A paisagem hipnótica

Nunca partilhei do spleen de quem olha para o nosso tempo com a perspectiva de que este já não lhe pertence. É um facto que, nas últimas décadas, um horizonte fixo de referências com mais de dois séculos de idade se foi descolando da experiência do dia-a-dia, do mesmo modo que a tecnologia veio atribuir ao quotidiano e ao presente novos significados.

A banalidade de que tanto hoje se fala é, em grande parte, resultado da reordenação de expressões e linguagens num quadro de mudanças bem mais vastas. Esta pulverização expressiva atravessa um conjunto vastíssimo de territórios e não se limita naturalmente ao que continua a ser (esquematicamente) designado por perímetro artístico, incluindo aí a literatura confrontada com a rede e com o ascendente do digital (veja-se o recente exemplo de Francoforte).

Os campos hoje em dia contaminam-se, confundem-se e movem-se. Subitamente, quebraram-se as paredes que limitavam os géneros e as legitimações expressivas, ao mesmo tempo que se passaram a ouvir vozes que antes não dispunham de meio onde enquadrar a sua expressão própria. Todos conhecíamos já a tradição espistolográfica, enciclopédica e opinativa que era complementada com modelos adequados à tradução do intimismo (diário, crónica, memórias, etc.). Contudo, as novas expressões veiculadas pela rede tem proporcionado, nos últimos anos, a enunciação de tipos expressivos que não se enquadram em nenhum destes moldes que parecem ter sempre existido.

Esta emergente explosão de vozes tem arrastado consigo errância, procura e sobretudo afirmação admirada. Do seu nada, novas vozes e (por vezes) o anonimato encarnaram e encorparam o vertiginoso papel de autor e de editor, na confluência de olhares que ainda ontem dividia o imenso fosso entre auditório e emissor, ou seja, no caso literário, entre público e escritor. Desaparecido o palco que os afastava, removida a crisálida que envolvia a voz, transposto para a rede o desejo de “dizer”, eis que a novíssima panóplia desabrochou.

E com ela, entre ela, também com ela, a expressão de alguma banalidade. Mas não se reduzam as novas expressões, de modo simplista e apressado, a mera banalidade. Até porque, para muitos, a banalidade é uma manifestação de deriva e desvario que espelha a descida do ‘céu das expressões’ à ‘poeira terrena dos mortais’. A dessacralização expressiva ‘em curso’ é comum a muito do que atravessa a arte (dita) pobre, a blogosfera, a estética do minúsculo (caso Twitter) e a inscrição em papel ou não de variadas vozes literárias. Reduzir tudo isto a banalidade e a pós-qualquer coisa é não querer ver a paisagem que se move – de de que modo – ali mesmo à nossa frente.

LC