Tudo é Relativo | Ana Cristina Leonardo

Como é a minha primeira participação no PNET Literatura, sai um preâmbulo.

Conta-se que houve em tempos um cavalheiro – um entre muitos – que se afincava em obter os favores de Madame Recamier. A francesa, mulher influente que ao gosto pelas artes juntava o gosto pelos artistas, terá tentado repelir os seus avanços explicando-lhe que Monsieur, o meu coração, dei-o a outro. O cavalheiro, cujo nome não pude apurar, respondeu-lhe com um bon mot à altura: “Madame, nunca pretendi chegar tão longe”.

É mais ou menos como eu, convidada deste salão literário virtual. Sem pretensões, escreverei sobre livros que ando a ler, li ou gostaria de ler. E para começar e a propósito, que preâmbulos longos só no final do jogo, o título de onde tirei a história citada acima: Tudo É Relativo e Outras Lendas da Ciência e da Tecnologia, assinado por Tony Rothman e publicado este Verão pela Gradiva.

O livro está aqui na minha mesa e abro-o ao acaso. Cito, na tradução de José Malaquias.

«Os autores deveriam estar gratos à memória geracional. Cada vinte anos surge uma nova geração sem qualquer conhecimento do passado e com a certeza de que o passado não pode ser importante. Numa vã tentativa de perpetuar um sentido histórico, os editores contratam autores para voltar a contar histórias que já foram contadas, submergidas e contadas de novo no ciclo cósmico interminável do esquecimento e da lembrança. As histórias são sempre as mesmas, talvez com uma linguagem actualizada e gráficos cada vez mais tortuosos, porém, sem essa constante roda de extinção e renascimento, os autores teriam demasiado tempo livre e sem nada à laia de compensação. O conhecimento, como Platão compreendeu, é apenas reminiscência.

Assim, tudo o que vou dizer neste ensaio ou no próximo já foi dito. Porém, aquilo que me interessa saber é se as histórias do Panóptico de Conceitos Passados e Presentes evoluem. Muitos desmistificadores, desmontadores e mesmo documentários de televisão salientaram que Edison era não apenas um grande inventor mas também, por vezes, um competidor muito pouco escrupuloso – se não mesmo impiedoso –, tendo a sua lâmpada estado longe de ser a primeira. O meio ambiente já aplicou suficiente pressão sobre os relatos-padrão para que alguma diversificação e selecção natural possam ter tido lugar. Do ponto de vista de biografias sérias, penso que isso já ocorreu. Se olharmos para 1940 e para o filme biográfico de Hollywood Edison the Man, podemos iludir-nos com o desempenho absolutamente encantador de Spencer Tracy encarnando este homem quase desprovido de qualidades humanas. O retrato inspirador – realmente inspirador – de um homem generoso e com encantos mágicos que adora crianças e se dedica de forma altruísta ao progresso da humanidade é tão sedutor como iconográfico. A partir do filme nunca se adivinharia que o primeiro casamento de Edison foi um desastre e que a mulher morreu em estado de colapso nervoso, que ele tinha conhecimento de um dos seus antecessores, que fez tudo menos rejeitar apoio financeiro na sua procura da lâmpada incandescente ou que alguém em Menlo Park, tirando ele próprio, alguma vez tivesse tido uma ideia (…)», págs. 241/242.

Tony Rothman não é um escritor no sentido estrito do termo. É um físico que se dedica à divulgação científica. Mas quantos escritores “à séria” andam por aí que deveriam dar um dedo, talvez dois, talvez três… para escreverem com esta clareza, este wit, este à-vontade (aisance, diria eu agora se fosse Madame Recamier…) exemplificados nestes curtos e acidentais parágrafos.

Para manter a fluência e a preferência, da próxima vez falarei, se ainda me quiserem e for (ainda assim) something completely different, acerca de Depois da Chuva, contos de William Trevor traduzidos para a Relógio D’Água por Paulo Faria.

E muito obrigada pelo convite!