Machado de Assis em Linguagem de Paulo Coelho | Silas Correa Leite

“Não se aprende a ler Machado de Assis lendo menos do que Machado de Assis”
Sidney Chalhoub – Professor da UNCAMP
Autor de ‘Machado de Assis Historiador’ (Companhia das Letras)

O Brasil é o pais da piada pronta, dá para acreditar nisso? O bom e velho (e saudoso) ‘síndico’ artista Tim Maia dizia que, lamentavelmente o nosso país era um lugar em que pobre era de direita, mulher de programa tinha prazer, cafetão tinha ciúme e traficante era viciado… Muito recentemente, o jornalista e livre pensador humorista Zé Simão, da Folha de São Paulo, vem dizendo que o nossa nação emergente no mundo, o Brasil, é agora também o país da piada pronta, pois querem derrubar um… ex-presidente… Pois é, o medo do Lula criou monstros e criticozinhos de ocasião, os rotulados Coxinhas-daslu, depois do Temer os coxinhas Hipoglós. Assim, poderia ser vergonhoso e trágico, se não fosse, por assim dizer, tragicômico, e vergonhoso mesmo, o país querer agora que o seu maior escritor, Machado de Assim, seja um Paulo Coelho da vida. Já pensou, que disparate, caras pálidas, um gênio até então, de repente, ser tachado de Machado Coelho, ou Paulo de Assis? Ninguém merece.
Por essas e outras, juro que não acreditei quando li que o nosso MEC-Ministério de Educação e Cultura agregou valores de altas verbas públicas para que um investimento de peso financeiro viesse a produzir lítero-editorialmente trezentos mil exemplares de uma “edição reformatada” (curto e grosso, prosa pra boi dormir) do grande livro “Alienista” de Machado de Assis, ideia, obra, de uma, ponhamos, escritora (escritora quem mesmo?) jovem e contemporânea. Não acredito. Sabe aquele mote de um engraçado burrinho popularesco da mídia de humor dizendo/repetindo “Não Acredito/Não Acredito?” Pois me senti assim… o próprio. Não se aprende a ler Machado de Assis lendo Paulo Coelho, lendo ou sendo apenas leitor de apenas Paulo Coelho… para dizer o mínimo…
Machado de Assis é o melhor escritor brasileiro de todos os tempos. A qualidade literária, a lucidez fora de série e o talento foram confirmados com o passar dos anos. Ler Machado de Assis é ter orgulho de ser brasileiro. De origem humilde, paulatinamente foi criando o seu magnífico mundo letral espetacular, fundou a Academia de Letras, marcou a arte lítero-cultural brasileiríssima com a sua essência de vida e também com o próprio registro magistral de sua época, de seu tempo, incluindo as agruras socioculturais do período. Escrevia como quem punha a alma do Brasil para madurar, dando testemunho de si nos despojos, registrando com sapiência em tantos livros importantes o seu valor, a sua cultura, fazendo com que, cem anos depois, ainda o estejamos estudando, tenhamos orgulho dele, pois nunca mais haverá outro como Machado de Assis, se assim podemos dizer, o Número Um. No Brasil é lido entusiasticamente como nunca, seus textos caem em provas e vestibulares oficiais de renome, jovens universitários de gabarito descobrem e estudam a sua maestria com as palavras, a construção dos quadros narrativos, o estilo todo peculiar e inconfundível. Fora do Brasil é tido como um gênio, a altura dos grandes nomes da literatura mundial, até mesmo muitas vezes sendo cobrado porque não teria sido indicado para o Prêmio Nobel de Literatura. Romances que passam a limpo as mudanças que vivia o Brasil; tons irônicos, enfoques humanitários, sempre recuperando situações nodais, moldando palavras e criticando os contrastes sociais de sua época e outras, império, escravatura, sociedade. Documentou, historiou, humorizou, decodificou o meio hipócrita e mostrou toda a sua verve e o depuro no oficio do qual era mestre. Técnica narrativa cativadora, surpreendente linguagem e abstração portentosa que fundava ali, a graceza cultural emergente no seu mais alto estilo e qualidade, revelando a tez chão de sua carreira até hoje inquestionável. A importância de Machado de Assis cem anos depois de sua morte é a própria prova de que ele foi muito além de seu tempo, apesar das agruras do que a vida lhe impôs, e que talvez por isso mesmo também em seu caráter fizeram-no forte, valorando sua ética como registro de um povo, de um tempo, de um lugar. Sem ele, a literatura brasileira não seria a mesma. A sua importância até hoje é o testemunho do que ele foi pioneiro na qualidade histórica de sua área, insubstituível e o próprio tempo, como juiz soberano o valora sobremaneira, colocando-o no patamar dos melhores do mundo. Marco histórico, portanto, Machado de Assis tornou-se referencial para autores que o sucederam no ramo literário, criou linhagem qualitativa, fez escola, é comparado e está acima de todos, sendo citado com probidade e garbo, servindo como acervo de pesquisas históricas acadêmicas até, pertinente ao seu momento literal (costumes, figurinos, crendices, visões do império, da escravatura, da abolição, da república), além de dar sustentação para teses sociológicas e ainda ser considerado o fundador do melhor quilate da arte narrativa brasileira. Quando queremos citar um cidadão humilde que brilhantemente venceu na vida com arrojo, o primeiro nome lembrado é Machado de Assis. A sua importância é que seus livros vendem, sua técnica narrativa densa atrai, os seus personagens cativam (como Capitu e Bentinho, por exemplo) e ainda, com profundidade, permite múltiplos entendimentos, fazendo-no um personagem de si mesmo, um mito, portanto.
