71º e último episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e um episódios

O pai um sujeito magro e alto, queixo e orelhas grandes, logo os levam para dentro da casa, dizem que passam o dia jogando xadrez, que nas férias vão à praia, não conhecíamos o mar até o dia em que papai alugou a casa na praia, mas não ficou conosco, era para se livrar da família um tempo, diz que tem muito trabalho, Clara não reclama, foi quando descobri felicidade no rosto dela, permanecia horas sentada diante do mar enquanto brincávamos na praia, era outra mulher a que via caminhando na areia, fitando o crepúsculo, mas foram poucas as vezes que a vi feliz assim, nunca saímos daqui, a cidade cresceu e nós fomos ficando pequeninos, o apito da fábrica, meio-dia, hora do almoço, os funcionários saem da fábrica e enfileiram-se sentados no muro que ocupa todo um quarteirão, roubou nossa rua, aliás nossa rua não existe mais, melhor entrarmos, é bom estarmos juntos, reconstruir o cenário, os movimentos, os personagens… Não suporto conviver com tantas pessoas me olhando, o limpa-pés sujo de bosta, sempre há um engraçadinho que pisou na merda espalhada pelos cães nas calçadas, a chave na fechadura, o ruído da porta destravada, o longo corredor escuro, a luz do escritório, o ruído da velha Remington Rand, os dedos em movimento, a poltrona de couro de carneiro vazia, onde todos? Eu muito próximo do lugar onde não há mais para onde ir, a morte será sempre o presente do futuro, só quem conseguir o livro conhecerá a obra de Samuel F., mas não saberá quem sou nem onde tudo ocorreu, não há corpo nem cartografias nesse putrefato sentado em uma cadeira, diante de uma velha máquina de escrever, ao lado um pacote ainda virgem de papel reciclado, obra por se (des)fazer, na parede a fotografia com Carol, Clara e Samael F.; e chegamos a um não-lugar, não há mais para onde ir…

 

FIM