Enquanto crescia, a minha bisavó morrera há um tempo tão pouco que o seu nome circulava em vida pela casa. O temperamento, as manias e os hábitos superaram o derrame de terra no cemitério encrustado em meio à cidade e mantinham-na estampada nas paredes, ao pé do fogão de seis bocas ou apoiada no umbral da porta de entrada explicando por que necessitava voltar para a casa na vila. O sotaque lusitano perpetuava-se no preparo do cozido de carnes e legumes, um evento anual da família, liderada então pela avó que em todos os cantos adornava o apartamento com galinhos portugueses em objetos, tapeçarias, bordados na toalha de mesa e guardanapos ou sinos de tocar. Compondo um passado por vezes disforme, estas lembranças são mais do que apenas lembranças, servem de alicerces para a alma aludida na doutrina socrática, a alma de memórias. Densa e transparente como uma lágrima.
Recentemente se organizou no centro cultural King Juan Carlos uma conferência à respeito de literatura portuguesa, sob o enfoque antropológico. Naquela noite tratava-se da invisibilidade do imigrante português. A discussão contava com os ilustres professores-doutores Onésimo T. Almeida, membro do elenco do PnetLiteratura, Cristiana Bastos e Frank F. de Sousa, recém chegados da conferência American Portuguese Studies International na Brown University sobre literatura portuguesa organizado no ínicio do mês de outubro. Iniciado o primeiro painel na sala aconchegante, onde da mesma poltrona assisti ao festival de curtas (“cortocircuito7 – The Latino Short Film Festival of New York”) da América Latina e Espanha, caiu-me o termo invisibilidade um tanto inaceitável ou, pelo menos, ponto para princípio de reflexão sob novo prisma. Por coincidência, um dos curtas de destaque do festival tratara da figura do “amigo imaginário” (ou invisível?) que ocupa a infância de muitos. Em filme, estes amigos ocultos encontravam-se e discutiam como a nova mídia, incluindo os jogos eletrônicos, colocava-os no olho da rua e o que fazer com tantos super-heróis inutilizados.
A discussão aflorou quando panelistas e audiência buscavam argumentos para explicar a presença discreta dos imigrantes portugueses nos Estados Unidos. Estas comunidades concentraram-se principalmente na costa leste, nos arredores de Massachussets e Rhode Island e Nova Jérsei, e parte na costa oeste, Califórnia. Os fluxos imigratórios ocorreram em diferentes épocas, resultando numa população de cerca de um milhão de luso-americanos, excluindo-se deste número os brasileiros e africanos descendentes de portugueses também. Questionou-se as razões destes imigrantes não destacarem a cultura de origem através da literatura. Citou-se John Roderigo dos Passos (1844-1917), cidadão americano de origem madeirense, escritor predominantemente americano e absorvido pela cultura local e os movimentos políticos da época. Por sua vez, na literatura contemporânea, conta-se com Katherine Vaz, participante e panelista, autora de Saudade, Our Lady of the Artichoke and Other Portuguese American Stories, é aclamada como uma das maiores vozes literárias dentre os portugueses-americanos, embora de origem materna irlandesa. Também o poeta e escritor Frank X.Gaspar, professor de estudos portugueses da universidade de Dartmouth, traz em seu currículo livros Deixando a Ilha do Pico, Stealing Fatima, The Holyoke, dentre outros, que refletem o legado dos avós imigrantes na comunidade pesqueira da costa leste. Fora do contexto específico dos imigrantes luso-americanos, o tema imigração tem iluminado obras recentes por Adriana Lisboa, Luiz Ruffato, José Luis Peixoto, expoentes da literatura lusófona contemporânea.
