52º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Ela havia saído. Senti-me aliviada. O filho retornou antes. Estava preparando um caldo verde quando chegou. Ouvi a sineta, entrou primeiro no escritório, sempre age assim, como o pai, temos um gato, o animal aguarda-o em uma das prateleiras da biblioteca, quando chega, desce, rodeia suas pernas e corre na direção da cozinha, só aceita ser alimentado por ele, Samael entrou em seguida, trazia a vasilha onde colocou a ração que ofereceu ao bichano. Eu sentada na cadeira, aguardando para jantarmos juntos. Carol? Saiu antes do almoço, respondi. Em que trabalha? Ele me observa um tempo, como a querer dizer algo, mas desiste, afasta-se, abre a torneira da pia e serve água ao gato. Volta-se olhando algum ponto muito distante, depois me encara fixamente enquanto se ajeita na cadeira. Pega a colher e experimenta o caldo. É difícil dizer-lhe em que trabalha… Não me olha, brinca com a colher no caldo. Como assim? Ela é uma profissional, ele me diz, levantando os olhos lentamente. Profissional em quê? Hesitou na resposta… Mãe, ela é uma prostituta. Não sei dizer qual foi minha reação. Acho que apelei ao pai morto, talvez ele tenha me dito que estávamos livres dele há anos, que o deixássemos no túmulo, onde estava muito bem enterrado. Saí da cozinha e fui ao quarto de onde saí somente no dia seguinte. Não nos falamos durante semanas. A casa é grande, era possível evitá-los. Deixava o jantar pronto e não saía mais do quarto. Mas Samael demonstrava estar muito bem, já não falava sozinho pelos cantos, diminuíra o tempo escrevendo, isto fez com que me aproximasse de Carol, não percebi nela qualquer mal-estar ou irritação para comigo, ao contrário, hoje nos entendemos como irmãs, mesmo não entendendo a relação dos dois, Carol é uma mulher expansiva, de trato fácil, quis aprender a preparar pratos para Samael, também estranha sua mania de colocar ovos no caldo verde quente, já lhe disse que não adianta implicar, que na infância tinha de apagar incêndio com o pai por causa do bendito ovo, e os dois vão bem, o que mudou minha vida também, chego até a pensar que somos uma família…

Hoje paro por aqui, não sei quando volto, está na hora de preparar um jantar especial para os dois, estão completando um ano juntos, quiseram que eu participasse do momento, então, vamos à cozinha… Quase me esquecia, o dia é especial por mais um motivo, uma editora aceitou um original dele, ainda não sabe, ligaram para casa, pediram para agendar uma entrevista.

Não me lembro desse dote de Clara… Minha mãe. Literatura exige a experiência do fora, do não-lugar sem intimidades, do distanciamento. Ela gosta de colocar diálogos no relato, o que acrescenta em veracidade, como dizer que aquilo não saiu de uma boca? Não me recordo de nada, com ou sem diálogos. Um livro meu aceito… Como não me lembrar disso? E Carol… André também a conheceu. Dentro de mim nem rastro, talvez tenha sido a causa da doença, não da psicose, mas da SIDA, a doença não dá para esquecer, no hospital me tratam com reservas, deveriam usar luvas para retirar sangue de todos os pacientes, mas não havia em quantidade suficiente, então os enfermeiros colocam luvas apenas para atender os pacientes de risco, eu sou um deles, carrego uma estrela na testa como os judeus nas portas das casas durante o nazismo. Ela já sabia de meus fantasmas, do outro de mim… Que poderia fazer um psiquiatra? Se não conseguem cuidar nem dos seus! Os psiquiatras são pessoas normais, como todas as outras… Ouvi no hospício, de um deles. Não respondi que o problema está exatamente nisso, o de ser uma pessoa singular, normal como as outras, qualquer relação entre nós seria assimétrica, o profissional dotado de poder, do status da normalidade… E quem retirará a coroa de um rei? Nunca na história. Sem o outro, são rasos, cacoetes, nada sabem do vazio e da solidão absolutos, nada além do apreendido em leituras, no vício, nos excessos e nas armadilhas das palavras.

 

(continua)