Encontro por vezes ao sair
um pequeno deus encostado ao umbral da minha porta.
É um deus mestiço, linhagem de faunos e de anjos, algum
encontro casual de uma deusa com um pastor arcádico.
Em todas as teogonias havia de lhe encontrar ascendência,
até nas árvores-espelho onde o tempo se remira
ou no último fio de nevoeiro que se levanta tardio,
se a procurasse com afinco
e fosse disciplinada e metódica. O pequeno deus mestiço
tem um olhar de exílio onde agoniza aquela incómoda condição
de quem já está no mundo para ficar
e, sem remédio, apanha com todo o frio dos acasos
na ombreira de uma porta que não dá para parte alguma.
E como se fosse mortal, creio que sofre, o cálice da indiferença
não lho deram a beber. Enternecem-me as asas nas sapatilhas
estafadas dos caminhos etéreos que o trouxeram aqui
e o amarraram na circunstância. Se eu escrevesse poemas úteis
teria vinho e rosas para lhe dar, o recorte estudado
de um verso bem burilado. Assim, procuro no fundo do saco
dois verbos mais duráveis. E estendo a mão sobre os séculos
e o meu braço atravessa a fome, a peste, os ventos do Levante,
tudo o que li e por isso vi,
as mulheres troianas rasgando com as unhas as paredes
do palácio de Príamo saqueado, o rei dos Rútulos a pedir clemência.
Canta-me, ó pequeno deus mestiço, como caem todos os anjos,
diz-me se há rota por onde voltem a casa os dias dissipados.
(2014)