Pois agora, acredite se quiser, a ideia de jerico, por assim dizer, desde logo contestando-a, nasceu depois que programa Ler é Fundamental, criado pela escritora Patrícia Engel Secco (quem mesmo?), aventou de querer romper a tal barreira que separa as pessoas do maior escritor brasileiro. Separa? “Muita gente nunca ouvir falar dele. O que é uma lástima. Esperamos que, com esse projeto, mas pessoas se disponham a ler o original”. Além de ser distribuído gratuitamente em versão impressa, é possível baixar a versão adaptada pela internet. Onde já se viu isso? Baixaria. Para matar o berne do boi vamos matar o boi? Sejamos lúcidos. Não atentemos contra o nosso maior patrimônio.
Para facilitar a leitura… ora, vejamos, teríamos que investir mais em educação, cultura, bibliotecas, meios de comunicação com nível superior, e não uma mídia abutre, não suplementos de cultura ter mais modismos ou link fashion do que arte propriamente dita. O Brasil tem mais igrejas, shoppings e farmácias do que tem bibliotecas públicas. Isso quer dizer alguma coisa? Tem mais novela chinfrim de baixarias anti-famílias do que investimento pesado de obras clássicas de nossa literatura no teatro, no cinema, na televisão. Tem mais canais de tevês propagando o ódio do que transparência e ética humanitária. É como querer que o leitor de língua inglesa compreenda Shakespeare a partir de resumos popularescos e água-com-açúcar de sua grande obra. Já pensou? O bruxo do Cosme Velho, certamente que regurgita no túmulo. Onde já se viu isso, tem cabimento? Melhor estar morto do que saber uma asneira historial dessas. Memórias Póstumas de Machado de Assis a parte…
Pois, alegam, os que não têm nada para fazer/pensar,  que a linguagem é antiga, desusada (linguagem culta) etc. e tal, as desculpas do arco da velha. Ora, se mal ou bem comparando, Jose Saramago é, no melhor estilo e do nível de Machado de Assis, sendo culto e denso, por assim dizer, e compreendido, valorado e atual, Nobel, porque seria diferente com o autor de O Alienista, Dom Casmurro, etc? Foi a mesma historia quando começaram a fazer historias em quadrinhos ilustrando textos consagrados e historiais de clássicos brasileiros, a imagem que o autor criava em sua cabeça, de acordo com a sua cultura, tendo em vista os textos subjetivos dos autores ilustrados, e não funcionou a tal ótima ideia, porque na pratica não casou o texto com a narrativa, com as belas imagens, não chegou, o projeto, portanto, a levar mais gente a ler nossos clássicos, de Jose de Alencar a Machado de Assis mesmo, em suas contações.
Por essas e outras, querer que o leitor seja cativado para admirar, ler e gostar de Machado de Assis, a partir de linguagem comum adaptada ao modo de dizer atual, estilo “paulocoelhando”, é um chiste, é chulo, de mau gosto, um abuso, inadmissível, quase um inderoco público. Claro, se não podemos fazer Paulo Coelho ser de alto nível litero-cultural como Machado de Assis, vamos criar fieis leitores de Sidney Shelton e olhe lá. Mas Machado de Assis no estilo de Paulo Coelho é uma vergonha, um acinte. Vou sistematicamente criticar o MEC e protestar contra o alienado (ou, no caso, a alienada) que quer adaptar o Alienista. Vão ler Shapeskeare adaptado ao estilo Sidney Shelton? Pois é. “’Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis’, diz a escritora Patrícia Secco. ‘Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso.’ Você acredita no que está lendo, isso? Não acredito… não acredito… não acredito…
Rildo Polycarpo Oliveira no Facebook diz: “É preciso lembrar que um texto literário não se reduz à sua forma e que o todo que apenas metodologicamente discernimos como forma e conteúdo não é dissociável, de modo que transgredir a forma é no melhor dos casos criar uma outra obra, mas nesse caso implica numa adulteração, numa falsificação. Desde onde vejo, não vale muito a intenção de dar um feitio atual e juvenil à obra de Machado, porque é antes importante que os leitores se liberem do fetiche do presente, até mesmo do fetiche da própria juventude.”
Lendo e comparando Machado de Assis e José Saramago, obras datadas, de alto nível, entre as melhores do mundo, de todos os tempos, medidas as proporções, ainda estão no mais alto conceito litero-cultural e que o leitor que, se quer se inteirar, se quer sabê-los, que leia devagar, aos poucos, curtindo, pesquisando palavras, consultando dicionários se for o caso, aprendendo, evoluindo, pensando, crescendo, tentando paulatinamente entrar de cabeça na obra e estilo de um e de outro, não querendo papagaiar uma linguagem boba e jeca para destronar nossos melhores autores, mitos, que não são meros best-sellers.  Regras do mercado? Machado de Assis mutilado? Tentativa de tornar infanto-juvenil o nosso maior escritor? O país da piada pronta poderia muito bem passar sem essa. Agora sim, temos motivo e razão para irmos para a rua passatear contra essa barbaridade. “Fora Machado de Assim Adaptado Para os subcretinos, os Sem Cérebro!”
Silas Correa Leite – Escritor, Professor, Jornalista Comunitário, Pós-graduado em Literatura na Comunicação, ECA-USP)
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Autor de GOTO, A Lenda do Reino do Barqueiro Noturno do Rio Itararé, Editorawww.clubedeautores.com.br