41º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

E na casa nunca me senti só como agora ao ver essas crianças, empilhamentos de ossos, brincarem em águas empoçadas e fétidas, corpos com suas úlceras pútridas nas calçadas aguardando um trocado ou o camburão do IML, jovens aspirando droga, só eu atento, tudo em branco e preto, o que atenua um pouco a dor, o líquido que escorre das feridas não é vermelho, mas preto, e as pessoas passam desinteressadas no que enxergo e continuam seus pesadelos, só eu fora, diante de mim um exército de cegos funcionais. Na casa, sem os remédios, reencontrarei meus parceiros, o outro de mim, a velha Remington Rand, quem escreve é sempre o outro, escrever é agora o interminável, o incessante, Blanchot, não esqueço nem na insanidade, é o outro de mim com suas mensagens sutis, as intermináveis cartas enviadas aos amigos, não há leitor nessa massa amorfa e repetitiva, não, na casa não me sinto só, desejo a solidão da casa, a ameaça do fascínio, a imprudência dos delírios, onde bastam alguns passos para sair do quarto, outros tantos para sair da vida… Dentro de casa permito-me fora, fora de casa não me permitem nada, nem esperança. O parque… Pássaros e gatos… Não lugar sem intimidade, sem interior oculto, impossibilidade de dizer Eu, sem literatura… O que vou ter depois da morte? Além do nome na lápide, nada! Samael… Anunciar a morte no nome e na linguagem.

Melhor seguir, antes que percebam que carrego algum valor. Os escritórios do departamento de água e luz ficam próximos. Viveria sem luz, mas não sem água. Insuportável a ideia de morrer sedento; ou afogado. O excesso e a falta de água sempre me assustaram, nunca desejei ser uma escultura ressequida, muito menos uma forma amorfa. E o que fui ou sou? Não muito para uma vida. Sempre apoiado num túmulo… Estes escritórios são tumulares. A jovem me atende segundo um protocolo de perguntas, preencho um vasto questionário, pago a conta e a taxa para religarem a luz, agenda a visita do técnico para o outro dia, não consigo convencê-la a enviar alguém ainda hoje, não foi muito com a minha cara, não pintou a química do cheiro, saio e atravesso a rua na faixa de pedestres, motivo de descrição barroca para um autor como Saramago, prefiro o tiro certeiro de Lobo Antunes, de Al Berto, desta vez o protocolo usado pelo funcionário é mais simples, também o questionário. Arrisco perguntar se ligariam a água ainda hoje. O senhor acredita em milagres? Entendi… Amanhã, talvez. Saio e acendo um cigarro. Sempre trago como se fosse uma última vez. Quando nem mais a morte, o prazer não fará sentido. Saídas técnicas sempre me cansaram. Estéreis. Pessoas com o mesmo semblante, a mesma respiração, as mesmas opiniões, caminhar no mesmo, na repetitiva programação da TV… Assim o tempo não passa, afugentar possibilidade de envelhecer. Preencher com vazios a angústia e a incerteza provocadas pelo caos. Não quero escrever sobre os conflitos ou violência urbanos, desejo ouvir os pensamentos dos caracóis. Não me apetecem as algemas do esperado nem a experiência do pronto. Não quero botões nem zíperes, talvez encontre outro modo de fechar a pele ao vento. O dia em que levar uma mulher ao gozo com única palavra não haverá mais guerras. Impossibilidade ao alcance da linguagem. Mas antes preciso suspender os remédios. Estrategicamente, necessito de alguns meses… Talvez dias sejam suficientes. Retornar ao não tão claro, ao nublado da estranheza, de viver com a possibilidade da peste, quando falamos nós nos apoiamos num túmulo, e esse vazio do túmulo é o que faz a verdade da linguagem, mas ao mesmo tempo o vazio é realidade e a morte se faz. Dar nome às coisas é um gesto de negação da morte. Não exijam de mim o nome da fonte, os textos como referências são meus cacoetes, a manifestação de meu TOC, depois de morta a autoria a obra adquire vida, cada pensamento, cada ideia, cada frase, tem nome próprio, como meu nome Samael, anjo da morte, linguagem a anunciar a morte, fruto da castração imagética, mas resistência ao assassinato em série e à redundância, da água-esgoto sempre a mesma, da fuga no pó branco, do calor provocado por engenhocas capitalistas.

