45º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Quase me esqueço… Retiro a chave do bolso, coloco-a na fechadura, dou duas voltas até ouvir o ruído do trinco. Suspiro fundo. Filho de uma anta! Ler meus textos! Melhor tomar os medicamentos, está na hora. Tranco a porta, retiro a chave da fechadura e a dependuro no prego. Observo o longo corredor. Gostaria de enxergar, mas os medicamentos só me permitem olhar. Nada além do vazio e do silêncio, morada sem passado. Sigo lentamente como se arrastasse uma bola de ferro presa aos tornozelos. Paro na porta do quarto. Dos móveis, apenas o esboço. Com os remédios tudo se torna raso, bordas, não há volume, profundidade, perde-se o barroco. Logo tudo será uma escuridão só, ontem nem percebi tamanho o cansaço. Se não jogaram no lixo, tenho umas velas na gaveta do armário… Os azulejos que restam na parede da cozinha rebrilham entre as falhas cimentadas e opacas. Aqui estão… Entre ovos de barata e talheres. Melhor retirá-las, são três, uma para o banheiro, outra para o quarto e a derradeira para o escritório. Escurece rapidamente. Da janela da cozinha nada se vê, os prédios ocuparam o horizonte. O fora, nem quadrado azul… O início da noite me carrega uma agonia estranha no peito. Haverá renascimento para o homem? Um dia não mais as janelas acesas nos prédios; o som da alma. Único ruído atravessa a madrugada, vem da casa de André, parede de meio tijolo, é a televisão a alimentar insônias, raramente sinal do telefone, conversas curtas, nem os filhos suportam seu jeito abelhudo, de quem depois da aposentadoria descobriu-se vácuo, sem entusiasmo para recomeçar, apenas um entre milhões no aguardo implacável do fim, sem possibilidade de desdobramentos, que perdeu o mundo e se perdeu na possibilidade de dizer, como eu sob efeito dos medicamentos, hora de tomá-los, antes que as cores retornem, não é momento, é preciso evitar sons que alertem André, procura algum sentido a mais para continuar vivo, um entre tantos gestos inúteis que adota como salva-vidas, três comprimidos circulando no sangue até o cérebro, inundando neurônios, me mantêm enjaulado, quando vou voltar a ler estes livros que agonizam nas prateleiras? Nunca mais… O tempo que resta é para escrever, não ler, já li o suficiente, doarei os livros a alguma biblioteca, venderei a algum sebo, lugar de visita de sujeitos esquisitos, ritual nômade de quem procura uma frase perdida, algo raro ou um ultimato… Mesmo vazias, haverá rastros dos livros nestas prateleiras, como na velha Remington Rand, das escrituras, melhor me sentar na poltrona, deixar a noite enfurnar-se no escritório, não tenho dificuldade alguma para dormir, exercito todos os dias a morte, ao acordar vejo se agarro algo do último sonho, pode ser uma estrada recapeada que me leva a lugar nenhum, asas-delta sobrevoando o vale, eu a apagar registros na lousa, gritos de enclausurados na memória, mas o negro ocupando tudo, acendo a vela, chama negra e branca bruxuleante, o cheiro sem ligações aparentes, as sombras, mas nenhum fantasma, nenhuma associação com algo que poderia chamar de passado, sei que a mãe escrevia um diário, deve estar no sótão, nunca mais entrei lá, coloquei as coisas dela do jeito que deixou, nem vaga lembrança do rosto, talvez pudesse construir uma história para mim, com início, meio e fim, não me importo, ninguém se importaria comigo além da mesma atenção que dedicariam a uma sombra no chão, você pode dizer, mas que dramático, mas não digo nada disso para ser dramático, apenas relato, não carrego culpa, ao contrário, curto cada instante, os medicamentos é que mudam um pouco isso, prefiro a sonoridade da insânia, com ela é possível recriar ouvindo Apelo, Baden Pawell, com Yo Yo-Ma, os medicamentos roubam minha cinestesia, os personagens que habitam a música, mas nem pensar no choque em tempo tão curto, melhor curtir a abstinência do Ser, mesmo em branco e preto, agir sem as nascentes existentes nos sonhos, no delírio, no amor, na criação…

 

 (continua)