De navio rumo ao primeiro porto em Recife e, depois, o cais do Rio de Janeiro, a bisavó deixara Braga e seus costumes tradicionais, os vestidos das viúvas enlutadas no negro fechado, esta imagem dos Trás-dos-Montes, um arquétipo indelével. Os parentes aclimatados no estilo de vida carioca acolheram-na e ela, órfã e vivente naquela época de viagens custosas, jamais regressou a Portugal. Não creio que vislumbraria o mundo de possibilidades que me tocaria em poucas décadas sobrepostas, as viagens de idas e vindas entre o Brasil e os Estados Unidos, as visitas a Portugal, a versão mais mundana da imigração. Para além das praticidades atingidas, mencione-se os avanços tecnológicos que a bisavó descartaria como fantasias e delírios. Porquanto levava a vida pacata na antiga Ilha do Governador, seguramente apreciava a chegada de uma carta com notícias longínquas. Nas cercânias, instalaria-se o novo e moderno aeroporto, cujos aviões transportariam a carga humana da globalização. Hoje, a comunicação se dá silenciosa pelas mensagens instantâneas, acusadas por estudiosos como Thomas Pettitt da universidade da Dinamarca como meio da pré-era Guttenberg, abrindo assim um debate em leque sobre os níveis de evolução civilizatória.
Na celeridade do tempo, dilui-se o suor que uma carta envelopada pudesse provocar por todos os poros. Imperfeições que a vida nos exige encarar. Não fossem os Correios, empregador do bisavô, a mãe e o pai da avó talvez não se houvessem conhecido e gosto de romancear a primeira troca de olhares e a afirmação das afinidades nos arredores da agência central dos Correios, o envio premente de notícias além-mar precipitando-os.
Se houve o Orientalismo de Edward Said, um mistério oculta a inexistência do Luso-Orientalismo, questão proposta no recanto cultural ibérico. Na palestra atendida, um segundo quadro de intelectuais discutiu a colonização de Goa sob influência portuguesa, testemunho deste fragmento histórico. O caso de Goa interessa aos estudiosos no que diz respeito à penetração estrangeira numa sociedade milenar e o impacto de colonizadores descritos como não tão “agressivos” a ponto de instaurar o idioma português naquele ponto do mapa asiático. O escritor sectagenário Victor-Rangel Ribeiro, autor de Tivolem, agraciou o público com um relato da sua experiência pessoal, a juventude em Goa, os conflitos de identidade cultural sofridos, as viagens da Ásia para a Inglaterra e a sua instalação definitiva nos Estados Unidos.
Afirmando a necessidade de divulgação da literatura lusófona, o Center for Portuguese Literary and Cultural Studies da Universidade de Massachussets (Dartmouth) e a Gávea-Brown da Brown University respectivamente sob as tutelas dos professores Frank F. De Sousa e Onésimo T. De Almeida tratam da publicação de livros relevantes à literatura lusófona, assim contribuindo para apagar os rastros de invisibilidade apontados como característicos deste grupo de imigrantes. Numa nota menor, entretanto de igual importância, o Brazilian Endowement for the Arts, presidido pelo admirável Domício Coutinho, organizou na House of the Americas, Columbia University e West Point Academy, um congresso com ciclo de palestras em homenagem ao centenário de Joaquim Nabuco. Fica aqui a divulgação do evento e felicitações pelo elegante trabalho em prol das letras brasileiras e portuguesas.
Por fim, como que para encerrar estas divagações, tomo às mãos “A cor do invisível” de Mario Quintana. São poemas que traduzem o movimento das nuvens sobre um porto parado, o mundo por vezes tão insignificativo, uma viagem em fuga a cada saída da casa. “Como é bela uma asa em pleno vôo… uma vela em alto-mar… Sua vida – toda ela! – está contida, Entre o partir e o chegar…” E “porque são os passos que fazem os caminhos”, é que na invisibilidade de cada e todo o imigrante, uma pobre alma em paciente espera, densa mas transparente como uma lágrima. Furta-cor. A nostalgia da bisavó e de todos os que viajaram a trazer-me, então, até aqui.