A literatura de Poe: liberdade vs. fatalidade

Nas narrativas de Poe, está em curso uma imaginação livre, moderna e poderosa. Há sempre um sujeito muito claro que enuncia o relato e está sempre em cena uma linguagem que aparece como diria Foucault. Esta marca de vincada subjectividade torna-se visível, por exemplo, no conto Silêncio, que dá corpo a um curioso diálogo entre o demónio e o narrador, junto ao túmulo deste último, sob o pano de fundo de uma paisagem que se vai alterando. Metamorfose que por si se explica, como se fosse um acto que não carece de criador ou explicativo: é este mesmo o cerne do emergir literário.

O modelo de diálogo onde o demónio intervém surge noutras narrativas como, por exemplo, em O Gato preto. O trânsito entre a vida e a morte torna-se aí realmente chão, directo e sobretudo dissociado da parábola ou do carácter de alegoria ou exempla, o que jamais aconteceria nas literaturas pré-modernas que sempre separaram a esfera do divino e a esfera dos homens. Os personagens de Poe são sempre sujeitos activos que edificam, matam ou redimem, sendo tão-só guiados pelo que resulta das virtualidades literárias da imaginação e da linguagem. O mesmo pressuposto de jogo criativo viria, no futuro, a revelar-se no cinema em alguns dos mestres do expressionismo cinematográfico alemão, como Fritz Lang ou Murnau.

Em Poe, a cena ficcional é sempre atraída por uma ideia de fatalidade, ao fim e ao cabo um modo de questionar os sentidos que a então recentíssima vida moderna e urbana colocava em marcha. Ao longo de séculos, as providências haviam acautelado a harmonia entre os deuses e os homens, mas agora, separados dessa junção protectora, os personagens de Poe mais não fazem do que profeticamente prenunciar – passe a redundância – a negatividade do sujeito moderno, tão do gosto de Baudelaire, Nietzsche ou Ortega Y Gasset, etc[1].

Em contos como Ligeia, Gato preto, O Rei peste, Berenice ou Eleanora, a fatalidade acompanha toda a trama e chega mesmo a ser assinalada pela voz que narra:  “Já não era capaz de me reconhecer. A minha alma original pareceu fugir-me de repente do corpo” (GP); ou: “Falarei apenas daquele aposento, para sempre amaldiçoado ao qual, num momento de loucura, conduzi como minha esposa – como sucessora da inolvidável Ligeia – a minha  loura (…)” (LI).

Ao contrário dos monstros e portenta que, no imaginário pré-moderno, eram habitantes de um alhures legitimado de modo metafísico, nas narrativas de Poe a topografia das monstruosidades e fantasmas abre-se à empatia do quotidiano, sendo fruto de um puro jogo da linguagem literária. Tal ocorre, quer através de um olhar que filtra o ambiente das novas cidades e as novas visibilidades do quotidiano, quer através de um olhar preso à idealidade romântica e gótica que visiona ruínas medievais e espectros desolados. Literatura de fusão feita a partir de uma simbiose de olhares, como se vislumbrasse uma espantosa intuição do tropo fotográfico, fenómeno, também ele, emergente e contemporâneo da obra e da vida do autor.