Écrã

Quando o ecrã do computador está em repouso

Vão sucessivamente aparecendo, por programação da máquina,

Imagens que lá pus, e que se sobrepõem aleatoriamente.

Cada uma surge como uma folha trazida pelo vento,

De um lado qualquer, a partir do negro sideral do fundo,

Como se viajasse daí até vir tapar outra; e atraindo-me

Por breves instantes… desfolhando o passado em fragmentos;

Convivem então nesse estranho encontro os rostos, as situações

Mais diferentes, as paisagens longínquas ou os objectos vulgares,

As coisas fulgurantes e as perguntas mais antigas do olhar.

E depois de súbito o ecrã apaga-se, e fica um rectângulo

De novo negro, fechado sobre si próprio, encerrando o passado

Como se este me tivesse dito adeus, e fossem precisos os dedos

Para accionar as teclas e de novo voltarem à vida as imagens

Esquecidas; uma espécie de cegueira se abate sobre mim.

O ecrã é de novo uma noite sem estrelas, nem nuvens,

Como se tudo desde o fundo do universo me tivesse abandonado.

E nesse espelho, que volta a reflectir a minha impaciência,

Só pode aparecer o meu rosto, sorriso benévolo da morte, alma

Que espera dentro da máquina o crepúsculo breve da despedida.

Vítor Oliveira Jorge

O Gato

No laboratório, decorria uma experiência com um gato. Devido ao teor dos produtos utilizados, o gato ficou fluorescente. Os outros gatos admiravam-no. Quando sentiu este estado de celebridade a atingir o ponto mais alto, o gato fluorescente sentiu que o laboratório era pequeno de mais para a lenda que estava a ser criada. Elaborou um plano e fugiu.

Na rua, as pessoas sentiam medo dele, pois tinham por base a ideia de que algo fluorescente não aparenta ser inofensivo para a saúde. Os outros gatos procuravam-no, querendo perceber, observando-o de perto, por que motivo era aquele gato tão diferente. Mas, em pouco tempo, as distracções da cidade levavam-nos a deixar o gato fluorescente, já que algo mirabolante, no frenesim da cidade, perdia sempre algum interesse. Faltava a opinião dos cães e estes foram claros: o gato fluorescente era para afugentar, pois poderia representar perigo.

Ao final de alguns dias, o gato fluorescente era temido pelos humanos, ignorado pelos gatos, que tinham mais do que fazer do que admirá-lo, e afugentado pelos cães, que não gostavam do seu aspecto. Apesar de livre, não era admirado por ninguém. Contra todas as previsões, regressou ao laboratório. A fama tinha lá ficado.

João Nogueira Dias

Conforme-se ao teu corpo

Conforme-se ao teu corpo, à jarra de suco que foi destinada à tua polpa. É bem melhor que outro transporte mais bruto. Se não gesticula o exato da tua opinião, pelo menos não corre da tua vontade. Use um manto que não sufoque, nem corte o cabelo ao meio-dia. Devolva a jarra como a encontrou, tingida de sumo, no canteiro que a terra germina ao se acomodar nela outra vez.

Andréa del Fuego

«Os Malaquias», «O Ouro dos Corcundas» e «O Retorno»

«Os Malaquias», de Andréa del Fuego, Língua Geral

É a mais recente vencedora (e surpresa) do Prémio Literário José Saramago. Nasceu em 1975, em São Paulo, Brasil, e é, entre nós, uma ilustre desconhecida. Ou era; até ser distinguida com o Prémio. O que não deixou ainda foi de estar por publicar entre nós. Assim, lemos o seu livro premiado, «Os Malaquias», no «original», leia-se em português do Brasil – não deixa, de resto, e aqui como aparte, ser curioso verificar como nenhum acordo ortográfico será capaz de elidir a distância que separa uma e outra língua escritas, o que, vistas as coisas, só abona em desfavor do malfadado acordo… Adiante, a’«Os Malaquias». Trata-se de um romance que se lê de uma assentada e que começa por prender o leitor por via do episódio singular que catapulta o restante enredo e suas personagens. Ou seja, o facto de um raio, durante uma tempestade, ter esturricado um casal, na cama do seu quarto, deixando órfãos os seus três filhos. Não levarão a mal o termo utilizado, assim mesmo a autora o emprega a páginas tantas: «… os pais foram esturricados, caiu trovão…» Ou, de outro modo, como vem a afiançar à sua futura noiva um dos filhos sobrevivo, Nico: «Morreram de raio.» Para resumir o caso, mais bonita é a transcrição que refere a morte de Donana e Adolfo ter resultado da fusão de carne e luz. Pois bem, no vale de Serra Morena retenhamos esse trágico acontecimento que certa noite levou um gato a esticar as pernas e as paredes a se retesarem. É este o facto-ignição de todas as estórias consequentes, e por aí se prende o leitor ao correr das páginas, dos pequenos capítulos que às nossas mãos se evaporam.

