30º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

As mesas enfileiradas. Passar o tempo carimbando documentos, redistribuindo processos, observando as cabeças à frente, ser o último da fila. Sempre foi assim. Se não por opção, por ordem do professor. Desejavam humilhar, mas não sabiam ser do agrado agir como o último. O primeiro representava ser o melhor do mesmo. Singular… Preferia ser único, por mais que isso doesse aos outros. A quem a vida pertencia? Ao Estado, é claro! Voz de algum lugar que não o mesmo. Tanto fazia se pertencesse a Deus ou ao Estado. Não lhe incomodava. O trabalho, por mais rotineiro que fosse, permitia viver sem favores. Até 16h00. Nem um minuto a mais. Colocar o capote, pegar a maleta e sair. Ajeitar-se no vagão do metrô, maleta no colo, observar as pessoas através dos reflexos nos vidros das portas e janelas. Não sabendo observadas, conhece-se o sósia, rompe-se com o jogo de sedução. O mesmo… Entrar no bar para fazer um pouco de hora. Sempre no mesmo canto. Em algum tempo e espaço. Não sentir estranheza ao ver o sujeito entrar para alimentar o vício. Todos ali fazem o mesmo. Chegar em casa anestesiado e adormecido. Não pensar no dia, não pensar o dia, não pensar na existência. Morrer todas as noites. 17h30. Hora de alimentar o gato. De abrir a memória. O leão no frontão da casa. Símbolo vazio. A sineta…

Capítulo V: Moída a memória

Sol no rosto. O astro maior, a lua e as nuvens são as únicas coisas do mundo de fora que nos visitam sem impedimentos de qualquer ordem. Sem visão do horizonte, não há lebreias e as águas, quando chove, caem como se apenas nesse quadrado, ora serenas, ora agitadas, empoçam no pátio, onde raramente granizos, mas o ruído da água caindo do telhado enclausura mais o doente dentro de si, como faz com as crianças adensadas no quarto de dormir, muitos diante das janelas como viajantes nos trens, mas sem devir, não devemos falar em esperança se não há medo, estão no não-lugar pelo fato de a chuva chamar pela estranheza ou por abrir novas portas ao delírio. Não recebo visitas, não tenho parente vivo. Nem sei como cheguei aqui. Com certeza algum acesso. Mas eu sozinho… Não fossem os medicamentos e os choques, teria companhia de Carol, Clara, Da Graça, o outro de mim… Estariam aqui ao pé de jabuticaba que a vontade plantou. Não nasce fruto no deserto. Tem razão. Aqui é a morada do desabitado, nem sapo enterrado no chão aguardando a época das águas. O alheado sempre estará atolado em perífrases incompreensíveis cochichadas no abismo. Apesar de penosa a fome e a dor, nem na primavera Dionísio arriscaria entrar nesta jaula. As ideias, enquanto pensante, por aqui são confusas e mutiladas, e não há de se falar em adequadas ou inadequadas, nem de ações ou paixões, alguns internos conseguem arrulhar como os pombos ou fantasiar-se de Adão, outros usam a mão para dar algum sentido aos restos deixados no chão, a arte sendo fruto do pensar no limite, que não há criação sem ato pensante, mesmo que ideias fragmentadas, atuação de sonhos enquanto delírio ou da embriaguez. Não confundir com o embriagado, o embebido em álcool, ou o sonhador da realidade. Estes têm os pensamentos sem cismar, as vísceras em fogo-fátuo e as mãos trêmulas. São os que caminham com seios e barrigas avantajados, pelo nenhum no tronco, as veias latejantes na pele, balbuciantes, a baba escorrendo no canto da boca, dementes. Entre os sonhadores da realidade, os psiquiatras são os mais adestrados, dionisíacos no entusiasmo, débeis nos resultados. Aqui o pensante é caos, o que permite um devir particular. O que mais fazer aqui entre estas paredes enormes que não dar ouvidos à insânia, aceitar essa flatulência de ideias selvagens, esse temporal híbrido de palavras, esse avesso retorcido e fora de lugar? Que os homens de branco não ouçam além da linha melódica do comum, dos normais, caso contrário, ficarei mais tempo entre estes muros de pedra… Fizeram muros altos, cinzentos – esconderam a terra. Mas o quadrado azul está presente: Sempre. Não sei a autoria, a doença leva de roldão a memória, permanecem rastros, vestígios, por enraizados em terreno árido da insânia. Mas o quadrado azul sempre presente e mutável, como a tela grande do cinema, movimentos de aves e nuvens. Estamos na época de os pássaros migrarem com seus cantos roucos. Atravessam em bandos. Aqui ninguém migra além do possibilitado pelo delírio, alucinações e ilusões. O pátio está abarrotado, há disputa pelo ensolarado. As táticas curativas como as reuniões de grupos e terapia através da arte ocorrem à tarde. Como falar em arte se o pensante amordaçado pelas pílulas coloridas aviadas pelos doutores? Apenas os surtados são internados. O que parece um avanço não passa de um discurso humanista embalado em diminuição de custos pelo Estado, o que abriu os portões dos hospícios, a maioria caminha como zumbis pelas estradas, dormem nas ruas, morrem esquecidos nas macas dos hospitais. Mas a fábrica lá fora tem linha de montagem própria, a família e a escola continuam a desrespeitar a individualidade, a cobrar o retorno na pura imitação e identificação, mas é preciso esquartejar na diferença e dissolver-se na identidade para abrir-se ao estilo, todos os dias o portal vomita novos internos nas celas, muitos jovens delirantes pelo uso de drogas, cerceados em suas liberdades por muros altos e arame farpado. Para evitar fugas… Mas continuam tentando. 

 (continua)