51º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Quinze dias… Um martírio. O apito. Levantar, escovar os dentes, tomar meu lanche matutino, passar o dia andando sem objetivo, fazendo compras, jogando conversa fora, suportando comentários e preconceitos do André, a assistente social ficou feliz com o que viu, deve ter conversando com o André antes de tocar a campainha, um pouco mais jovem que eu, acho que está interessada em mim, mas faço que não percebo, preciso de mulher, mas prefiro pagar caso não encontre alguma aventurosa, não quero compromissos nesta altura, já me falou de sua vida, é divorciada, tem dois filhos adolescendo, eu não tive filhos para evitar problemas, não vou adotar de terceiros, além disso tem a doença, nem sei de quem, agenda outra visita para daqui a um mês, é muito tempo, não sei se suporto tomando medicamentos, mas será a última, se estiver bem na próxima visita precisarei apenas ir às consultas psiquiátricas. Fez perguntas sobre as mudanças no quintal, quis saber o motivo de um pé de jabuticaba, inventei uma história, em branco e preto é mais fácil, com palavras artesanato, sou bom nisso, ninguém questiona as respostas prontas, falei de saudade da infância quando havia ali um pé do fruto, que era meu lugar predileto para brincar, não falei que jabuticabas provocam em mim ereção, poderia pensar que a doença me sondava, disse-lhe apenas que me faziam lembrar um beijo, o que ruborizou seu rosto, ela confirmaria tudo com André, ele ficou quase meia hora tecendo fatos vividos na infância tão logo viu o pé plantado no quintal, que ocorreram debaixo do pé de jabuticaba, eu concordando com tudo, vendo prazer em seu rosto, como se o passado fosse o único tempo vivido por ele. Amélia já não me faz tantas perguntas. Hoje me sondou para saber do diário. Eu não o abri mais, aproximei-me várias vezes dele, mas não tive coragem. Está marcada a página em que parei. Quem sabe esta noite…

 

Capítulo IX: Há sempre um fora de cena

Chove… Gotas graúdas. Pelo repicar, granizo. Eu sentado no sofá de couro de carneiro. O diário sobre o móvel, junto às correspondências, não abro as cartas que recebo, não quero ter o trabalho de respondê-las, nem sei quem poderia se incomodar com alguém doente como eu, já não mais família, lembrança alguma de parentes… Vou ler o diário, não adianta negar que nele há algo que me pertence. Caderno comum, apenas a capa dura, com duas linhas ocupadas, na primeira lê-se a palavra Diário e na segunda o nome Clara. Fixo-me um pouco no nome. Nunca pensei escrever um diário… Na situação atual, quando o outro de mim ausente, eu a viver um presente esvaziado de ontem, onde as pessoas estranhas, embriagadas no segredo de não ter nenhum, quando não há nada que não seja a repetição, seria de grande ajuda um diário pessoal. Meu arquivo morto são os livros, fragmentos que escapam de algum alçapão na alma, o que faz de tudo obra ficcional, nunca me encontrei nas histórias de infância, idolatria necessária à repetição do comportamento, da masmorra, cárcere com alicerce fabricado nos porões do Estado, com alguma pitada de ciência, religião e filosofia. Quem sabe, no olhar dela, haverá contaminações relacionadas ao tempo e espaço burgueses, arquitetura secular, em ambientes aquecidos, de comida e sexo fartos, mantendo-se afastadas as aparições, os devaneios e a intuição. As bruxas eram a resistência… Os remédios falham em alguns momentos… Vamos ao delírio materno:

Samael acaba de sair. Continua muito parecido ao pai fisicamente, mas as semelhanças ficam nisso, tem um comportamento cada vez mais arredio, é de pouco falar, vive enfurnado no escritório escrevendo suas histórias sem início ou fim, não fosse o serviço público não teria como viver, as editoras devolvem tudo que escreve, já não lê as cartas que enviam junto aos pacotes, percebo-o irritado, mas não demora e retorna à velha Remington Rand que fora do pai, não tem namorada, o que não me preocupa, sei da preferência pelas profissionais, já me confessou, mas agora tenho medo da doença dos tempos, ele riu quando lhe disse, não acredita em família, o que não me frustra de todo, não lhe proporcionamos uma infância, não ao modo comum, mas Samael também nunca foi um filho normal, o pai carcamano, preconceituoso e rígido, sempre a criticá-lo, o que me preocupa é essas conversas no vazio que flagro com mais frequência, é um bom filho, mas me preocupa seu comportamento, talvez uma ajuda psiquiátrica, riu de minha sugestão…

Janeiro, agora uma nova moradora, essa mulher aqui em casa. Sabia algo errado. A demora maior para chegar a casa, as saídas aos sábados e domingos. Menos tempo para escrever, alongou a insônia. Dorme duas horas por dia. Às vezes, acordo com o som do teclado, vai direto à repartição. Havia uma mulher, sem dúvida. Por que não pensei? Não gostava da ideia… Não é fácil. Você em casa e o filho traz uma mulher dizendo que ela vai habitar o mesmo teto. Não tive reação… No dia seguinte, esperei tomarem café, mas só ele saiu, ao me levantar encontrei-a no escritório lendo o que Samael escrevera durante a madrugada. Evitei contato manhã toda. Antes do almoço ouvi o som da sineta. Além de Samael, ninguém tinha a chave para entrar.

 

(continua)