Mas o que nos prende à leitura? As andanças e desventuras dos três filhos órfãos, António, Nico e Júlia? Também, também, uma vez que não deixa de ser com curiosidade que vamos seguindo os destinos que o destino como partida pregou aos três irmãos. Júlia e António são entregues a um lar de freiras francesas. Logo, logo são separados, quando uma tal de Leila aceita tomar para ajuda caseira a jovem Júlia. António chora, de nada lhe vale. Tornar-se-á o filho do orfanato; destino mais ingrato ainda, pois o doutor Calixto, chamado a modos de urgência, confirma o seu estado singular e inédito na família: António é anão. Por ali crescerá, diferente dos outros meninos: terminadas as tarefas da cozinha, «subia para os quartos das irmãs e abria um gavetão pesado! De pé afundava o rosto nas calcinhas das freiras…» Júlia virá a casar com Messias e a boa nova que o casal fecundará terá idêntico e mísero desenlace: têm um filho anão. Quanto a Nico, o irmão mais velho, que ficara a trabalhar para um fazendeiro vizinho dos seus pais, crescendo com eles, segue um curso mais normal de vida: apaixonar-se-á por Maria e o casamento tem lugar com direito a dois rebentos futuros. Pelo meio destas três vidas, pequenos grandes acasos colaterais, entre os quais um com maior alcance e consequências, o anúncio da vinda para o Vale de Serra Morena de uma hidroeléctrica que, claro está, ira inundar as vidas de todos os seus habitantes.

À margem de todas estas peripécias, diria que aquilo que mais nos prende ao texto é o seu lado formal. Andréa del Fuego (pseudónimo de Andréa dos Santos, que resulta de uma homenagem a uma bailarina naturalista brasileira, Luz del Fuego, que dançava semi-nua, dominando uma cobra pseudónimo) escreve como quem poetiza. Ou seja, cada frase poderia quase ser transformada num poema, e é justamente essa beleza formal, estética, que conferem à sua escrita uma grande musicalidade. Temos pois que a autora não está apenas interessada nos factos e no enredo, antes assume a escrita e a palavra como um objecto criativo, como peça artística. Daí resulta, por decorrência, um engrandecimento da humanidade das suas personagens que facilmente se inscreve, como marca impressiva, no leitor, que assim comunga das suas misérias ou alegrias. Assim, em medida breve, mas prenhe de emoções, avança a narrativa que tem ainda o condão de nos transportar para aquela que imaginamos uma realidade rural de Brasil hoje essencialmente virado para o grande mediatismo urbano. Andréa del Fuego estreou-se literariamente em 2004 com a antologia de contos “Minto Enquanto Posso”, a que se seguiram «Nego Tudo» e «Engano Seu». Com formação em Publicidade, fez também produção de cinema, realizando duas curtas-metragens, “Morro da Garça”, inspirada no universo de Guimarães Rosa, e “O Beijo e Ela”.

 

«O Ouro dos Corcundas», de Paulo Moreiras, Casa das Letras

O romance histórico, penso ser matéria de pouca celeuma, é hoje um dos géneros literários mais apreciados pelo leitor comum, passageiro mais ou menos em trânsito frequente pelas livrarias. Basta, de resto, entrar numa delas para verificar como, às primeiras estantes, se acotovelam títulos e títulos nesta área. Para além do interesse que possam suscitar desasadas vidas de reis e rainhas – personagens garantes de grande percentagem de êxito que tais empreitadas editoriais possam recolher –, talvez um outro facto que explique um tal apreço e adesão do público seja a pobre realidade (e pobres actores?) que hoje conhecemos, vivemos, respiramos. A ficção é viagem, bem certo e sabido, e, ao que parece, para quanto mais longe, no espaço e no tempo, melhor! No mais, a este respeito, outras questões acrescem e sempre se colocam; sobretudo o saber-se onde começa ou acaba um romance dito histórico. Ademais, não é história (que logo passa ao domínio do histórico) cada dia que vivemos? Naturalmente que sim, que a história de hoje será parte do histórico amanhã. Tenha-se, porém, que seja (adopte-se como premissa) histórico o romance cujo tempo de vida das personagens seja já havido. Isto, tão-só, para que haja algum tipo de compartimentação, mais não seja para hipotética elucidação de fronteiras. Mas a que propósito estas delongas… A propósito de Paulo Moreiras e do seu mais recente romance, «O Ouro dos Corcundas», romance que, a valer de alguma coisa esta última premissa, cai que nem luva no domínio do romance histórico. Ou seja, é para o passado que vamos.

