mãe dos últimos romances. Depois Tenho o Realismo Rural Não Total, RRNT, onde coloco o José Luís Peixoto e o Afonso Cruz, que é aquele rural exótico. Tenho ainda o Realismo Fantástico Total, o RFT dos romances do José Rodrigues dos Santos. Mas há outros, a lista seria infindável. Há agora também a moda da violência espetacular de um autor de quem já gostei mas que hoje não acho nada interessante que é o Paulo José Miranda. Na mesma linha li um livro do Valério Romão e achei que apesar de tudo ele tem mais recursos. De entre estes novos e mediáticos escritores o único cuja obra eu considero original é o Gonçalo M. Tavares. É um escritor douto, capaz de abarcar um largo espectro de temas, de formas de linguagem, é imensamente culto e consegue trazer essa cultura para dentro dos seus livros.

Quando aborda a poesia feita desde 1974 começa por citar Eduardo Lourenço: “É do silêncio de uma época que a poesia se alimenta”. Afirma que lhe interessam menos os poetas que se fixam nos seus universos pessoais “sem consequências”, e mais aqueles que na sua poesia “configuram o seu tempo”. Refere poetas ainda próximos do neo-realismo como Egito Gonçalves, até aos poetas reunidos em torno da revista Apócrifa. Mas o seu grande destaque vai para o grupo de poetas do Cartucho. Porquê estes?
O grupo de poetas do cartucho [surgiu em 1976 com a “publicação” de poemas em folhas amachucadas dentro de um cartucho de papel, como se fossem castanhas assadas] era uma reação ao grupo Poesia 61 e trouxeram não só ecos da poesia de Frank O’Hara ou Philip Larkin, da pop art, mas sobretudo trouxeram uma nova linguagem para falar do real quotidiano, que depois, nos anos 90, os Poetas Sem Qualidades tentaram imitar, embora sem os mesmos resultados. Porque enquanto os poetas do Cartucho estavam dentro do “real” de que falavam, os Poetas Sem Qualidades, na sua demanda nihilista total, posicionavam-se sempre fora desse “real”. Como se estivessem em cima, a ver o mundo lá em baixo. Por isso, considero que, até ao início do milénio, poetas mais fecundos foram aqueles que, sendo mais realistas, ficcionalizam o espaço lírico mas sem nunca abdicarem de um olhar interrogativo sobre o mundo, cultivando a abertura para novas direções poéticas. Como é o caso de Vasco Graça Moura, que faz isto chamando, ao mesmo tempo, as heranças da grande poesia europeia e portuguesa, de Dante a Camões, de Cesário a Alexandre O’Neill.

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Que percurso vê na poesia portuguesa das últimas décadas?
A poesia, como a arte em geral, é sempre a consequência de um tempo e de uma circunstância. Assim, desde os ano 70 a poesia portuguesa abandonou as suas obsessões com a metáfora e a ideologia e começou a traçar um caminho de aproximação ao “real” e à subjetividade. Isso originou projetos muito bons e outros menos, mas é certamente um reflexo do espírito do tempo. Dessa coisa que já se chamou pós-modernidade. A poesia portuguesa destes anos é uma reação a todas estas transformações sociais e emocionais, este “baldio de afetos” em que se transformaram as relações sociais, para usar uma expressão feliz do poeta Joaquim Manuel Magalhães. Penso que, recentemente, há a redescoberta de uma certa fé na poesia aliada a um olhar crítico e irreverente que muito me agrada e que está a acontecer com os poetas muito novos, na casa dos 20/30 anos. Entre eles destaco dois grupos: os criaturistas, Diogo Vaz Pinto, David Teles Pereira e Golgona Anghel ligados à revista Criatura que depois se transformou na editora Língua Morta. E os Apócrifos, um conjunto de poetas muito jovens ligados à revista Apócrifa, cuja primeira antologia vai sair em breve com prefácio meu. Também prefaciei, a pedido da editora [Maripoza Azul], o livro Groto Sato de Raquel Nobre Guerra. Era um bom livro. Infelizmente este novo dela, Senhor Roubado, já achei fraco. Mas o que importa é fazer.

Poetas que parecem estar mais próximos de nomes como Ruy Belo, Mário Cesariny, Herberto Helder…
Sim, esses poetas são como três grandes rios da poesia portuguesa, a sua obra é absolutamente singular, não se insere em tendências nem mesmo em grupos. São vozes que inauguraram qualquer coisa absolutamente nova na poesia portuguesa. Ruy Belo é o grande rio do Tempo, Herberto Helder é omnifágico, o grande devorador das experiências humanas. Cesariny é o grande destruidor dos lugares comuns. E hoje, nesta atmosfera opressiva em que vivemos, é preciso mais e mais irreverência. É preciso não esquecer que dentro do grande estômago deste mundo do consumo tudo cabe. Tudo está na iminência de ser digerido e desaparecer.

E é por isso que insiste que é preciso continuar a fazer, continuar a escrever e continuar a “procurar os pirilampos, um minúsculo brilho que só pode ser encontrado na escuridão”?
Não sou catastrofista, há muitos núcleos de resistência e gosto sobretudo dos que procuram superar-se a si mesmos. É aí que continuo a procurar os pirilampos.

João Barrento: “A literatura foi contaminada pela acumulação de atualidade”