Ella & Franka

Um aeroporto: 

Ella, junto a uma multidão de gente exasperada, perante uma viagem que aparenta não querer ser boa ideia. Ansiedade alcatifada pelos corredores onde a sinalética para a casa de banho, Damen e Herren, é o único vestígio de uma humanidade que outrora tivemos antes de aprendermos a voar. Ella duvida, se calhar o melhor era deixar-se colada ao chão, segura:

»Cagar e mijar e nunca ambicionar ser mais que um animal rastejante«  

As paredes de vidro junto às quais aguarda contemplam a pista de aterragem donde avião nenhum descola há mais de três dias. Está sozinha e traz consigo apenas uma bagagem de mão. Não se permite ter medo, mas nota que o seu corpo não sossega dentro dos limites da sua pele. 

Uma voz mecânica e altifalada tenta sobrepor-se ao descontentamento das pessoas, visivelmente exaustas e indignadas. Anuncia mais dois voos que, todos pelo mesmo motivo, vêem-se forçados a ficar em terra. Muitas pessoas vão e voltam para suas casas, para casas de amigos, ou para hotéis, mas Ella deixa-se ficar no aeroporto. Há já quem monte tendas, estenda roupa, e se prepare para fazer do aeroporto morada. Há quem planeie um dia chegar ali a ser feliz. 

Não tarda alguém irá encontrar uma forma de cozinhar algo, vai cheirar a comida, os miúdos farão dos cinzeiros de pé balizas de futebol, e lentamente surgirá neste aeroporto uma pequena maqueta social. As pessoas começarão a distinguir-se pelo que nelas é diferente e não pelo que as une, e surgirá dentro de cada grupo o primeiro casal. O enamoramento deles terá um efeito contagiante, e por escassos momentos reinará a harmonia. As pessoas especularão, incrédulas:

– Como não nos lembrámos antes de vir viver para o aeroporto? 

Até alguém começar a cobiçar um terceiro: 

Alguém do grupo do átrio B do pavilhão das partidas cobiçará porventura alguém da zona de chegadas. Os diferentes grupos começarão também a cobiçar espaço, mais território, invejosos das espaçosas casas de banho a que têm acesso os da zona do pessoal de voo. Surgirão os primeiros conflitos. A guerra virá logo atrás da cobiça, mas por ora tudo isto se reduz ao barulho que faz um homem no arrastar de vários bancos, motivado que está em construir uma cama mais confortável para si e para a companheira. Alguém que por isso terá de ficar a dormir no chão – protesta. 

Resolve então vaguear por outros terminais. Dirige-se para o pavilhão das chegadas, onde ninguém chega há três dias, pelo mesmo motivo que ninguém parte. Imagina-o por esse motivo mais vazio, mas quando lá chega constata que não. Pelo contrário. Junto ao corrimão das chegadas depara-se com um grupo obstinado de pessoas que ali aguardam, ainda, ou já, segurando ao peito folhas com tipografias variadas, apelidos de distantes proveniências, e alguém até que insiste numa pequena bandeirola, escrito nela um hispânico e colorido:Bienvenida ! Duvidando de si mesma, procura um painel electrónico para confirmar aquilo que já sabe – não estão a chegar voos. Observa a resiliência destas pessoas e não percebe como podem conseguir enganar-se assim, e manter o desengano ao longo dos dias. 

Mobilizada por tudo aquilo, atravessa por uma porta sem fechadura e trancada apenas pela convenção social de um símbolo vermelho e as palavras: Kein Zutritt. Infiltra-se pelos corredores da recolha de bagagens, rasteja por passadeiras rolantes paradas, olha directamente para uma câmara de vigilância que deve estar neste momento a denunciar a sua entrada furtiva. Mas ninguém virá a tempo de a impedir de fazer nada arrojado, pois tudo o que ela quer fazer é atravessar as portas de abertura automática: 

Como alguém que chega. 

Ainda incorre é certo num furto ligeiro, ao agarrar de uma das passadeiras uma bagagem de porão esquecida, ou extraviada, uma mala que ali está e que ela sabe que ninguém virá tão cedo reclamar. Respira fundo e espera um sinal vindo do outro lado da porta de abertura automática que lhe sirva de deixa de entrada. Os focos todos virados a ela, um palco só seu. 

Abrem-se a par as portas automáticas. Uma dezena de rostos iluminam-se ao vê-la, mal ocultando o seu espanto. As pessoas reordenam-se e agitam mais alto as suas folhas contendo nomes tipografados à mão ou impressos a computador. Alguns logótipos. Certas folhas dentro de capas de plástico outras coladas a um suporte rígido. Todos querem ser o eleito. 

Ella desfruta da sensação de ser quem todos eles esperavam. Já tinha seleccionado de antemão, e por intuição, um senhor baixinho e careca na extrema ponta esquerda, com ar cabisbaixo e cansado, segurando desesperançado um papel nele escrito: MMELLE.  FRANKA ALLONTANT. Ella Bouheart dirige-se a ele em passo determinado, e sorri. 

O rosto do homenzinho descobre-se de esperança – percebe que é ele o escolhido. Fala-lhe em francês, ela não entende, mas ouve o seu nome, o seu novo nome, e sabe que tem de dizer: Oué Oué;  e por veracidade adiciona um: Bonjour; mas não se arrisca a mais. Sorri, cala-se, e segue-o. 

Ele já lhe tomou ambas as bagagens e já a conduz ao exterior do enorme edifício. Atravessam juntos o enorme parque de estacionamento, onde se podem contar o número de  viaturas pelos dedos, e o dedo mindinho é o dele, um carro à proporção do seu condutor. Ele coloca as malas na bagageira traseira, e Ella sorri, mas permanece calada. O homem transpira entusiasmo, fala por ele e por ela. Ella entretém-se todo o percurso com a sua chanson française, maravilhada pela cidade lá fora. A mesma onde vive faz mais de duas décadas. 

O homem coloca então uma pergunta que soa importante pelo tom e pela posição das pausas. Olha-a e espera resposta. Ella sorri-lhe, ele aguarda-a, e enche-se o carro de um silêncio incómodo. Por sorte, cruzam nesse preciso momento uma enorme rotunda, centreada por uma colunata com uma cúpula impressionante ao topo, decorada a filigrana dourada, e Ella encavalita-se para fora da janela, fascinada pelo monumento que na realidade já está cansada de ver. Mesmo assim, desta vez, olha-o como se nunca o tivesse visto antes. Sem fingimentos:

»Como é belo !…« 

Pensa. E quando recolhe de novo ao interior do carro a pergunta parece ter sido esquecida. O homem parece consolado pelo entusiasmo infantil dela perante os tesouros arquitectónicos da sua cidade natal. Sente-se orgulhoso de ter nascido e crescido ali, como se ela admirasse um membro do seu próprio corpo, é tanto o quanto ele se confunde com a sua cidade.


excerto de “O Lago Avesso” (romance) publicação prevista 2013, editorial Caminho 


Joana Bértholo