E vamos, primeiro ponto, desde já afirmar ser este um belo livro. Dizê-lo ou afirmá-lo, contudo, é coisa de somenos, restará saber porquê. O que me parece, após a sua leitura, aquilo que me transpareceu, é o deleite e gozo tremendo, do acto de escrita, que acode ao autor. Que são de toada pícara e aventureira os romances de Paulo Moreiras já o sabemos, e aqui o mesmo dado se atira ao branco das páginas. O que parece é que neste romance se apura o lance dos dados. Mais do que em qualquer outro seu livro, Paulo Moreiras maneja o tempo e os espaços em que as personagens se movem com imenso à-vontade. Do mesmo modo, exemplar é a gestão da narrativa e dos seus quadros, das pequenas estórias dentro da história, mais parecendo o escritor um estratega ou exímio jogador de xadrez na exposição dos factos narrativos. Em suma, o encadeamento e ritmo da história é notável. No mais, o que torna este romance um livro de muito fácil e apetecível leitura? Por um lado, o desenho das personagens, vivas, vibráteis, humanas, reais, fidedignas, por outro, o modo como a escrita se tempera, do princípio ao fim, com um invejável domínio e conhecimento de ditos e anexins, adágios ou rifões, provérbios e quejandos, a que acresce uma riqueza vocabular de se lhe tirar o chapéu. Claro está que há ainda a referir algo que de sempre Paulo Moreiras incute aos seus romances, ou seja, inúmeras referências gastronómicas (no caso ao tempero de época), no que é um caso assaz singular e muito interessante no actual panorama da ficção portuguesa.

Quanto à intriga, tudo começa com o regresso a casa de um bandoleiro de província preso e libertado em Lisboa às mãos das tropas liberais de D. Pedro investindo contra as hostes miguelistas. Vicente Maria soube da morte do pai e retorna a casa disposto a encarreirar a sua vida, de preferência com o amor da sua vida, a puta Tomásia. Sucede que o passado é cão que não larga o osso do herói e galã e tudo parece correr-lhe a desfavor. Assim dita o destino sua Lei maior pelo que a resposta terá de surgir à altura: juntando-se a um bando de malfeitores Vicente tenta o último golpe, na verdade uma golpada, o assalto a uma carruagem de nobres em trânsito para a província. Sai-lhe o tiro pela culatra e acabam por roubar o tesouro do Reino. Está o caldo entornado e Vicente Maria acaba por escaldar-se. Ou quase… Resumindo: romance histórico ou não histórico, pouco interessa, interessa que «O Ouro dos Corcundas» é livro merecedor de entrar para a história das leituras a recomendar. Mais não fosse pelo modo como facilmente nos faz reencontrar com o prazer da leitura, sem se esquecer de devidamente nos contextualizar quanto ao tempo histórico da acção.

«O Retorno», de Dulce Maria Cardoso, Tinta da China

O Retorno» é o quarto romance de Dulce Maria Cardoso. Galardoada com diversas distinções literárias – entre as quais o Prémio da União Europeia para a Literatura, pelo livro «Os Meus Sentimentos», ou o Prémio Literário Acontece, atribuído a «Campo de Sangue» -, terá sido a descoberta da autora fora de portas a merecer-lhe o convite para uma residência literária que a levou a viver um ano na Alemanha. Foi aí que escreveu o romance que agora a catapultou para o primeiro plano da Imprensa portuguesa, meio em que o seu reconhecimento tem sido gradual. Para além de um romance que, como diz a escritora, a levou a decidir tornar-se escritora, este será também, ou é, de certa forma, um romance que abre uma porta até hoje fechada, a do olhar de uma geração sobre um tempo português de miséria, vergonha e turbação.

Nascida em 1964, Dulce encarna a geração dos filhos da guerra, os filhos dos homens que combateram em África por uma terra que diziam ser nossa, do Minho até Timor, os filhos daqueles que tendo começado uma vida em África se viram engolidos pelo rolo compressor da História que os levou a deixar uma terra que tinham como sua, que amavam como sua, que queriam como sua, regressando de mãos vazias a uma metrópole que mais do que os acolher, os recebeu como pôde, mal e vergonhosamente. Como aliás, o país se encarregaria de tratar também aqueles que lutaram por uma ideia de nação ultramarina gasta e condenada ao fracasso que os anos, e as muitas vítimas de um conflito perdido à nascença, se encarregariam de demonstrar.

Aqui, porém, é dos retornados que se fala. Pela voz de uma criança, depois adolescente, que aprende a vida passando pela descoberta precoce do medo, da humilhação, da discriminação. Romance a dois tempos, dividido entre um lá e um cá, um antes e depois do regresso, o que aqui nos é dado a perceber é o modo cinzento como então se via o mundo, de um lado, os bons, do outro, os maus; isto é, um mundo visto com a inocência de um olhar daltónico, que mais não sabia distinguir que apenas o branco e o preto.

