Folklíricos & Cia.

«Eis que,  passados  alguns dias após a nossa chegada, nos deparámos com os folklíricos, a mais curiosa espécie das ilhas.»

Quem assim escreve (ressalvando-se, embora, os tropeços da tradução) é o capitão John B. Walkman, autor desse estranho e extravagante livro A Happy Summer in the Azores, em que entendeu deixar registo da sua passagem por algumas ilhas do arquipélago, a bordo do Seamaster.

Das razões e espantos do Capitão, erudito em demasia para a patente que ostentava, não cuidará aqui o leitor e  talvez faça mesmo por esquecer alguma sobranceria com que, às vezes, esta escrita nos olha; mas não deixará de anotar o intuito estilizador de Walkman, a tendência para alegorizar-nos a história e os seus  fantasmas: 

«Os folklíricos  chegaram com os primeiros colonos. Desembarcaram trazendo na bagagem o enorme arsenal da paz construída já sobre os mortos do futuro. Depois, através dos tempos, revelaram-se  de uma importância incalculável no processo de contra-subversão levado a efeito na história destes lugares: nos anos de seca, quando o mar se atirava à terra ou as montanhas subvertidamente vermelhas se derramavam sobre as gentes, eles sentavam-se, Missionários da Ordem, nas tardes incertas lendo poemas importados, declamando literaturas mais do que duvidosas às multidões que, rebentando de fome e  de rezas não ouvidas, se deixavam entontecer até ao sono.»

De resto, há nesse livro uma irreprimível tendência para a transfiguração do real observado, ora submetendo pessoas e lugares ao filtro de um olhar subjectivo e à visão previamente definida de um mundo originário, povoado de vozes primitivas, não contaminadas pela história, ora transformando homens e mulheres em figuras trágicas e impotentes, vítimas do tempo e de forças obscuras. Em certa medida e nalguns aspectos, o autor inglês antecipa em algumas décadas a perspectiva de outros escritores não açorianos, cuja passagem pelas ilhas se traduziria em grandes produtos turístico-estilísticos para consumo embasbacado, como aconteceu com aquela autora que deambulou pelas ilhas armada da sua incomensurável retórica da tontice para falar da paisagem açoriana, «onde a pedra branca e negra joga com o verde a perder de vista.»

Não voltou John Walkman a dispor de outro feliz Verão como esse nos Açores: um automóvel  atalhou-lhe o passo na primavera imediata, numa tarde em que levava à tipografia as provas revistas do seu livro.

Nunca pôde, por isso, saber em que medida o nosso olhar se reconheceria ou não no olhar que sobre nós lançou.

 

Urbano Bettencourt