A biografada: uma evocação de Natal

Existe um mal, nem sempre óbvio, de que padecem muitas e muitas biografias: o não entenderem que as histórias pessoais são as histórias mais importantes do mundo, justamente por nelas se rever o silêncio, o inenarrável, um desmedido caudal de anonimatos, mil acasos imperceptíveis e, por vezes, alguns nichos de loucura. Muitas vezes, as biografias incidem mais nas narrativas previsíveis – e historicamente descodificáveis – do que naquelas em que importaria dar o desejado salto do ‘dito’ para o ‘não dito’.

Uma pessoa é um imenso espaço de brancura – por preencher – e não um esquema resolvido por um cheque-mate matreiro.

Dir-se-á que o mal de muitas biografias residirá no mito de Andrea Palladio. Por outras palavras: fazer corresponder a um conjunto de formas particularmente simétricas e centradas aquilo que é a lógica instável, errante e imprevista de um organismo vivo.

O que resta, quando alguém parte, é uma constelação táctil de memórias. E o bom biógrafo não pode deixar de entender essa constelação como uma espécie de presente onde abundam imagens por revelar. Imaginemos que a biografada – deixemos em suspenso a sua identidade – adorava escalar encostas íngremes e perder-se na limpidez do horizonte. Imaginemos que ela prezava as palavras que se atropelam em certos poemas de Tolentino Mendonça. Imaginemos que ela encarava a espiritualidade como se fosse um oceano onde todos os outros receberiam sua própria água.

O biógrafo deveria, em termos ideais, colocar-se na posição de quem, todos os dias, se lembra da biografada. Como se lhe ouvisse a voz, sempre que opta entre o trigo e o joio. Como se a ouvisse dizer “José Águas” com alegria contagiosa, ou a visse para sempre rejubilar numa praça onde confluem cinco canais diferentes.  A biografada terá sempre que se tornar numa imensa brancura por preencher. E em cada dia que passa, todas as esquadrias desenhadas por Palladio acabarão por se transformar na árvore arrancada às margens do rio em dia de enxurrada.

A biografada crescerá no seu autor como parte de uma memória privada: uma história que se eleva como um balão gigante a pairar sobre as engenharias e as objectividades da chamada história universal. Essa biografada existe no mais profundo alicerce onde a imagino e recordo. Mas o seu nome, caro leitor, é secreto. O Natal é também uma altura de evocação. A literatura brota de sinais minúsculos, acenos sem norte, silhuetas emprestadas pela contingência. Mas brota sobretudo da memória: essa fonte de sortilégios que é o retrato ao mesmo tempo fugaz e matérico do vivido. E do esquecimento.