Livro testemunho, é nessa medida um livro empenhado em instituir-se como testemunha de um tempo e de um processo que o tempo não apagou ainda por completo, tão-só porque as memórias e as emoções não se apagam por deliberação, tão-só porque se trata de um tempo, ou de tempos conturbados, que muita gente parece não interessada em escalpelizar – por vergonha? Porque passou, passou? Ou porque exactamente não passou? Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes, em 1964. Para além dos romances supracitados editou ainda «O Chão dos Pardais» e o livro de contos «Até Nós». «O Retorno» tem edição, digna e de bom gosto, da Tinta da China. Porque a literatura é a maior arma contra o esquecimento, «O Retorno» é um livro a não deixar passar em branco. Tal como por vezes alguns insistem a fazer com certos momentos da História…

Dois Tempos

E antes do silêncio derramado que também ocupou um lugar entre nós, ainda ouvi sua voz arrastada. Depois se endireitou na cadeira e secou o suor que lhe corria pela face corada. A cigana. Suas argolas tremeluzentes. Sobrancelhas marcadas. Os olhos negros. Baços.

A madrugada de ventos e redemoinhos recorrentes. Uma estrela riscou o céu. Outra mais. A lua, entre nuvens esgarçadas.

Estou chegando agora e me colhe o brilho frio do espelho da sala. De frente, de perfil. Por esse ângulo talvez. Desde então insisto.

Ernane Catroli

Square Room

Nicole Kranz é uma jovem escritora suíça-brasileira que vive em Genebra. O trecho abaixo foi extraído de seu romance inédito “Square Room”, que conta a história de um casal doente: ela, borderline, e ele, um narcisista perverso. No embate doloroso e destrutivo que se transforma o casamento, é difícil reconhecer o que é paixão, desespero e doença.


Sou borderline. Toco as bordas, vou além, supero e ultrapasso. Eu me atenho aos limites que determino à medida que minha loucura avança. Não tenho medo, não temo nada, toco a morte todo dia, eu gosto disso. A vida, eu a sobrevivo, temerosa do que ela pode me dar. Gosto de morrer a fogo brando. Calculo o que posso oferecer, cuspo na felicidade alheia. Sinto tédio, o cotidiano é insuportável. Preciso de adrenalina, de substâncias que me dão energia, luzes, barulho, velocidade, na dimensao de Manhatan. Eu me mexo, grito, danço, não paro. A inércia me mata.
Minha vida não passa de uma doença mental. Meu cérebro está em vigília, só meus olhos se fecham. Não preciso dormir, falar, dialogar, escutar me basta. Não preciso compartilhar, nem amar ou fingir amar para dar segurança ao outro. Sem lemas, sem moral, valores esquecidos para sempre: sou este monstro que vem de longe, perto de ti.
Os médicos são doidos por isso. A loucura os interessa e enche seus cofres. Infiltrar-se na mente de um louco, aprender a compreendê la, eles jamais entenderão nada. Eu manco. Um remédio não é mais que uma muleta. Mas onde está a outra muleta? Aquela que me permite caminhar ereta.

Sou um narcisista perversa. Muros de concreto. Portas fechadas para sempre. Eu vous retiro o bem, sem vos fazer mal. Eu vos conduzo diretamente ao inferno. Lá, onde a última perversão não é mais do que uma doce loucura.
Desde aquele momento, viveis numa paranóia. Viveis desde sempre orgulhosos de mim, fui eu quem vos deixou assim! Chave jogada bem no fundo da água, só por milagre vos salvareis.
Não há tempo. Não vos darei jamais a oportunidade de correr a toda velocidade através dos campos e reencontrar a paz!
Anoréxica, esquizofrênica, borderline. Eu vos aborreço. Escondida atrás de minha máscara, jamais me apanhareis. Não sou doente! Lede bem estas palavras. Não estou doente. Sou um monstro, o pior ser humano que Deus pode criar.
Não nego, o jogo de esconde-esconde, é isso que me diverte. Eu vos tranformo em otários. Somente eu conheço a perfeição do vício.
Deixo-vos as emoções. Elas não me trazem nada. Uma lágrima correria pela minha face apenas para vos comover melhor. Completamente artificial, minha tristeza não passa de outro artifício.
Dizer-vos “eu te amo” ao pé do ouvido não passa de pretexto para vos foder melhor. Por trás, pela frente, vosso olhar me facilita a tarefa.
Conseguir meu prazer solitariamente. Não são mais que objetos aquilo que me permite atingir o prazer. Minha perversão sexual? De qualquer forma porei a culpa em vós. És a puta, sou eu o santo! Fantasia do religioso. Comer uma puta. É para isso que me caso contigo.
Traço meu caminho à minha maneira, sem armadilha, sem volteios, e sem remorsos. Deixarei os mortos para trás. Cadáveres na terra, somente aqueles que compreendem o que sou sairão vivos.

Nicole Kranz

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Vigésimo Episódio

Non-sense 8

Um casal fazendo 69 é encontrado mumificado na praia depois de um tsunami como se fosse uma escultura em areia e ganha manchetes na mídia internacional. O tablóide fala sobre um caranguejo que teria saída da vagina da mulher na hora em que carregavam os corpos.

