56º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

O que está precisando, vamos ver… A fita para a Remington Rand que foi de seu pai? Engulo o último gole do café confirmando com a cabeça. Então vamos lá… Segue na direção da última prateleira, mais ao fundo da loja. Aqui temos, quantas vai precisar? Pode colocar uma caixa… Pelo jeito tem uma grande história na cabeça, li seu último livro, devo dizer que é muito pesado e triste, mas hoje entendo melhor o que o senhor escreve, a idade vai desnudando a falcatrua em que nos colocaram, mas escrever aquelas coisas ainda tão jovem, deve ser difícil carregar esse seu mundo nas costas… Vejo um brilho nos olhos daquele libanês que nunca pediu a cidadania brasileira, compartilho com um sorriso, não me lembro de que livro fala, mas minha mãe também anota a existência de um livro em seu diário… Tudo que escreve está nas ruas, diante de nosso nariz, mas não nos permitimos enxergar, tem lá uma passagem que o senhor fala da diferença entre olhar e enxergar, li várias vezes, é uma grande verdade, passamos a vida olhando, nunca enxergamos, o senhor me fez perceber, mas é preciso o fim próximo, e o senhor parece ser companheiro da morte, conheci seu avô, era um pouco assim, seu pai já não, mais objetivo, devaneio não era com ele, não gostava do que o senhor escrevia, uma vez tentei argumentar, tinha acabado de ler o livro, não me deixou, nem podia Samael, seu pai não sonhava, carregava a culpa do mundo nas costas, metido até o pescoço com a maçonaria, precisava de algo para lhe dar motivo de viver e estar vivo, de criar um personagem respeitado e respeitável, quantas fitas dessas não vendemos a seu avô… Agora não resta mais nada seu Samael, aguardo a morte, eu e minha velha, sofrida de artrose e artrite, a velhice é uma droga, os filhos se foram, dois muito cedo, ficamos sozinhos… E a cidade mudou muito, já fui assaltado duas vezes, ficaram bravos, não havia o que levar, apanhei, mas só fecho a loja quando não receber mais a visita dos fregueses antigos, como o senhor seu Samael, e não esqueça de me avisar quando sair algum outro livro, não levamos nada material dessa vida, quem sabe será permitido levar as histórias que lemos…

O homem diante de mim não para de falar, eu sou o instrumento de sua solidão, pego o dinheiro da carteira, ele bloqueia meu movimento com a mão. Não, não vai pagar, é presente, já não trabalho para viver, e ninguém mais além do senhor vai levar essas fitas, vamos, aceite, é presente. Entendi o gesto. Devolvo a carteira ao bolso e dou um abraço forte naquele homem frágil em final de vida, talvez não o veja nunca mais. Pego o pacote e saio sem olhar para traz. Metrô sentido República. Entro no primeiro sebo que encontro, é o lugar próprio para encontrar um livro que ninguém tem preparo e disposição para ler, pergunto sobre um autor de nome Samael, o sujeito me olha esquisito, vai até fundo da loja e retorna carregando um livro. Está registrado meu nome na capa, Samael F., não me pergunte o motivo do nome do autor desse jeito, talvez influência de Kafka, me diz o vendedor, “O mênstruo mágico das orquídeas grávidas”, título insano, cheio de estranhezas, não consigo perceber como algo que me pertence, mas sei que os remédios ainda circulam no sangue, compro o livro.