38º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Sozinho na cozinha… As mulheres e o gato ausentes. Pensamento no longo corredor do que foi. Criança na teimosia do ovo e a mãe em estalada possibilidade de perda por inanição: Ovo outra vez?! Nem imaginar que a ilhota amarela no oceano nácar excitava o verme erótico ainda sem endereçamentos na geografia corpórea. Mais esse lado literário que sempre negou. Ainda pureza, pernicioso é o futuro, construído na necessidade de expurgar uma culpa que nunca lhe pertenceu, o garfo acarinha fronteiras até ruptura liberalizante de magma sorvida em gozo pelo miolo de pão, boca em orgasmo salivar, sêmen-semente do vindouro, curtido na perversidade de fêmea cativa em fantasmas de finalidades. No entreato digestório, fome saciada, os dentes expunham-se à rua, aos movimentos barrocos do vento, cada vez mais distante os ruídos de louça; e a perversidade. Agora, mais ovos aninhados na geladeira. Mexidos dão menos trabalho. Não se faz mais necessária a poesia do magma. É para saciar a fome. Modo animal de adulto banido das extensões fluídas da origem. Misturar clara e gema, gesto masturbatório, o menino na câimbra reinante no momento do gozo, assuntando a face materna na possibilidade de um fim, enclausurado nos mistérios do silêncio e das paredes. Nascia ali um enamorar perverso, curtido nos deslumbramentos assimétricos das desoras.

Você ainda está aí? Mamãe sofria com essa mania… Ovos! Agora, pouco importa. Só o fantasma dela presente. E o seu… Vim pegar a garrafa de uísque. Você não leu as cartas. Faz meses que não lê as correspondências. Estão todas sobre a escrivaninha. Acho que não foram avisados… Foi tão rápido. Lembra-se de papai? Não! Você não tem memória. Ele comia a pera. Abria a boca para mordê-la. Não nos demos conta. Ver tudo quedo: a fruta, o braço, a cabeça, o corpo. Não respira… Mamãe diante de alguma sombra que não vemos, sussurrando frases desconexas, você deixa o pão sobre a gema do ovo e corre a socorrê-la. Eu continuo sentado. Descobrimos que morrer é essa pausa no espanto. Deixamos mamãe na agonia do instante e nos fechamos no escritório. De nada adiantou a porta fechada, as sutilezas do passamento transpassam as frestas, os vãos e as paredes. Você colocou-se no canto, rosto virado para a parede e tapou os ouvidos. Não me lembro se chorou. Pouco importava o que eu lhe dissesse. Só saiu dali levado pelas mãos do tio Anastácio. Não quis ir ao velório. Ficamos em casa. Esta mesma casa. De nada adiantou… Tem razão. A imaginação nos colocou em outro velório. Ou não! Talvez estivemos presente, não há ninguém para nos confirmar… Você está ouvindo? Maurerische Trauermuzik. Papai gostava tanto de ouvi-la! Mozart. Cheio de verdades. Como se a ordem do mundo fosse de sua competência. Chegava a casa, enfurnava-se no escritório de onde saía já tarde da noite, dormíamos, acho que nos odiava. Juntos, apenas às refeições e nos eventos da Loja quando nos apresentava com certo ufanismo. Éramos uma família… Melhor voltar, tomar mais umas doses. A euforia é que me encanta. Fique aí com seus ovos! Com os ovos e os testículos. É o que teria dito. O pai ali, sentado, expressão severa, no aguardo de qualquer reação do filho que diante da variedade de um prato de comida pensava na gema e na clara, no ovo frito, o olhar aflito da mãe, como se dissesse Coma, vamos!, a criança em soluços e lágrimas. Marcava, assim, o momento na alma deles, como uma escara, perversidade atroz por infantil, o rosto do pai, o rosto da mãe, a comida, o mastigar nauseento, o prato vazio, o homenzarrão de costas no corredor, a entrar no escritório, fechar a porta, abraçar a mãe, cabeça entre suas pernas, em soluços, o cheiro adocicado, ter as mãos dela acariciando os cabelos, ouvir os conselhos sussurrados, que evitassem irritar o pai, que comesse de tudo, que ovo e pão não alimentam, mas ganhava sua flagrância, suas carícias, suas histórias contadas no entreato do palpitar no peito. Nós carregamos ruídos dentro do corpo. Confabulações com nossos monstros e fantasmas…

As mesas enfileiradas. Passar o tempo carimbando documentos, redistribuindo processos, observando as cabeças à frente, ser o último da fila. Sempre foi assim. Se não por opção, por ordem do professor. Desejavam humilhar, mas não sabiam ser do agrado agir como o último. O primeiro representava ser o melhor do mesmo. Singular… Preferia ser único, por mais que isso doesse aos outros. A quem a vida pertencia? Ao Estado, é claro! Voz de algum lugar que não o mesmo. Tanto fazia se pertencesse a Deus ou ao Estado. Não lhe incomodava. O trabalho, por mais rotineiro que fosse, permitia viver sem favores. Até 16h00. Nem um minuto a mais. Colocar o capote, pegar a maleta e sair. Ajeitar-se no vagão do metrô, maleta no colo, observar as pessoas através dos reflexos nos vidros das portas e janelas. Não sabendo observadas, conhece-se o sósia, rompe-se com o jogo de sedução. O mesmo… Entrar no bar para fazer um pouco de hora. Sempre no mesmo canto. Em algum tempo e espaço. Não sentir estranheza ao ver o sujeito entrar para alimentar o vício. Todos ali fazem o mesmo. Chegar em casa anestesiado e adormecido. Não pensar no dia, não pensar o dia, não pensar na existência. Morrer todas as noites. 17h30. Hora de alimentar o gato. De abrir a memória. O leão no frontão da casa. Símbolo vazio. A sineta…

 

(continua)