O Atlas imaginário da nossa língua literária

No editorial de 4 de Abril passado, focámos a questão da genologia romanesca, ou seja, de tudo aquilo que está experiencialmente na génese do ficcional sem que, naturalmente, se confunda com o biografismo estrito. Vimo-lo a propósito de Sinais de Fogo de Jorge de Sena e de um texto de Maria Alzira Seixo publicado na Colóquio Letras há mais de um quarto de século. A questão evoluiu muito nas últimas décadas e superou, pelo menos pragmaticamente, os preconceitos relativos à imanência textual. Por outras palavras: as próprias indústrias culturais dão hoje grande importância ao património imaterial e é por isso que o público, para além da leitura dos textos em si, se interessa cada vez mais por roteiros de escritores, por acervos vivos de romances emblemáticos e até por lugares e topografias onde poetas tenham convivido com o seu imaginário criador.

A genologia diz, pois, respeito aos vestígios e indícios materiais da criação literária. Quem não seguiu já o roteiro pessoano da Baixa de Lisboa, o percurso eborense da Aparição de Vergílio Ferreira ou visitou a casa de Camilo em Seide, a de Régio em Portalegre ou tão-só reviu, em Constância, alguma fantasia camoniana? É óbvio que estes aspectos dizem respeito à significação literária e fazem parte intrinsecamente dela. A genologia está muito próxima da metáfora de Verona, cidade que é visitada por causa de dois personagens literários, sabendo-se perfeitamente, no entanto, que ali nunca existiu de pedra e cal uma casa como a que Shakespeare um dia criou.

Sempre dei, de maneira intuitiva, bastante importância a esta rede de vestígios não materiais. Raras foram as vezes, no entanto, que vi ou li reflexões ensaísticas assentes neste tipo de entendimento imaterial que não deixa de ser colateral à leitura e ao aprofundamento de obras literárias. Existe algum preconceito neste tipo de abordagem, embora ela seja portadora de uma autonomia e de uma relevância que não vale a pena esconder. É por isso que sublinho sempre, nas minhas leituras pessoais, aspectos que se situam no terreno dessa espécie de mitologia do ficcional e que, naturalmente, se relacionam de modo íntimo com quem um dia escreveu e com as atmosferas e idiossincrasias – nem sempre dizíveis – que terão envolvido a própria enunciação.

Como exemplo, deixo hoje dois retratos que Raul Brandão (1867-1930), nas suas Memórias, nos deixou de dois dos melhores artífices da língua literária portuguesa, seus contemporâneos de há um século: Fialho de Almeida (1857-1911) e António Nobre (1867-1900). Recorrendo à sua plasticidade descritiva (de que Os Pescadores é um símbolo porventura maior), eis os retratos que Brandão nos legou e que atravessam, num e noutro caso, quer uma visão de “macaco” herético, quer a de uma “inaturável” sobranceria:

“António Nobre usava uma abotoadura de cabeças e pregos e sorria com um modo e um ar de ternura e desdém. Fugiam dele antes de publicar o Só: os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o Só. Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior” (…) “No fundo detestaram-no, detestaram-no todos. Não lhe puderam perdoar a impertinência, o desdém, o génio. Era um ser diferente. Não agradava a ninguém. Só as mulheres o amaram. Era um poeta. Desconheceu a vida prática. Tinha a consciência do seu valor, e uma superioridade que não se podia aturar. Estávamos todos mortos por nos desfazermos desse ser à parte, desse eterno cônsul sem consulado, desse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas debalde o arredámos: houve uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo – que nos ficou na alma… Agora estamos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade, a afectação e o desdém infantil de António Nobre”.

“Está diante de mim aquela boca enorme, aquela figura de gabinardo e chapéu mole que nas noites de tristeza e abandono me dizia: – O que eu sofri! o que eu sofri!… – vejo-o sempre invejar o barqueiro louco e sardento de que fala nos Gatos, belo como um efebo à proa do seu barco. – Como eu queria ter saúde e ser forte! – Deu-lhe Deus o mais rico quinhão que imaginar-se pode, a língua incomparável para exprimir a quimera e a dor, e esse macaco sem fé esbanjou-a com o mais absoluto impudor: serviu-lhe para chacota. Transtornou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de tudo.” (…) “ A sua obra só tem outra que se lhe compare, a de Camilo! Exigem-lhe um livro harmónico – Os Cavadores. Por que é que toda a gente reclama dos outros aquilo de que eles são incapazes? A obra de Fialho de Almeida não podia ser senão esta, aos arrancos e enorme.”.

No campo da lingua literária portuguesa, espraiando-se pelos muitos cantos do mundo onde se diz – do Brasil a África, da Ásia ao cantinho português –, estará ainda muito por fazer no sentido da construção de um Atla imaginário da nossa comum língua literária. A ideia fica aqui sucintamente exposta. Uma ideia genológica que se traduziria pela procura dos vestígios e indícios materiais da criação literária que mais teriam contribuído para espelhar e complementar a imaterialidade – sempre insaciável – da leitura. Creio até que esta ideia é, como agora se diz, “uma ideia com mercado”.

Luís Carmelo

Maria Alzira Seixo , Inferências genológicas na obra de Jorge de Sena,  em Colóquio Letras, número 90, Lisboa, Março de 1986, pp. 57-62.

Luís Forjaz Trigueiros (Org.), Fialho e António Nobre em Raul Brandão, Edições Panorama, Lisboa, 1960, pp. 62 e 63.