Sempre foi para mim uma evidência que a poética é algo anterior à poesia, enquanto prática literariamente codificada. Os ditados populares que atravessam todas as culturas do planeta são uma prova de que a urgência de dizer o indizível sempre morou no coração do ser humano. Muito antes, portanto, de a poesia passar a ser um mundo retórico pronto a ser decifrado através de regras e esferas culturalmente estatuídas.
Menos evidente parecerá ser a ideia de que o literário, enquanto categoria de releitura e apreensão do mundo, precede a prática literária tal como a entendemos e significamos, pelo menos desde o final do século dezoito. De qualquer modo, há formas de arte que nos parecem afirmar, até de modo assertivo, que o literário extravasa por si a actividade literária pura e dura. Uma dessas experiências, bem mais correntes do que se possa crer, está presente, para não dizer omnipresente, no universo da fotografia que passámos (lentamente) a descodificar enquanto disposição artística.
Atentemos a uma fotografia de Paul Strand que ilustra algo bastante actual (o título fala por si: “Wall Street”). E perguntemos de modo muito directo: o que faz esta fotografia no mundo? Além da sombra e da luz, é óbvio que ela traça um propósito, uma orientação; uma espécie de casa das casas, multifacetada, múltipla, aberta em leque, desfigurada, como se fosse, ao mesmo tempo, um mero receptáculo das silhuetas que vêm ao ser e um entreposto das existências que parece usurpá-lo.
Uma fotografia como esta faz frente à letra, ao programa, ao enigma resolvido, à conjura controlada, ou ao labirinto binário que se esgota na divindade e no rebanho de mortais. Uma fotografia como esta faz o seu caminho apagando-o, removendo o que parece limitá-la, divergindo na invisibilidade das figuras que perseguem sombras esguias e compridas, matinais. Paul Strand entendeu como poucos a natureza desta cascata de imagens que, numa única e aparentemente episódica, como se fosse apenas vestígio, se realiza, se cumpre e se coisifica.
Ao contrário do milagre, a fotografia muda permanentemente de estado: quando a olhamos, quando a requeremos e quando a interpelamos: propósito aberto, tecido disseminado, rio inacabado pelo curso das margens que o reflectem.
E o literário não é precisamente esta qualidade que nos sugere um dissipar que se reacende e redescobre sem cessar? George Bataille disse-o de outro modo, porventura mais prudente e próximo: “A literatura é a infância finalmente redescoberta” (“La littérature, je l´ai, lentement, voulu montrer, c´est l´enfance enfin retrouvée”).
É verdade: Platão não estará assim tão fora de moda. Nem mesmo em Wall Street.
Luís Carmelo