 

(continua)

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Décimo nono Episódio

Tropos 3

Nenhum dilúvio retomará ao início. Tudo será continuidade. E sobreviventes serão a repetição. Vísceras putrefatas sobre o balcão canino da negociação. As relações em balcão de açougue. Esperma perdido no fundo cego das vaginas. O mijo quente em colchões d’ água. Lençóis do tempo. Chapéu mexicano. A física é o artefato religioso do intelecto. A economia dos odores do tempo. E o Conde Drácula alegrou os pobres dando-lhes alimento e queimando-os vivos, estômagos fartos.

O cheiro de carne queimada. O rasgo no tórax. Ruídos metálicos. O coração pulsando fraco. Mênstruo. Gazes embebidas da morte lenta. As luvas largadas sobre o campo verde. Um corpo abandonado nos mistérios do fim. Todos dão as costas ao morto. Somente a enfermeira desnuda o corpo-morto. Desperdício! Todos olham na direção do saído de sua boca e se afastam. Ela é a última. Na sala de cirurgia, um morto depara-se com a solidão que sempre evitou. Sonha?

Rumo. Prumo. Do papai-e-mamãe ao sexo oral. O riso encarando os santos. A voz de dentro: não vi Diabo nem antes nem depois. Assim foi. Mas demorou. O tempo das fantasias. Cúmplices. Tanto e tão intenso o gozo. Agendaram encontro semanal na sacristia. Desvirginada moralmente. Clementina sem cabaço moral. Sob olhares santos. Quem acreditaria? E o proibido acrescenta e cega. Descuidaram-se. O frei e a mulher. Amantes inexperientes. Não usaram camisinha. E o frei implorando aos anjos um milagre. Mas o prazer ovula. O gozo é Maldoror.

 

(continua)

A minha experiência entre os Abokowo #7

O primeiro homem, que era também o primeiro abokowo tinha dentro de si o universo inteiro que era, nesse tempo, uma unidade semelhante a um ovo luminoso. Um dia, o primeiro homem, ao ver-se reflectido no rio, dividiu-se em dois: um ficou com a língua, o outro com o paladar; um ficou com as melodias das canções, o outro com o ritmo dos tambores; um ficou com o vento, o outro com os cabelos a ondular; um ficou com os lagos, o outro com o reflexo da lua. Então, para os descendentes do primeiro Abokowo – que são todos os homens –, o mundo deixou de ser uma unidade para passar a ser um vaso de barro partido em bocados. 

Afonso Cruz

A minha experiência entre os Abokowo #6

Os Abokowo dão, com frequência e enquanto conversam, pequenos saltos. O salto é, para eles, a prova de que por mais que tentem afastar-se da terra, ela chama-os sempre de volta. Pertencemos-lhe, dizem. A palavra para terra é “pupua” e significa mãe e quando os Abokowo dizem essa palavra – ou outras como, “amor” ou “amizade” –, dão sempre um pequeno salto.

Afonso Cruz

Quando me pediu

Quando me pediu pra ir embora, achei melhor. A Miriam estacou no portão, ela e Francisco de Assis. Devota, carismática de uma estátua, cada dia se entretendo mais com Assis que comigo. Homem quieto, de pouca força no baço, operado da vesícula, eu. Saí pela rua, na faixa de pedestre, encontrei Assis em pessoa. Se estava lá, como o vi com Miriam? Agarrei o santo e o fiz voltar comigo até em casa. Assis atendeu, vi a barra da saia de Miriam terminar de subir a escada. Um santo pediu pro outro entrar e fechou a porta na minha cara. São dois.

Andréa del Fuego

Nos rascunhos de João II

Olavo ainda rezingou ao sair da casa da cartomante com um inexpressivo sete de copas nas mãos: A sorte da vida onde sempre esteve foi no inferno. A minha sorte é que vou para o inferno, pensou ao abater a anciã que olhava estática seus olhos de homem desesperado. O meu azar é que vou encontrar você, disse ao estreitar as mãos no pescoço do siamês que o arranhou quase como Claudina deixaria de fazer para sempre, quando chegasse a casa, naquela noite.

 ERRATA:

Onde se escreve:

A minha sorte é que vou para o inferno, pensou ao abater a anciã que olhava extática seus olhos de homem. O meu azar é que vou encontrar você, disse ao estreitar as mãos no pescoço do siamês que o arranhou quase como Claudina deixaria de fazer para sempre, quando chegasse a casa, naquela noite.

Deve ser lido:

A tua sorte é que vais para o inferno junto a ele, pensei ao abater sua mãe que olhava extática meus olhos de esposa infiel.

Francisco Rogido

Nicolau Tolentino e a moda

O último ‘Ponto de Mira’ relembrou Aluísio Azevedo e fê-lo no quadro de uma análise à prospecção moderna da realidade que, como se sabe, valorizou, quer a inscrição de um novo tipo de sujeito criador, quer a objectividade que esse sujeito acabaria por revelar e descobrir experimentalmente. Os trechos do autor de O Cortiço (1890) foram, na passada semana, comparados ao emergir do cinematógrafo, tendo a ênfase sido dada sobretudo ao modo como o mundo urbano, o movimento mais imediato das ruas e o encadeamento das acções do quotidiano iam surgindo transpostos e representados (neste caso literariamente).

