16º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Então ele em casa, nós diante de um corpo desprovido, mutilado, que carece de movimento, sem possibilidade de sermos alcançados e repreendidos. Não tem como reagir, o que nos agrada. Mas você abusa. Estivesse ao alcance dele… Sempre fui eu o castigado. Você é esse meu lado invisível, que age no encanto, no feitiço. Agora ele não passa de um nome fraturado, lasca do que era; inútil. Rosto torto e uma metade paralisada. Permanece o dia todo em casa… Dependente em tudo, a mãe cuidando. Lá vem ela, trazendo a sopa ainda quente. Ajeita a cabeça dele em seu peito. A colher na pausa e no sopro dos lábios para esfriar. Metade do conteúdo vaza pelo lado paralisado. Irritado, ele agita o braço e derruba a sopa, faz maior a sujeira, a mãe repousa o prato no móvel, limpa calmamente o pescoço e o peito do marido. Você olhando, curioso, eu evito a cena, a mãe nos descobrindo próximos, devia saber desse outro de mim, mais levado e capeta. Vai, vai fazer alguma coisa! Não diria nunca vão fazer alguma coisa, mesmo sabendo de mais um na mesma carcaça. Corremos pelo longo corredor de pé direito alto. Ainda nenhum fantasma visível. O sino já na porta. A rua de terra batida. A mãe nos esqueceu. Passamos o dia todo na rua sem ver seu avental. Duas olheiras achegaram-se ao redor de seus olhos. Duas jabuticabas chupadas lentamente pelo velho que morria aos goles e tentava levá-la junto. Do quarto, quando tudo na casa dorme: soluços. Ainda ouço os ruídos tristes vindos de lá. Você não vem jantar? Na porta do escritório, Carol. Não mais a porta da cozinha com Clara. Nem Carol… De repente, lembranças. Do dia em que ouvi Clara dizer ao pai de seu receio quanto ao destino do filho, das preocupações que tinha pelo meu jeito quieto de ser, muito parecido ao comportamento do irmão que deu cabo da própria vida e que eu não conheci, preocupação que nunca a deixou, muito mais tarde, diante da morte dela, o pedido para que eu procurasse ajuda, ironizei seu medo, a morte estava diante de nós, não me preocupava com ela, mas com o modo que ela me pegaria, se fosse para sofrer apressaria o final, disse-lhe, e ela calou de vez em meu colo, deixou comigo a expressão que fazia quando me flagrava falando sozinho, preocupação inútil que carregava, suicídio fazia parte de meus propósitos quando no surto, o que me apavora até hoje, mas não seria capaz, há algo em mim que apesar de não pertencer a nenhuma tribo ou clã prende-me a um território muito pessoal, caótico e imaginário, não possuo raízes além das plantadas nesta casa centenária, cartografia do abismo, não acredito em cura psicanalítica quando as referências se perderam, não faço parte desse exército de burocratas e intelectuais que se voltam para o trabalho em casa e para os esportes, cozinham e cuidam do jardim, jogam tênis e vôlei de praia, como se agindo ao modo tocassem alguma existência, mas ela abandonada em alguma dobra da história, meu território pertence às palavras, a suas ligações e afetos, e que me arrastam com suas máscaras e simulacros, seus cantos, danças e rituais; quando morrer será delas a existência. Mas qual o motivo de tanta fuga e racionalização? Pensava no encontro com Carol… Ela diante de mim, pornográfica, me fez descobrir a poesia no que virgem e selvagem, nas umidades e nos ruídos provocados pelo atrito, separar sensualidade da pornografia é obra de quem mergulhado em excesso de culpa, nesse coletivo cuja subjetividade é substituir árvores por prédios, cobrir a terra com asfalto, isto sim é pornográfico, matar a natureza… Seria negar a paixão pela mãe? A natureza é feminina, mesmo nas tempestades. Mas Carol não precisa matar ninguém. É livre e sem culpas. Olá, você sabe onde fica… Sábado, eu sozinho, Ipiranga com São João. Se permitir, posso levá-la, é meu caminho.

 

(continua)