A víscera começa a chiar, passo diante de uma quitanda, fico um tempo olhando as verduras, os legumes e as frutas, começam a ter cor, verde e amarelo opacos, percebo o dono preocupado comigo, parado diante de seu comércio, vivem todos com medo, sigo na rua, há um restaurante italiano na esquina, entro, sou um dos primeiros a chegar para o almoço, vou até o banheiro, esvazio a bexiga, lavo as mãos, retorno ao salão, sento-me em uma mesa de fundo, o garçom me traz o cardápio, peço uma lasanha, faz tempo que não como uma massa, vontade de pedir uma cerveja, mas melhor nem pensar, não custa aguardar mais uns dias, substituo por água, fico sozinho folheando o livro, paro em uma página ao acaso: “Sem consolos a simular garantias à existência. Fechada a porta, rompia-se com os delírios da linearidade, com a noção de tempo e espaço, mergulhava-se no fortuito e casual, investia-se, por instinto, no sacro e no profano, no longo corredor da individuação, que terminava em um amplo salão abarrotado de livros”. Estranha sensação de ler alguma coisa que sabemos nossa e não nos lembrarmos de absolutamente nada, como não saído de nossas entranhas, para mim não existe texto pesado, mas é claro que tudo que um escritor escreve ele já superou, portanto, quanto mais intensa a vida de um, menos leitores ele terá, sem dúvida, só os que escrevem o singular conseguirão bater recordes de vendas, ninguém quer ler para pensar e mudar, leitura para a maioria é entretenimento, um modo de passar o tempo sem saber que é ele que nos atropelará, sutilmente, atmosfericamente… Sei que fui um leitor afoito, li todos aqueles livros que estão na prateleira, mas tudo ficou embaralhado na minha cabeça…
Como a lasanha tentando esquecer o prato nojento do manicômio. As pessoas começam a me incomodar. Alarido deprimente de quem necessita ocupar o silêncio a qualquer custo. Não desejo encontrar ninguém na casa ao retornar. Há um filme em cartaz que gostaria de assistir, “A janela”, de Carlos Sorin, é dele a ideia de uma história simples que debulhasse a cabeça do espectador. Filme onde pequenos e inconscientes detalhes fossem ampliados. O nome me atraiu, gosto de janelas e portas, janelas pelo transitável apenas na transgressão, vão de onde um observador a tudo assiste sem muito participar, que permite um olhar contemplativo. Já a porta… Abertura com duplo sentido, por ela entramos ou saímos, também nem entrar nem sair, uma porta implica pelo menos espaço duplo, fechar a porta significa bloquear passagens, definir territórios, cartografias, permitir ou proibir travessias, a primeira porta aberta nos jogou no mundo, a última nos colocará diante do desconhecido, nenhuma das duas é de nossa escolha, nem pública nem privada, querem divindades responsáveis, mas apenas delírios, todo órfão sonha um pai, uma descendência, somos filhos do vazio e nos restará o abismo, muitas portas deixamos de atravessar, outras nem nos permitiram abertas, há as escancaradas, em algumas fomos empurrados, a única porta que me pertence é a de única chave, que lembra uma lagartixa, que me leva ao corredor de piso de madeira corrida, ao escritório, ao quarto e à cozinha. O dentro que me pertence protege minha intimidade, é o não-lugar no mundo, é o local das tessituras expressivas que na vida perdidas… O sacro e o profano em único espaço, o mofo e a orgia, além da porta na fronteira do singular e da insânia, a porta do “Castelo” de Kafka, dos hospícios, dos prédios ditos da justiça, dos hospitais e dos cemitérios…
Vou festejar a noite em algum bordel, as putas fingem como os poetas, e o fazem tanto que nos fazem crer verdadeiro todo e qualquer fingimento. De onde isso? Nem Amélia, nem Dulce… Pagar não deixa porta aberta à cobrança. Escolho um na Augusta. Olho todas elas sem saber o que procuro. Atrai-me as coxas, gosto de vê-las de baixo para cima, como enxerga a criança, há uma delas com as coxas de Dern, dou um toque, ela se aproxima, discute o preço segundo uma tabela de ações, me diz que não há limites ou restrições, posso usar qualquer porta, entrar e sair como bem entender, basta pagar. Há quartos no fundo do bordel, tudo muito arrumado, espelhos na parede e no teto, sobre um móvel os preservativos de vários tipos expostos, objetos para atuar o gozo ao gosto da clientela, prefiro ao comum, nada ao sugo ou com temperos exóticos, divertido brincar, tomar a iniciativa, meus instrumentos são os dedos e a língua, penetração no final, na maioria das vezes elas se surpreendem, o fingimento torna-se algo verdadeiro, o corpo da mulher é cheio de pontos não explorados, vejo-me tocando pela necessidade de sentir a superfície e o volume, é o que me excita já que as cores são fracas, depois mergulho no gozo como um surfista no túnel de uma onda… É você quem deveria receber ela me diz, sorrindo, colocando a roupa. O sacro precisa de uma dose de profano, é o equilíbrio que define a intensidade do gozo, daí atração humana por anjos, virgens e a pele leitosa das religiosas.
(continua)