Se recuarmos um século e aportarmos em Nicolau Tolentino de Almeida (1740 -1811), encontramos curiosamente alguns sinais de que este tipo de traçado iluminista e moderno estaria já em curso. Apesar de Pombal, Portugal não deixou de viver de costas para o grande devir iluminista franco-alemão da segunda metade de setecentos, embora tal não signifique, de modo algum, que a época se tenha convertido numa espécie de cartografia absolutamente em branco (existe um curioso ímpeto literário, neste preciso momento, na redescoberta deste período; veja-se o caso de As Luzes de Leonor de Maria Teresa Horta, já aqui abordado num outro ‘Ponto de Mira’, e ainda o caso mais recente de Macedo, uma história portuguesa da infâmia de António Mega Ferreira).

Como afirmou Claude Maffre, o campo das investigações de Nicolau Tolentino, “independentemente da sua própria pessoa (o mestre de retórica, o jogador, o fadista até), raramente se aventura fora da cidade (de Lisboa), que ele observa com uma minúcia extraordinária, fazendo da sua obra um documento cuja exactidão é fácil comprovar pelo cotejo com os relatos dos viajantes estrangeiros que visitaram o país depois do terramoto (de 1755) ou com as obras de muitos autores contemporâneos”. Seleccionámos para exemplificar a febre de objectividade de Nicolau Tolentino um interessantíssimo soneto que se dedica, todo ele, a um motivo ancorado no dia-a-dia mais frugal: “A moda dos chapéus maiores de marca” (título do poema). Leiamos com toda a calma esta quase reportagem das ofertas de ‘última hora’ do Chiado:

“Amigo e senhor meu, de França ou Malta,/ Um chapéu mande vir à toda a pressa;/ A copa que me ajuste a cabeça/ Mas as abas na forma a mais peralta// A de trás que me fique muito alta,/ Presilha e botão, pequena peça; Estimarei que disto não se esqueça,/ Que a demora me faz bastante falta.// Gostei muito do invento, é bem traçado,/ Porque vi no Loreto, um certo dia,/ Muito povo a correr para o Chiado// Para ver um senhor, quem tal diria,/ C´um chapéu de tal forma desmarcado/ Que nem a gente a pé podia passar.”

O texto, moldado formal e retoricamente ao seu tempo, faz do objecto que representa uma iluminura realmente quotidiana (com referência satírica a aspectos que hoje traduziríamos pelo design – “bem traçado”), estando o “Eu” enunciador omnipresente na breve peça poética (“Gostei muito do invento” ou “Estimarei que disto não se esqueça”). Um recorte paródico e uma focalização desabrida, seja no tom, seja no modo como o torvelinho das ruas é retratado. A caricatura – bastante cinematográfica – podia, perfeitamente, não tanto ancorar no espanto dos irmãos Lumière (comparação mais clara em Aluísio Azevedo), mas sim num ‘apanhado’, uns aninhos depois, da autoria de Ferdinand Zecca já ao serviço da Pathé.

De salientar, para terminar, que a publicação das Obras Completas de Nicolau Tolentino de Almeida, numa óptima edição de Claude Maffre (no caso do poema em apreço – Volume I, Sonetos e Quintilhas, 2008, p.52), constituiu um esforço meritório, mas também um sinal emblemático do fim infeliz de uma grande editora: o Campo das Letras. Fica aqui a homenagem, não só pelos autores de nomeada que deu a conhecer em Portugal, casos de Rubem Fonseca e Patrícia Melo, entre outros, mas também pela colaboração activa que sempre manteve com o PNETliteratura.

Luís Carmelo

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Décimo-Quinto Episódio

Capítulo II

Tropos 1

Chove. Faz meses, tudo seco. Agora a grama recolhida na semente se assanha. O embaçado, berço. A varanda, lugar de descanso. A luz de fundo, faca afiada a rasgar o ventre da escuridão. Silêncio. Alguma barriga aberta na clandestinidade. Do ventre o verbo diante da tempestade. Sombra. Criação é esse nascimento sem sêmen e sem óvulo. Sem tempo. O flash nos apartamentos vizinhos surpreendendo instantes. Fótons do cotidiano. Mergulho na escuridão. Negritude úmida. O metal risca linha reta. Da carne perfurada vaza o vermelho. Baba da morte. O embrulho carrega propedêuticas do crime. Tudo é aparência. Ficção. O dedo no gatilho. A mão segurando a faca. A técnica exige enfiar e cortar. Rasgar a aorta. Única luz.

A ideia. Qual tropo sustenta uma ideia? O homem perdido na rua e no desassossego das imagens. A mágica de um roteiro. Na memória a expressão de uma mulher desesperada pela possibilidade de um mínimo movimento levar tudo pelos ares: suas vísceras e história. E a imagem do ambulante, delirante, verborrágica: vazio na perda e a unha a arrancar aflições dos abismos gota-a-gota e dia-a-dia o gelo desfaz-se diante da impossibilidade e os vermes a corroer a narrativa de voláteis frases e zunidos em voos de debandados.

