Cidade Proibida, de Eduardo Pitta

Tinha de fixar esse instante antes que desaparecesse.

O romance de Eduardo Pitta abre com um instante: o momento em que o sol, atravessando a parede envidraçada virada a poente, abandona a devassa de toda a sala. É um ambiente de extrema elegância, que nos revela estarmos perante uma família da classe alta. O tipo de requinte que apenas o dinheiro velho permite. Em cena, duas personagens: Nora e o seu gato Teddy. O momento precede a entrada dos nomes de família: Os Moncada, os Ravara, os Lemos Fortunato…

 

Os nomes de família e a forma de vestir, sempre tão elegantes, tanto quanto as roupas de marca o permitem sem ostentação. Gente que habita um momento mágico e efémero, como aquele raio de sol que se despede, deixando de incidir sobre o cadeirão chippendale. A vida deixaria de fazer sentido se não fosse desfrutada naquele requinte, a única forma de se atingir um certo glamour.

Nora sentiu o aperto no lado esquerdo da nuca. É a primeira frase do romance. Remete-nos para essa crua realidade, a que todos os preconceitos, toda a classe, ricos e pobres estão sujeitos: o breve instante das nossas vidas.

Martim, o filho de Nora, saíra de casa. Para trás deixara o seu gato Teddy. Este ao intuir o caracter definitivo da mudança urinou sem complacência na porta do quarto do dono. Passava a ser o macho da casa.

Um jogo de poder. Não entendeu assim a criada que quis punir o gato. Foi imediatamente dispensada. Entrou num pranto, tentando demover a senhora. Chorava compulsivamente, a cara opada, feita um borrão vermelho. Nora achou repugnante de ver, mas foi inflexível. Este episódio ilustra a insensibilidade das classes dominantes, não por maldade, mas por um conceito estético que lhes é muito próprio. Apenas isso. É esse seu “toque de classe” que nos exclui do seu mundo. A escrita de Eduardo Pitta não podia ser mais familiar, a sua atenção recai sobre esses pormenores. A cor dissonante de uma camisa não passa desapercebida e serve para caraterizar um personagem alheio ao ambiente em que se encontra. As comidas com nomes estrangeiros. Os vinhos. Os estrangeirismos, Matilde tinha uma approach muito peculiar. A langue de bois, breathless, débacle, frisson, etc..

Rupert, o inglês, filho de uma telefonista do M&S, que vive com Martim, sentirá na pele a indiferença deste mundo. Um mundo alheio às minúcias da vida, às notícias dos telejornais e imune às preocupações da maioria das pessoas. Onde um jantar é sempre uma boa oportunidade para estrear uma peça de roupa de marca. Excluído pela sua condição social, tolerado na sua opção sexual sobre a qual não se fala nos salões da boa sociedade, Rupert nunca se sentirá aceite no mundo de Martim.

Eduardo Pitta deixa-nos aqui um retrato frio dessa sociedade aristocrática que se perdeu na ressonância dos apelidos de família. Uma sociedade que preserva os preconceitos, mas sem dinheiro que lhe chegue. Caraterizada pelos olhos de Rupert, as idiossincrasias dos portugueses vão desfilando. Do vício do café, com as várias interrupções do trabalho para se tomar uma bica, a hipocondria generalizada, nonsense ideológico, sistema de classes evasivo, comprometimento cívico nulo, invisibilidade da comunidade gay… O meio gayportuguês, quase sempre não assumido, não escapa a este olhar. O inner circle de Martim é assim caraterizado: (…) faziam por preservar a natureza clandestina da sua condição. Verdade que nenhum se confunda com a bicha portuguesa típica, de ordinário afectada pela síndrome da princesa. Rupert sente-se como o inglês que vive com o doutor Moncada.

Nora descobre a homossexualidade de Martim quando o surpreende com o filho do motorista. O que então viu não lhe deixou margem para dúvidas. Completamente nus, a dormirem profundamente, o radiador aceso em cima do tapete, muito próximo da cama, lençóis e cobertores atirados para trás, a perna esquerda do Tó atravessada nas costas do filho. Havia que encobrir a situação, evitar os mexericos, as perguntas embaraçosas, agravadas pela desqualificação social do amante. Mais tarde, uma possível separação entre Martim e Rupert será, também, motivo de desconforto para Nora. Uma separação é sempre um momento penoso de negociação e cedências, de ressentimento e dor. Tal como os casais hétero, existem questões práticas a resolver pela fratura da separação, a partilha de uma economia doméstica desfeita, a divisão de bens e dívidas.

Este é um romance onde o sexo acontece, de forma ocasional ou imprevista ou ainda como resultado natural de uma relação assumida. Também existe o sexo armadilha, como aconteceu à professora Ivânia Ortins-Barriga, vítima de uma cilada preparada por um dos seus alunos. O prazer e o desconforto que fazem parte da vida, independentemente da orientação sexual de cada um. A linguagem, sem nunca perder a elegância, é direta e desabrida. Nunca tinham fodido de pé. O orgasmo foi praticamente simultâneo, sem que Rupert tivesse a necessidade de se tocar. Ou num outro tom: Eram como duas crianças irrequietas a espatifar o brinquedo preferido.

Mas esse não é o lugar da Cidade Proibida. O seu foco está na reserva, no evitar assomos de intrusão, no calar o que se sabe sobre o outro, sobre a intimidade do outro. Linha de fronteira inultrapassável. Aí se erguem os muros da Cidade Proibida.

E o que adiantava demonstrar que sabia?

 

Texto publicado no Acrítico, leituras dispersas, em Fevereiro de 2014.

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