Capitulo 1 – A Flip da Casa Grande, a Flip da Senzala

Esta é a oitava edição da festa que virou a principal atração turística de Paraty, e muita coisa mudou nesses anos. Neste encontro em que o principal homenageado é um dos autores considerados entre os maiores intérpretes do Brasil (formando juntamente com Sergio Buarque de Holanda e Celso Furtado uma espécie de santíssima trindade), paira no ar da cidade símbolo do início do pujante ciclo do ouro, um convite à reflexão sobre quem somos e para onde vamos.

Coincidentemente (ou não), a primeira Flip aconteceu no primeiro ano do primeiro governo de um líder sindicalista, prometendo mudanças sociais profundas. Esta, no último ano do governo Lula, foi aberta pelo seu predecessor, um especialista em Gilberto Freyre que reconhece a polêmica em torno do grande brasilianista, mas também a importância de alguém que mostrou ao mundo um caminho de entendimento acerca do servilismo que persiste mesmo num país mais democrático e justo do que era quando Freyre estudou as origens e heranças do escravismo e do colonialismo.

No prefácio da última edicao da mais conhecida obra do homenageado, Fernando Henrique Cardoso definiu Casa Grande & Senzala como um livro perene, um clássico que se deixa ler preguiçosamente, não obstante a densidade do livro.

De fato, muito mudou no Brasil e no mundo desde a primeira Flip. No ano em que foi lançado o iPad, Paraty, porem, continua a ser a cidade virgem que Freyre achava que todos deveriam conhecer.

Nas ruas escorregadias de pe-de-moleque, convivem tipos diversos: europeus bonitões, jovens alternativos aspirantes a intelectuais, crianças na Flipinha, mulheres com sapatos inadequados, mulheres apropriadamente calçadas, mulheres em grupos, uma festa muito feminina. No pequeno salão da crepêrie Le Castellet, por exemplo, dos 16 convivas, 14 são mulheres, que comentam animadas as palestras e leituras do dia.

A presença feminina sem dúvida reflete uma sociedade onde ocorre a independência e ascensão de grupos antes marginalizados, num Brasil muito diferente daquele sobre o qual Freyre debruçou-se nos anos 20, a partir de uma universidade norte-americana.

Mas se as pedras que pavimentam as ruas de Paraty continuam impassíveis, o respeito a certas hierarquias se mantém forte. Para além do aspecto democrático próprio de fóruns de discussão literária, os degraus entre os estratos sociais sao altos ao separar os festeiros amigos (aqui literalmente) do príncipe, daqueles sujeitos à tragédia dos comuns. Pousadas e casas luxuosas deixam-se entrever por poucos segundos aos pobres mortais que se limitam a se contentar com os (deliciosos) doces tradicionais vendidos em carrinhos de rua a R$ 3. As festas exclusivas não passam de rumores para aqueles que se hospedam fora do adulado centro historico.

Num Brasil que continua governado por aliancas com as oligarquias, nada causa surpresa, mas refletir sobre essa separacao velada pelas ruas de Paraty tem certamente um sabor especial. Mesmo para os comuns.

Mauro Finatti