Uma concepção literária da vida | Luís Carmelo

MAUNa brevíssima introdução ao seu Journal – edição de 1934 da Grasset – escreveu François Mauriac:

“Não se deverá procurar neste título um jogo de palavras. De facto, trata-se de uma recolha de artigos; mas eu concebo o jornalismo como uma espécie de diário meio íntimo; – como uma transposição, para o uso do grande público, das emoções e dos pensamentos quotidianos suscitados em nós pela “actualidade”. Neste plano, uma doença ou até uma simples leitura têm quase tanto valor como uma revolução; é a sua incorporação na nossa vida interior que acaba por definir a importância dos acontecimentos”.

Tão longe que estávamos ainda de uma concepção de espaço público mediatizado!

Esta doce concepção de Mauriac é, com efeito, uma concepção essencialmente literária. Repare-se no facto de o autor se distanciar de “actualidade” (as aspas falam por si) e repare-se sobretudo no modo como a interiorização (o “retentissement”) personalista dos factos (lidos) acaba por moldar a sua real relevância. O esteio da emoção e de um dia-a-dia filtrado pelo fio solitário da palavra equivale a uma familiaridade que se impressiona, imagina e comove. Como se a leitura, para além de ser um jogo especioso, tivesse a força metafórica – e ao mesmo tempo actuante – de uma revolução.

A familiaridade desta concepção advém de uma experiência que ainda não ponderava o oceano encapelado pela intersubjectividade do nosso espaço público, pela hemorragia da informação e pelo universo dos “conteúdos”. Nos nossos dias, o difícil – ou às vezes o impossível – é estranharmos seja o que for. Haja imagens de incêndio, de guerra, de morte, de viagens espaciais e de acidentes de todo o tipo que uma indiferença massificada falará mais alto. O cenário de uma consciência a sós, silenciosa e imune a esta ininterrupta Via Láctea de imagens já hoje não existe. E era esse, precisamente, o cenário de uma sociedade vincada e moldada pela referência literária (mesmo no jornalismo). A mesma que colocou na pena de Mauriac o aceno de intimidade e de despojamento face à “actualidade” que, ao fim e ao cabo, ainda separava tão bem realidade de ficção.

Bataille escreveu há muitos anos que “a literatura não era inocente” e que, “por se sentir culpada” desse facto, teria um dia “que o confessar”. A catarse mediática dos nossos dias poderá corresponder, de alguma maneira, à confissão que Bataille prenunciou. Já a confissão terá ficado por realizar. Até porque a inocência que aparece no prefácio de Mauriac apenas o é, se entendida a partir do olhar dos nossos dias. Vista no seu tempo, uma tal inocência movia montanhas, digladiava valores, reflectia apologias, expunha manifestos e definia, por vezes, a relevância dos acontecimentos.

A literatura era na altura uma instituição central do mundo. E Mauriac, membro da “Académie Française”, era, nessa época, tão referenciado quanto hoje um novo Prémio Nobel obriga qualquer jornalista a sérios ‘trabalhos’ na Wikipédia.

Luís Carmelo

CRÉDITO foto: www.canalacademie.com/Accueil-du-jeudi-16-oct