Assim será. Desejar a diferença. Ejacular prazer exige autoria. Assim o juiz de Maupassant. Matou e ressuscitou. Penalizado no gozo. Renasceu morto. Insuspeito. Assim o frei. Batina e promessa. Carne e sêmen. Instintos. Animal não jura. Se ao outro, nunca a si próprio. É do animal lambiscar mamilos. Penetrar. Melar saliva alheia. Tocar cheiros. Distraimentos. Excomungar promessas. No dia… Nem maldito nem bendito. Apenas mais um dia. Estuprou o limite. Retorceu ferros. Quebrou mármore. Escorreu lavra. Libertou-se. Teólogo. Teórico. Fato consumado. Boceta pegou de assalto o credo. Ali deitado. Na bruma do depois.

 

(continua)

Miguel Real: “Um bom romance deve desmascarar a cultura “descartável”,”

1. – O que é um bom texto narrativo?

1. – Quando o texto une inteligência e sensibilidade, vibra contra o racionalismo na arte, o academicismo, o eruditismo, a retórica balofa, o estilo pedante e pomposo, a literatura livresca e moralista, a total vinculação ao estudo do passado literário sem compromissos estéticos actuais;

2. – Que critério pode ser detectado no texto que identifica a sua “boa qualidade” narrativa?

2. Quando o texto, como pulsão de desejo estético, munido de suficientes portas e janelas por onde corre o ar fresco da criação nova, interpenetra conhecimento e criação;

3. – O que um texto narrativo deve ser?

3. – O texto ganha a sua própria legitimação quando se estatui como espaço estético contra a cultura como efeito de propaganda e contra a cultura como forma de imbecilização de massas;

4. – A quem se dirige o texto narrativo?

4. – Ao leitor. Neste sentido, o texto não deve tratar o leitor nem como idiota nem como génio, e celebrar o paradoxo em detrimento do ortodoxo, a contradição em desfavor da uniformidade, a multiplicidade em desabono da unidade;

5. – O que um texto narrativo deve conter?

5. – Suficiente criatividade para fugir de perspectivas culturais mecânicas, abstractas, descarnadas, presas a cadáveres teoréticos, ausentes dos nervos e do sangue da vida, isto é, das emoções e afectos humanos que, na sua diversidade, compõem o coração da cultura e da história;

6. – Os diálogos são fundamentais num texto narrativo?

6. – Sim, o texto deve aspirar a promover o diálogo, não a tagarelice; o debate, não a cristalização dos argumentos numa fortaleza ideológica;

7. – Defeitos que não devem ser praticados?

7. – O argumento duplicado, a explicação mil vezes explicada ou mil vezes aplicada, o nome da personagem principal mil vezes repisada;

8. – Como encara o predomínio do romance de mercado ou romance “light”?

8. – Um bom romance deve desmascarar a cultura “descartável”, confeccionada para ser vendida, consumida e deitada fora como um par de sapatos velhos, e desconstruir a cultura de massas sem ideias a alimentá-la, ideias originais, fortes, sólidas, que possam iluminar a realidade e perturbar a vida do leitor – um artigo, como um romance, um poema, um ensaio, deve ambicionar a mudar a vida (ou parte da vida) do leitor, abrindo-lhe um outro plano no horizonte da sua vida;

9. – Um texto narrativo deve ser apolítico?

9. – Um romance deve furtar-se à política, mas não ao Poder, e reclamar uma exigência de rigor ético cujo objectivo último reside na maior amplidão da lucidez humana, isto é, da capacidade crítica da razão humana;

10. – Qual o grande objectivo quando escreve?

10. – Tornar os meus textos um espaço de transgressão estética, de desmando cultural, de provocação analítica.

Miguel Real, Azenhas do Mar, Sintra, 10 de Novembro de 2011.

Aluísio Azevedo, pioneiro do cinematógrafo

A necessidade de definir as origens e os fins, facto marcante de todos os relatos ideológicos e também do discurso que consideramos hoje como segmentadamente religioso, teve um impacto decisivo na literatura: o seu cariz narrativo. Por outro lado, a poética, ou seja a múltipla plasticidade a que a linguagem teve culturalmente que se submeter para poder dizer o indizível, também teve um impacto relevantíssimo na literatura: a produção específica de poesia. Colocando de lado estas duas codificações literárias fundamentais, o tempo e a narração, por um lado, e a poética e a poesia, por outro lado, sobra um terceiro elemento: o espaço.

Com efeito, o espaço e a descrição não têm uma história tão hipercodificada, decorrendo sobretudo, ao contrário do tempo e da poética, de uma regra empírica e cumulativa, ou seja: de uma herança casuística gerada pela própria prática descritiva no seio da literatura. É evidente que as mais diversas noções de objectividade (e da colateral invenção do sujeito com entidade descobridora e experimental), tão típicas do mundo moderno, se tornariam vitais para uma aferição do descritivo na literatura. As normas espaciais barrocas ou medievais, por razões muito diferentes, nada têm que ver com a urgência de focalização do espaço aberta no final de setecentos e sobretudo em oitocentos.