 

Capítulo VII: Sem Diarreia Intectualista

A barriga ronca… Dentro de mim há vazios e vazantes, movimentos, sons e ideias que ignoro, dizem um arquivo, simulacro do compartilhado desde a origem, traços delirantes, hélices helicoidais das manifestações e sonhos, cada um tem a chave de um mistério que o faria diverso e disperso do coletivo, mas o homem como figuras russas, filhotes de cavalo-marinho, agarrados em único eixo, único espaço, como se o mundo fosse apenas o esqueleto do que visível, e o homem coloca lentes no espaço para melhorar sua miopia, mas é a hipermetropia o problema, é a visão próxima que está comprometida, mais a perda do faro, do tato e da magia, dentro de mim há um corpo onde vísceras acomodam-se em território próprio, origem de tudo que ninguém suporta: ventosidades, fezes e urina.

O homem apenas será perfeito quando a merda sair reciclada e os rios ficarem livres de seus dejetos, então muita merda escorrerá a céu aberto, vísceras expostas alimentarão urubus durante anos, o cérebro último banquete, apenas ele guardado em embrulho ósseo pétreo, necessário preservar os registros do primeiro unicórnio, da primeira besta, confirmar a morte encefálica é afirmar o cadáver… Há corpo pensante nos viventes sob ação das máquinas? Nem ao criador ocorreria qualquer possibilidade de o homem reduzir o pensante a um pensar sem morada. Mas o absurdo cavalga de boulevard em boulevard, de genitália em genitália, o walkman e a internet fazem do sujeito um nômade de corpo fincado e sem raiz, transporta-o a lugares nunca os mesmos, a participar de aldeias sem cartografias, assim sempre a loucura com suas alucinações auditivas e visuais, os delírios, a levar o sujeito distante de seu clã, de sua tribo, órfãos em comoção. Na loucura, o psicótico é… O singular nunca será além de… Reclusos em cidades e casas, manicômio sem quadrado azul, com computadores, ansiolíticos e antidepressivos, bonecas infláveis, nem a morte a mesma, necessárias cinzas nômades, apagar de vez ideia cartográfica, cremar é o não lugar da matéria, é passar a borracha na escritura… As vísceras, nos dois, no psicótico e no singular, não negam a raiz territorial… Avisos para saciar a fome e cumprir ritual fisiológico para eliminação dos dejetos. Malditos remédios! A despertar o apetite como a maconha; a diarreia, como o rotavírus. Está no cérebro toda a central reguladora. Mas ela embriagada pelas necessidades consumistas e despropositadas. Teria falhado o chefão? Quem sabe não estaria na loucura, no marginalizado, na exceção, a estética da pós-crise… Na decadência dos espaços e das relações humanas a palavra deverá rearticular uma estética polissêmica e polifônica, produzida na insânia do caos e do vazio, da morte nas chamas pelo fogo vindo dos gases e óleos do gasoduto do império modernista, ao modo do experimentado por Marcelo Ariel, inspirado em Vila Socó: “Me enterrem com a minha AR-15”. O que a loucura faz de um simples ronco visceral? Particular sinalização de fome, nenhum motivo para uma diarreia acadêmica pensante, que poderá inspirar alguém a produzir um ensaio, desenvolver uma tese de mestrado, doutorado, pós-doutorado, ações reducionistas de sabidos simulando sábios, modo de acreditarem sãos ou curados… Não desejo nenhuma cura que me cegue, encolha e reduza o espectro, este olhar em branco e preto que simula o fingimento poético; preferível a desintegração total por multicolorida, não esta, surto que poderia me render status de um sujeito singular.

O fato é que se faz necessário saciar a fome para evitar hipoglicemia, o que me deixa sonolento e com dor de cabeça. Sou o sujeito mais covarde da terra diante de uma cefaléia. Único sintoma a me afastar da obsessão pelas palavras. Os prescritos pelos médicos, as bulas com letras invisíveis ao olho comum, jogarei no ralo tão logo a vizinhança encontre outro foco para compartilhar a culpa.

 

(continua)