61º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

O mesmo nas ruas, cada vez mais. A única bala perdida dentro de um hospício não são as metálicas, mas as colocadas na boca dos internos pelos enfermeiros, aviadas pelos médicos, pelos doutores da vida e da morte. Amélia trocou os lençóis, o quarto está perfumado, vou pedir que na minha morte perfumem o caixão desse modo, durmo sem travesseiro, acho que sempre foi assim, que livro seria esse que foi aceito para publicação? André criticou o que escrevo… Ninguém suporta. Os psiquiatras ficaram horrorizados com um texto escrito com a unha na parede de minha cela, aquilo não era um quarto, custou-me um choque a mais, o aprisionamento do outro de mim, não conseguiria escrever nem mesmo um diário, não tenho qualquer interesse em atuar no tempo comum, se o faço é pelo resultado do tratamento, repetir o mesmo, sempre e do mesmo jeito, reforçar o modelo, mas só com os remédios meu mundo assim, em branco e preto, eu sem gozo, sem prazer, sem desejo… Mentira! Desejo existe, só estou usando a tática do perdedor, o tempo resolverá, é preciso perder o mundo e viver o inferno da impossibilidade do dizer, ser escritor é isso, prostituir as palavras, transmitir todas as pragas possíveis, isso não é possível sem o outro, escritura necessita sempre de dois, como no sonho, há sempre um fora de cena…

A luz zebrando o assoalho… Que horas seriam? Sensação de ter dormido muito. É possível que várias noites tenham se passado, os dias sem criatividade, sempre os mesmos, circular, repetitivo, construído pelo mesmo, as palavras frágeis e sem poder criativo, ninguém suporta o silêncio, como se fosse o oposto da palavra, mas é no silêncio que a escrita helicoidal, não há totalidade a não ser na loucura coletiva, tenho dormindo muito todas as noites, efeito dos remédios, a fresta na parede, dois olhos me espiam… Saco! Não tomei os medicamentos ontem à noite, melhor me levantar, dobrar a dose agora cedo, na parede a data atual, não acredito, amanhã será o dia da visita da assistente social, a consulta com o psiquiatra ocorreu faz uma semana, ele elogiou minha evolução clínica, disse assim mesmo, clichê, o que mais ouço das pessoas são respostas prontas, André praticamente esqueceu-se de mim, ouço o som da televisão na casa dele, não é incomum arrumar alguma encrenca com vizinhos e transeuntes, estou feliz por estar fora de seu foco… Amélia também não se preocupa mais comigo, vive elogiando meu comportamento, minha melhora, percebo nela um interesse de se misturar com minha normalidade, até que gostaria, mas não quero nada com essa gente que pensa me ajudar e me mata lentamente, que não percebe o próprio suicídio imposto pela rotina. Hoje é dia de ir ao banco receber a aposentadoria, antes tomarei um bom café com leite… Na cozinha vaga lembrança da mulher sentada na cadeira, do gato aguardando a ração, mas nada sobre Carol. Do outro lado da parede, nada se houve, está dormindo ou morreu… Besteira! Gente ruim não morre nunca! A pia está carregada de louça suja, Amélia vem amanhã, a assistente social vem à tarde. Melhor sair, tomar o café na padaria, mas antes mais uma lida no diário:

Volto do médico. Não sei como anunciar o problema a Samael. O que não se pode dizer… Escrever é possível. O problema não é a morte, mas o modo, não gostaria de dar trabalho aos dois, ainda mais agora que estão tão bem. Para não fugir à verdade, estou até tranquila, se é para morrer que seja no momento em que estamos mais felizes, quando não há mais planejamentos, quando vivemos a plenitude, mesmo que temporariamente, mas não sei como dar a notícia, talvez melhor não dizer nada, caso venha a perceber… O doutor falou em pouco mais de um ano. Ainda bem Carol em casa. Não ficará sozinho. Será internado tão logo não tenha mais ninguém, hoje sei que é doente, conversei com o médico, falou-me que há um componente genético em algumas psicoses, que o álcool pode desencadear surtos, mas eu estou contente que não beba mais, não vê-lo mais nos cantos, falando sozinho, diminuiu o tempo em que fica no escritório, não ficou triste com a repercussão do livro, muitas críticas perversas, mas ele acredita no que escreve, rejeitou entrevistas para defender a obra, o editor não gostou muito, disse-me dias desses que não me preocupasse com ele, que a doença faz com que viva no limite, lugar evitado por todos, daí as críticas nada elogiosas… Não seria de todo mal o momento de minha morte. Pelo menos posso pedir que Carol continue a cuidar dele. O que mais poderia desejar uma mãe que não fosse ser substituída por uma mulher tão preocupada quanto ela própria nos cuidados com um filho? Mesmo sendo um homem… Para a mãe, o filho nunca cresce. Há culpa nisso, sei bem, sem irmão, um pai ausente, a mãe distante do que desejaria como família… Agora o anúncio do fim, hoje os médicos não omitem nada. Melhor assim, podemos nos preparar, e aos próximos… Não vou comunicar ainda, aguardarei os acontecimentos, é melhor, não vou roubar o momento feliz em que os dois estão vivendo.

 

(continua)