Merda! O alarme da fábrica. 7h00. Já não sei dia e hora. Sinto alguém no quarto. Procuro nos cantos, sem sucesso. A colcha é feita de retalhos coloridos. Depois da alta é a primeira coisa que vejo em cores fortes. Há vaga lembrança de televisão em branco e preto. De um desenho do Pica-pau, ele diante da linha de trem, olha um lado demoradamente, depois, para o outro, mais algumas vezes, nada, os dois horizontes tranquilos, certo de não correr riscos, atravessa, mas um trem surge do nada e passa sobre seu corpo. Mas personagens de desenhos animados não morrem, logo estão de volta, em outra cena, e você ri, esquece que morreu. Ninguém está livre da morte, por mais cuidadoso que seja, acho que o desenho dizia isso, não temos controle do fim. Não sei o que fazer, não sairei, há comida para semanas, a casa está cuidada, talvez me levantar e ficar sentado debaixo da jabuticabeira aguardando as visitas, elas virão, é só meu corpo metabolizar a química, transformar os medicamentos em radicais inativos a serem eliminados pelos rins e fezes. Melhor me levantar. Pelas frestas da janela percebe-se o dia ensolarado. Posso ficar de cueca e camiseta, minhas visitas não ligam para os pequenos detalhes que tanto incomodam as pessoas. No banheiro, urino, evacuo e escovo os dentes. Ritual de limpeza. Vou até o escritório. Contemplo a velha Remington Rand, a folha amarelada que contém o último texto antes de me internarem. O pacote virgem, fechado, ao lado. O que teria deixado ali o outro de mim? Jogo o corpo na poltrona de couro de carneiro, a luz apagada, olho os livros nas prateleiras, incomodaria dizer que li todos eles, mas quase todos, se alguém me fizesse a pergunta sempre imbecil de querer saber qual o melhor, o primeiro, o mais importante autor que me influenciou, responderia Kafka, sem pestanejar, não pela culpa, que ela permaneça com os religiosos que se autoflagelam diante da obviedade das necessidades do corpo. Sei que o pai e a mãe mortos. Carol também. Dia desses, foi o André. De mim, a memória morta. Todas essas idéias apenas para ter coragem de ir até a máquina de escrever… Retiro a folha. Poucas palavras: “sem intimidade e sem interior, o oculto é o que se perdeu, a impossibilidade de dizer Eu, literatura nômade…” Me interromperam neste ponto. Será o reinício. Abro o pacote. Pego uma folha em branco. Ajeito-a na máquina. Troco a fita, fico com os dedos sujos de tinta. Ajeito a bunda na cadeira. Acerto as mãos como o pianista antes de iniciar a peça. Estou trêmulo, suando frio, o ruído da trava, alguém abriu a porta, tempo conhecido, de fechá-la novamente, pegar as cartas espalhadas pelo chão, deixar a chave no prego, dependurar o casaco, ruído da sineta, não ouço passos, o toque no soalho é muito leve, peso de uma pena caída na calçada, aí está você, aguardava-o, deixe a pasta sobre a mesa, sente-se na poltrona de couro de carneiro… De quem é esse livro? Nosso… Como? Esqueça, lá estão os olhos do bichano, está conosco novamente, você deve estar cansado, suportar a rotina ridícula da repartição, só para ter um salário que me permita ficar aqui diante da máquina de escrever. Mas acabou. Não sairemos mais. Veja os modos do bichano, acariciando com o rabo suas pernas, lá vai em direção da cozinha, está com fome, pode segui-lo, fico aqui um tempo mais, tenho uns acertos no texto, as cartas… Deixe sobre o móvel, não há nada de nosso interesse nelas, com certeza, não precisa me dizer, com você em casa começo a me lembrar das pessoas, vá, o gato está com fome, os azulejos brancos, as falhas provocadas pela falta de alguns, a ração deve estar no armário, aqui está, encho a vasilha, o gato bebericando água na torneira gotejante, coloco o alimento no chão, o gato pula e segue na direção da ração. Ouço o ruído de máquina de escrever, é o outro de mim, há uma mulher entristecida sentada na mesa da cozinha, observa-me de algum lugar, mas para mim é bem presente, não há tempos para mim, o gato pegamos na rua, faminto e com o rabo torto. Você não vai comer? O caldo verde que tanto gosto, ela me mostra um ovo, sorrindo, peço que coloque na sopa e me sento, sorvo lentamente o caldo, o gosto de infância nunca desaparece, é como o doce de leite, a pamonha, a maria-mole, o brigadeiro… Os caminhos estão descansando… Quintana nunca deixou que lhe roubassem a criança. De onde, a referência? As palavras podem se tornar mágicas, basta não enclausurá-las em vitrinas, o lugar delas é o silêncio, dali saem sempre renovadas…
