A terceira imagem

O cinema faz-se a partir de imagens fixas, passadas a uma velocidade tal que parecem ter sequência – ainda para mais uma sequência fluída. Sendo assim, o paradoxo inicial a qualquer questão metafísica – pode uma imagem representar o transcendente – é ultrapassado.

Porque o vazio está lá sempre, o cinema não é imagens em movimento. O cinema é constituído por imagens paradas que o nosso cérebro interliga. O verdadeiro filme acontece na nossa cabeça, não no ecrã.

Aquilo a que chamamos cinema é, na verdade, constituído por uma terceira imagem: a que se forma, no nosso espírito, entre as duas que lá estão e a que a nossa cabeça cria a interligá-las.

Fernando Pessoa diz uma coisa parecida mas diferente:

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

Diferente porque, na literatura, não há imagens, há palavras. Tudo é, desde logo, transmutação.

Parecida, porque  o processo é similar: o leitor “inventa” o que julga estar a ler. Ou seja, o leitor que se julga passivo é, na verdade, agente. Tal como o espectador de um filme ignora que está a co-laborar no que está a ver.

É bom de vez em quando fazer estas separações às palavras, porque nos permite relembrar a sua essência primórdia. Co-laborar é partilhar o labor com alguém. Se há coisa que me irrita são as pessoas que pensam que a literatura é uma actividade solitária. Não é. Tão pouco como ler é uma actividade solitária. Solitária?!? Pois se uma pessoa tem um livro na mão, caramba!

Com o filme, ao menos, não se cai nessa asneira. Todos sabemos logo à partida que é a arte de colaboração por excelência.

Sabemos também que é a arte do movimento. Imagens que se movem, não é essa a ideia? Gente em acção.

Essa dependência da acção é, aliás, o ponto fraco do cinema. E, por contraposição, o ponto forte da literatura. Um livro continua a ser a melhor forma de descrever – de escrever – as turbulências da vida interior.

O cinema tem, no entanto, uma forma de dar a volta a essa sua fragilidade: porque, é certo, um filme tem de acompanhar os movimentos externos de uma personagem, mas essa é também uma forma perfeitamente legítima de representar a vida interior, a busca metafísica. Afinal, o que é uma peregrinação senão uma viagem? E que outra forma estética representa melhor a viagem do que… pois, precisamente, o cinema?  

Não por acaso, os filmes que mais me comovem são aqueles que assumem a forma de uma viagem. Obviamente, podemos teorizar que todas as histórias são, desde logo, isso: passagens de um ponto X a um ponto Y. Viagens. Era uma vez um cavaleiro que foi em demanda do Santo Graal… Etc.

Certo. Mas admitamos que há um consenso de que a viagem – a peregrinação – é mais eloquentemente representada no cinema do que noutras formas de arte. Há de resto um certo tipo de filmes que, mais do que outros, interpretam a viagem. Os americanos inventaram mesmo a expressãoroad movie, não?

Curiosamente, não me comovem por aí além os filmes bíblicos ou as revisitações directas de temas religiosos. Infelizmente, muitas dessas, mesmo as mais bem intencionadas, ou até as vagamente provocatórias (estou a lembrar-me de Quo vadis de Mervin LeRoy, 1951, ou d’A última tentação de Cristo de Martin Scorcese, 1988), deixam-me tão frio como um filete de peixe (um douradinho) esquecido no congelador.

Esses filmes fazem a caricatura do que o cinema é: apresentam os passos, tintim por tintim, da componente mais ou menos histriónica do que possa ser uma epifania. Não me serve.

Em contrapartida, servem-me filmes que, como quem não quer a coisa, querem a coisa. Filmes que buscam retratar, a partir da presentificação de movimentos externos (o corpo, sempre o corpo – o corpo no mundo, sempre o corpo no mundo), o processo, sempre doloroso, sempre imprevisível do encontro do humano com a centelha divina. Ou, se quisermos, do encontro do humano com a condição divina. Ou, melhor ainda, o encontro de alguém com a condição humana.

Um dos meus favoritos, e que sugiro com gosto para visionamento ou discussão, é o Andrei Rublyov (1966), do grande cineasta russo Andrey Tarkovsky. Uma maravilha. A partir de trechos soltos da vida de um monge pintor de ícones do século XIV, Tarkovsky não só agarra um tempo russo como constrói, em forma de colagem, um retábulo da busca do divino através de uma longa peregrinação – que ao próprio aparece, quase até ao fim, como mera errância.  

É quase uma evidência: uma verdadeira peregrinação parece quase sempre ao próprio, suspeito, uma errância sem sentido. “Até ao lavar das cestas é vindima” – este provérbio tem mesmo muito que se lhe diga.

Por acaso, esse filme – Andrei Rublyov, ou Rublev – tem a melhor descrição do processo de realizar um filme. A cena do sino, com a qual de resto esta obra-prima de três horas termina. A ver e, está bem, depois a discutir. Não antes, não antes.

Outro filme de Tarkosvky que me enche as medidas é o maravilhoso Stalker (1979), baseado numa novela maliciosa de dois russos malandrecos, os irmãos Strugatsky (Piquenique à beira estrada, Caminho, 1979), mas despojado – Tarkovsky oblige – da malícia e do humor destes. Um acidente nuclear, ou a queda de uma espaçonave, ou outro factor qualquer, tornaram uma Zona num lugar especial, onde os nossos desejos podem ser satisfeitos. Um Guia conduz um Cientista e um Poeta a esse terreno estranho. O que acontece depois é também para discutir depois de se ver.

Só o divino faz sentido discutir antes de ser vislumbrado. Um filme, por mais artístico que seja, é, para todos os efeitos, um objecto. Um filme pode ser alugado numa loja, o transcendental não – pelo menos por enquanto. Valha-nos isso.

Mas não gostava de me despedir sem falar antes de, pelo menos, um filme mais recente. A minha sugestão é Little Miss Sunshine, de Jonathan Dayton e Valerie Faris. Digo o título em inglês porque o português é pavoroso, embora compreenda que é difícil traduzir o original, que fala de um concurso de beleza para crianças (um triste pesadelo americano) inexistente (por enquanto) em Portugal. A tradução é: Uma família à beira de um ataque de nervos.  Trata-se, a meu ver, do mais encantador filme de 2006. E, sim, é um filme familiar. De uma família em viagem. Ou, se preferirmos, de uma viagem em família.

E também do objecto fílmico que, este ano, mais me aproximou duma ideia possível de Deus.