O self-publishing esquizofrênico ou Cinderela sem sapatinho

Prezado autor,

Agradecemos seu interesse em tornar-se um autor de nossa casa. Seu original foi avaliado por nosso conselho editorial, composto por escritores, leitores e críticos. Há nele o vigor de um jovem escritor aliado a criteriosa qualidade da escrita, sem deixar de lado o apelo comercial. A história é cheia de nuances que prendem a atenção até a última palavra, o que realça mais a potencialidade da obra. No entanto, optamos por programar nossas edições com bastante antecedência, o que nos deixa com uma quantidade suficiente de títulos a publicar, já aceitos, pelos próximos três semestres — o que torna inviável o aceite do seu original. Esperamos que obtenha sucesso em sua tentativa de publicação.

Atenciosamente,

Editorial

Fast-fooditorial

Ser publicado hoje não é uma tarefa muito difícil. Muitas empresas escancaram a receita da arte para quem quiser, sem segredos. Publique seu livro! Seja um autor! Escolha pelo número! Editoras que misturam self-service e fast-food ao processo editorial crescem a cada dia. Oferecem todos os serviços para transformar aquele arquivo em livro e, de quebra, ainda organizam a noite de autógrafos. A contrapartida é – na maioria esmagadora dos casos – a garantia da venda, assinada em contrato pelo autor, de boa parte do que foi impresso. O suficiente para cobrir os custos e gerar lucro ao “patrocinador”. E nada que o autor não possa se mobilizar para conseguir. Já vimos por aí muitos casos parecidos.

Fada madrinha

O que é publicar um livro? É ser lido. Assim como todo artista, o escritor quer palmas no fim do espetáculo. Aquele ainda não publicado é como a gata borralheira, esfregando o chão enquanto a madrasta e suas filhas, os publicados, curtem o baile. Para colocá-los no mesmo nível é que surgiu a fada madrinha que Cinderela tanto aguardava: o self-publishing (feito pelo próprio autor ou por editoras de serviço). Como se fosse mágica, aquele vestido todo rasgado e sujo torna-se um belo exemplar de nobreza — preparado para a festa. O autor, até então desiludido, se enche de esperanças, veste seu livro, e vai para o lançamento. E tudo ocorre bem, com o príncipe encantado por sua obra, até a meia-noite, quando a livraria fecha e o livro vira abóbora. Será que no dia seguinte vão achar a Cinderela?

Realidade dos esquizofrénicos

Aquele que se preocupa em fazer o livro acontecer e busca o lobby usual e o marketing conveniente , mesmo tendo em conta infinitos fatores, como tiragem pequena e distribuição inexistente, tem mais chances de ser encontrado. O autor precisa deixar seu rastro. Já os que se auto-publicam para vender cinquenta livrinhos aos seus amigos, familiares, e curtir uma noite de baile, não fugirá do óbvio: morrerá sozinho, no alto da torre, preso, amaldiçoado pelo feitiço do esquecimento. É a fenda que divide o self-publishing em dois lados: os que deixam o sapatinho de cristal perdido no baile e os que vivem a realidade dos esquizofrênicos.

Após o baile

Todo esse novo mercado é incentivado pela demanda, óbvio. Afinal, qual escritor não deseja debutar no mercado editorial sem as dificuldades tão conhecidas por todos? Quem não deseja estar ao lado dos bons? O escritor sempre negado pelas editoras quer fazer parte da festa. O que acontece hoje é bem claro. Achou-se uma maneira de escoar a criação desenfreada dos tempos modernos. Coloque uma máquina de escrever em quase todas as casas para termos um resultado: irão usá-la para criar. Mais esperto será o empreendedor que comprar uma tipografia e oferecer seus serviços. São as idéias se repetindo entre os séculos.

Mas um livro, além de tudo, é arte. A edição dele em caráter industrial é um erro. Não acredite que diagramar em formato de livro aquele arquivo que você digitou é o mesmo que editá-lo. Afirmar essa construção do livro como arte é defender o papel do editor perante o camelódromo do conteúdo e, ao mesmo tempo, alertar ao escritor que, salvo poucos casos, se auto-publicar no conceito “Cinderela sem sapatinho” é doentio. A realidade é cruel, mas precisa ser enfrentada. Vá atrás do seu príncipe, mas não esqueça de deixar pistas para um encontro após o baile.

Raphael Vidal