Alexandra Malheiro, autora de “Luz Vertical” (prefácio de Pedro Abrunhosa); edita-Me, Editora, Lda

Questionário PNET/Literatura :

1- No mundo tecnológico e instantanista em que vivemos, crê que a literatura, tal como a aprendemos a significar pelo menos desde o Iluminismo, ainda tem sentido?

A Literatura é uma arte, é estética, é uma transfiguração do real onde o real deixa de o ser e toma uma vida e uma realidade autónoma. A Literatura apela aos sentidos e à sua provocação bem como à provocação dos paradigmas que cada um transporta consigo, é uma oportunidade de interioridade e reflexão e ao mesmo tempo um apelo ao sonho e à sublimação.

Assim sendo creio que apesar de instantista e cada vez mais tecnológico o mundo que vivemos não tem menos lugar à Literatura, esta serve, aliás, como uma forma de reestruturarmos o nosso equilíbrio mental, permitindo tantas vezes uma fuga à realidade e à realização pela sublimação. Não creio que a Literatura seja menos necessária e urgente hoje do que foi em épocas passadas.

2- Qual foi o último acontecimento literário, independentemente da sua natureza, que mais lhe tocou? Porquê?

A recente atribuição do Prémio Camões, o mais alto galardão da língua portuguesa, ao Manuel António Pina deixou-me muito contente. O Manuel António Pina é um escritor completo, que domina os vários géneros literários desde a escrita jornalística, a crónica – onde eu tanto o admiro – a poesia, a escrita para crianças, o teatro, enfim, é completo e o que salta à vista no Manuel António Pina é a extraordinária capacidade de observação do seu redor e a capacidade que tem, também, de de forma muito clara e em poucos caracteres transfigurar toda essa realidade, dando-lhe vida literária, tão só pelas palavras que usa para o fazer. Fiquei muito satisfeita, como aliás também tinha ficado com a escolha de Ferreira Gullar, que é um poeta que aprecio, no ano anterior.

3- Fale-nos resumidamente do seu último livro, como se estivesse a revê-lo em voz alta para um grupo de amigos.

“Luz Vertical” é um livro de poemas. É pequeno porque gosto de livros portáteis que possam viajar connosco e porque entendo que um livro de poemas, não sendo um romance, não contanto nenhuma história, deve ter coerência, um fio condutor e não ser uma amalgama de poemas sem nexo ou norte.

Chama-se “Luz Vertical” fazendo referência àquela luz vertical e fria que abre clareiras na neblina do Porto e que fere os olhos. A poesia, como toda a arte, deve também conseguir ferir os olhos, os sentidos, para que depois possamos sentir melhor.

O livro divide-se em duas partes antagónicas ainda que complementares – “A vertigem” primeiro, onde os poemas são mais secos, pretendem abanar o leitor, são uma espécie de ascese que culmina na segunda parte “A conciliação” que visa isso mesmo, acalmar a vertigem, são poemas mais conciliadores, alavancados por outros mais curtos a que chamei “apontamentos”. É, parece-me, um livro coerente, assolado pelo fogo, pela luz e pela  sombra que esta projecta.

São 42 poemas antecedidos do prefácio escrito por Pedro Abrunhosa. O Pedro acedeu, com enorme generosidade, assoberbado que estava com a finalização do seu último disco, a escrever-lhe o prefácio, coisa que eu acho dificílima, escrever um prefácio a livro de poesia, e fê-lo tão bem, que costumo dizer que é o primeiro dos restantes 42 poemas.

4- Pensa que a literatura e a rede poderão vir a ter, de algum modo, um destino comum?

Literatura e rede têm já, inexoravelmente, os seus destinos entroncados. Com o avançar dos tempos e da tecnologia a literatura tem de migrar também para esse campo. Acredito que durante muitos anos a nós actuais leitores, nos faça falta o tacto e o cheiro dos livros, a sua sensualidade pelo toque, mas certamente senão os nossos filhos, pelo menos os nossos netos ou bisnetos talvez não tenham já essa apetência, porém é sempre mais importante o conteúdo do que o continente e a Literatura seja sob que formato for ser-nos-á sempre necessária e  pode ser tão simples como dizer “Ama, como a estrada começa.” A veiculação da Literatura pela net pode até torná-la mais democrática pelo fácil acesso embora possivelmente mais confusa por tão difusa, mas a isso, como a tudo o mais, o ser humano se adaptará.

5- Refira dois autores e duas obras que o tenham marcado na sua carreira.

Encontro muito mais do que apenas dois autores e dois livros que me tenham marcado, é muito difícil restringir essa escolha a um par…

Como autores terei de nomear Eça de Queirós e Eugénio de Andrade. Eça foi a minha grande descoberta estética na escrita ainda muito jovem, o discurso absolutamente fluente, a elegantíssima ironia acutilante, as descrições apuradíssimas do ambiente e dos caracteres, extraordinário. O Eugénio é mais ou menos o correspondente em formato poético, uma simplicidade de linguagem usada de forma tão absolutamente perfeita que quando ele diz “rio” podemos quase ouvi-lo correr e sentir-lhe o frescor, é impressionante a sua capacidade de apelar ao sensitivo. No que toca aos livros a escolha é ainda mais complicada. Borges dizia que somos as pessoas que amamos e os livros que lemos e eu acredito que sim, por isso terei de ter em mim muito mais do que apenas dois livros, vai daí que já que tive de deixar de fora o José Gomes Ferreira nos autores vou penitenciar-me escolhendo o seu “Poeta Militante” (os 3 volumes) como um dos livros que me marcou e que releio periodicamente, o Zé Gomes é o poeta da espantação e esse seu livro, que abarca várias épocas, é quase uma epopeia poética, é um livro cheio de sangue e entranhas, cheio de pele e garra, é imprescindível. Por fim, tal é a dificuldade em escolher um outro livro, vou escolher antes um disco que vale tanto como pequeno livro de poemas (são 13 poemas magníficos) como vale no seu todo. Toda poesia não pretende senão ascender à condição de música porque é na música que reside a verdadeira poesia e aqui o conjunto música-poemas-interpretação é soberbo, falo do “Silêncio” de Pedro Abrunhosa, não se fica igual depois de o ouvir, é um abalo estético, é poesia pura. Escolher o seu autor para me prefaciar o livro não foi casual.