Capítulo XI: Blocos vazios de infância
Os dias escorrem. Insônia. Dias sem dormir. Escrever para quem? Não haverá leitor para um texto que não tem vínculos cartográficos, biográficos e históricos. Nem serve de autoajuda… Talvez para desencadear de vez um suicídio. Não ria de mim… Sente-se aqui ao meu lado, escrevamos a quatro mãos. Isto, assim… Vamos filho, coma a sopa, tem o rosto cansado, não sei quanto tempo conseguirá manter essa vida dupla, sem dormir direito, escrevendo mundos em folhas em branco, que nem sabe se algum dia terá leitor, é Clara sentada na mesa, nunca a chamei de mãe, talvez quisesse ter dito, mas nunca, agora posso colocá-la diante de mim dizendo, sempre com a mão direita dentro do bolso do avental, como faz as vendedoras portuguesas nas feiras-livres, mexendo com dinheiro, mas naquele bolso não há nada, talvez os sonhos não realizados, então, ela presente, posso me justificar, não me importam ter leitores, ou talvez importasse sim, agora não mais, o momento é de resgate, das cores, dos vínculos importantes, de tocar os cabelos negros e ondulados que caem sobre seu ombro, sem medo do pai que nunca mais voltou a casa, nunca sentiu ser dele a família, vamos dizendo com os pensamentos, juntos, Não se preocupe, fique descansada, você foi muito importante, digo o que nunca consegui dizer, ela me sorri, levanta-se, permanece um tempo com os olhos enormes a nos observar, nós como a criança flagrada pela mãe no varal de roupas, rosto quente, deve estar avermelhado, passa a mão em nossa cabeça e segue na direção do escritório, vamos atrás, ajeita-se na poltrona de couro de carneiro, a superfície craquelê, tempo marcando fronteiras, como faz com as paredes, a pele, ela olha contemplativa para os dedos do filho em desassossego, como se conversassem através dos sons emitidos ao teclar, olhamos para ela, ele também sou eu, tento dizer, mas ela vê apenas um, apesar de haver esse outro de mim, e ela diz para Você não vai comer? Olhamos para ela sorrindo, continuamos a teclar Já estivemos na cozinha, ainda há pouco, o caldo verde com ovo, lembra-se? Ela olha na nossa direção, volta-se para velha Remington Rand, percebemos que está confusa, deixa escapar palavras pela boca, Surpresos! De que doença falaria? Voltamos a teclar, agora eu e o outro somos um, ela nos pegou de surpresa, de que doença falaria? Não perguntamos… A poltrona vazia, alguém chega à porta, apenas esboço, de outro tempo além deste, tenta nos dizer algo, mas não nos permitimos ouvir, precisamos de sossego para escrever, evitar o mundo ao redor, Olá, vai ficar aí até quando? Carol! É de minha mãe a voz aguda de surpresa pela chegada dessa mulher de nome Carol que o outro de mim beija na boca, eu dizendo que teria de terminar o capítulo, depois veria o que fazer, mas ela vindo até nós, a nos abraçar por trás, beija nosso pescoço, Clara sem jeito pedindo licença e indo para a cozinha, só nós no escritório, Carol nos levando dali, entramos no quarto, avisa-nos que a mãe doente, muito doente, tem pouco tempo de vida, nos abraçamos forte, choro, e as lágrimas deixam-nos excitados, Carol percebe a ereção, começa a nos acariciar, ficamos na cama bolinando, até gozarmos, nunca entendi a excitação toda vez que diante da morte, agora o outro de mim ajeitando-se em minhas linhas, não entendo bem a superposição, mas sinto alguma mudança dentro, sentado diante da velha Remington Rand e o escritório vazio, o ruído da carroça e do chicote, o som ruidoso do movimento da roda, sempre no mesmo ponto, daria para pontuar o tempo através do estridente, saímos correndo, não sabemos se alguém perguntou aonde iríamos, mas a sineta, a porta aberta, a rua… Colocaremos tudo em seu devido lugar, viveremos juntos tudo isso, nunca mais em cantos diferentes, muitas vezes, agora a impetuosidade e o medo habitam um mesmo corpo, a rua de terra, é seu Manoel subindo com a carroça, o burro velho e surrado, traz verduras, frutas e legumes, Clara sai na porta, sem o avental, deixou-o dependurado no prego na cozinha, tem as mãos livres, seu Manoel diz Eia! Eia!
(continua)