A reflexão levar-nos-ia longe (continuá-la-emos na próxima semana), mas importa, neste Ponto de Mira, referir um exemplo emblemático da temática e da época, neste caso, o romance O Cortiço de Aluísio Azevedo (1857-1913), publicado no ano de 1890, que descreve, com realismo insaciado, o Rio de Janeiro de finais do século XIX. A palavra desliza entre a ruralidade e a premência urbana, sendo os personagens recortados com contraste pictórico e com uma atenção cinematográfica que é cirurgicamente emprestada ao movimento: “As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão…”. A cinco anos do emergir do cinematógrafo, Aluísio Azevedo surgia aqui claramente como um pioneiro da imagem móvel e um descobridor da representação do imediato. A palavra ao mestre:

“Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta”

(…)

“Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.”

 

Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/estude/literatura/materia_415647.shtml

UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Décimo-Quarto Episódio

Estrato 3

Avó transgressora. Caso com um religioso. Clementina o nome. Serviu ao frei. Ou ao rei. O espaço sacro brilhava. O ejaculado mantido em segredo. A diocese calou. Para o católico pecar é seu próprio vício. O povo apostava em uma saída divina. Uma imolação. Um filho doente. Reforçaria a ideia de pecado. Quem sabe uma gravidez tubária. Boatos. Em bares e pizzarias. Tanto Deus quanto o Diabo são criações humanas. Fruto da esquizofrenia genital. Anjo torto. Maldoror. Tantos demônios quanto anjos. Tempos depois… Clementina mãe de duas meninas. Eugênia, a mais velha; e Ricardina. Podem lhe soar conhecidos os nomes. Tradição dos avós. Escolher os nomes entre figuras literárias. Mas agora ausente e no aguardo. Nas estranhas vozes órfãs de bocas.

Pare! Ouça! Ouvir o quê? Ouça! Ouça! Ouvir o quê? Irritado, o sujeito-expectador entra na loja. Pede uma caneta e papel à balconista. Anota o diálogo e sai. Não encontra mais o Paulo Autran. Está sozinho. Amassa o papel e joga em um bueiro próximo. A voz do sujeito no palco martelando na cabeça: dos bueiros sairão ares morféticos e ratazanas tudo fruto da mente humana e dos deuses enclausurados nas miragens produzidas pelas névoas em antigos portos e que não permitirão noção das horas como se tudo não passasse de desoras e os homens adormecessem mulheres e elas homens e os fetos enfeitiçados pelo mecônio sideral serão anjos barrocos e na escuridão do sol merda será água-benta mijo será pus gonocócico nas ardências ureterais do orgasmo e ouro será fel solitário nas línguas cadavéricas dos ventos e os homens olharão para o céu e para a terra em um ritual catatônico de desespero e a Terra será troço vacante na incerteza.

O que se sente ao ouvir novas sonoridades é estranheza. Mas tudo no barracão sorri. Lindsay vasculha o espaço e a mudez do pai. Lindsay pensa que um dia visitará aqueles lugares que tanto o atraem. Entrará no rádio. Seguirá o emaranhado de fios até chegar nos lábios de quem fala. Será engolida pelo outro. Conhecerá o mundo. Essa palavra que o pai ejacula a cada som diferente descoberto. E Lindsay pula da mesa vazando sons desconexos. E desaparece sem que o pai perceba. A menina mergulha no mundo, desaparece nas dobras do vento. No ar, o chiado do rádio. O olhar do pai esquadrinhando o que a mulher chama de esquisitices. Lindsay acaricia o verde e se faz formiga.

(continua)

Sintag

Os bestiários de há muito vêm registrando os mais estranhos avantesmas.  Mas tenho certeza de que compilador algum tratou do Sintag, o ser literalmente composto de palavras.

É o que se sabe: há em português (há quem diga que também em eslovaco  e armênio) um encontro de palavras que faz nascer o Sintag. E ai do responsável pela infâmia: a criatura devora a língua do seu criador e desaparece para sempre.

É, pois, com um suspiro de alívio que dou fim a este relato, já que o  acaso poderia fazer de mim mais uma vítima.

Álvaro Cardoso Gomes

Fábulas (1)

28 de Setembro 9:00

(…)

Na avenida de Berna, antes da faculdade, dois toxicodependentes, que já foram protagonistas destas linhas, riam com a obscenidade expressiva de alguns quadros de Boch (A Crucificação), enquanto um velho de ar professoral, que eu conheço de algum canto, talvez de um livro ou da televisão, se encostava ao vidro da porta do autocarro, para estudar melhor, parece-me, a arquitectura do prédio em frente. De vez em quando olhava para os marginais, a tentar perceber se o riso era contra ele.

(…)

Da série A Ronda

Paulo Bugalho