As Rotas do Sonho – Tiago Salazar

O autor andarilho publicou em Junho passado sonhos em forma de caminhos percorridos. As rotas escolhidas trilham a continuidade do universo deste autor: exotismo, luxo, hedonismo. A cada vez que fecho o livro para o admirar – a sua capa é uma absoluta marca de bom gosto – esta escrita  de exigência cosmopolita, cujas palavras nos levam rapidamente a entrar no devaneio dos miraculosos spas, dias de paz e vitalidade, mimos e cuidados femininos, não relega para número dois a aventura que percorre as linhas. As reflexões são, muitas vezes, como se pode ler no capítulo da Turquia, piamente imbuídas daquilo a que Salazar não se pode furtar, a sua masculinidade.

Pergunto-me sempre que começo a ler um livro de viagens qual é o projeto ou linha condutora que liga os destinos visitados, tantas vezes aliatórios. Apesar de não ter descoberto nada mais que o trabalho do autor como jornalista de viagens, tal não me impede de fazer uma prazeirosa co-viagem literária na qualidade de leitora. E vou, por isso, fazendo por aqui o check-in dos aspetos que me parecem ser de honrosamente mencionar.

Nota-se, assim, neste livro preocupações diferentes de algumas exprimidas n”A Casa do Mundo”, mormente a auto-reflexão sobre o seu trabalho, sobre as técnicas que aprendeu e as que escolheu usar, mas que o acaso não ajudou a implementar. No capítulo da Malásia é notório este percurso reflexivo, que justifica perante o leitor a complicação emocional em que o andarilho escritor se envolve, quando aceita visitar o paraíso com um plano de redação científica! Penso que o leitor não se importa de em vez de ler o plano científico, ter lamentavelmente de aceitar a contra-proposta do destino do viajante, render-se ao que o momento deleitosamente lhe propicia. Conforme a rota introdutória já avisara, “O importante não é passarmos o tempo, mas vivermos a viagem e as suas emoções., p. 16”, coisa que dilemas éticos tão bem podem fazer evitar. Assim como na viagem, na literatura, ora!

Ao mesmo tempo, o intimismo com que fala do amor em Fernando de Noronha, parece-me uma continuação do eu e de onde venho, para o nós, o eu e a minha significante cara-metade, um nós que percorre mormente a América Latina e que entretanto esvanece no resto do mundo. Por outro lado, a inscrição do autor-pessoa e suas características no livro e na história é a cada passo evidente. No capítulo da Índia, por exemplo, conhecem-se três pistas do autor: que é esquerdino, calça 42 e que faz anos no tempo das castanhas. (ex: “Da cama até ao mar são são cinco passos curtos e de medida certa (pé 42) sobre areia de filigrana.”(p.83))

Denota-de, de facto, menos observações diretas com o seu eu português que no anterior livro. Uma forma perspicaz de Tiago Salazar se revelar de uma casta original, porventura a do poeta, à Almeida Garrett, e mostrar que a identidade portuguesa e as viagens do autor são apenas uma mera coincidência, razão pela qual, seguindo Homi Bhabha, se justifica escrever a história de um destino cosmopolita “in medias res”. Ao ser, por isso, interpelado na Índia, em Siquim,  por “um dos membros da comitiva, um indiano bochechudo mordaz e ofegante […], se os portugueses ainda choram por Goa, Damão e Diu. [Diz]-lhe que devem chorar, aqueles a quem os países e lugares atravessam os corações. (p. 78)”.

Apesar das anteriores experiências transnacionais claras, talvez a grande viagem literária deste autor do eu-Portugal, a um eu-Europa e agora a um eu-Mundo. E revelou-se um mundo de rotas de sonho!

A escrita de Tiago Salazar reveste-se de um vocabulário luxuoso, remetendo o leitor atento para apreciar o cuidado da linguagem e para a construção de um discurso feito de frases tão arabescas, quanto transparentes de intertextualidade discursiva: interpreta-se óptima informação proveniente de fontes locais e uma interacção com os nativos que estimula o interpretado pelo jornalista informado cientificamente, decididamente antes da própria viagem. O autor apoia-se em figuras literárias de renome que ilustram os seus capítulos e mergem com o universo de referencialidades do leitor (Hemingway em Cuba, Rudyard Kippling na Índia, Thomas Mann em Veneza ou Orham Pamuk em Istambul, etc.).

Quanto ao trabalho de edição deste livro, é notável a melhoria na revisão, em relação ao “A casa do Mundo”, onde abundavam gralhas, que me desencantaram fortemente no contraste com a capa de um estilo gráfico excelente. Quanto ao conteúdo da revisão, só em Marrocos é que fiquei à espera de saber quais eram afinal os “ditames do dirham”, li e reli o capítulo em modo de leitura, ora seletiva, ora compreensiva, mas nada…e agradeço que me mostrem, se lá estão, no meio do discurso mouro! Mesmo assim, o modo subtil de o narrador se referir a D. Sebastião, sem passar deveras por Alcácer-Quibir, ao fazer a ponte entre Agadir e Taroument, vale bem a pena ler.

            O resultado é uma fabulosa viagem por países escolhidos com equilíbrio de número pelos quatro continentes, com humor e aventura suficiente, experiências humanas e bem escolhidas aquelas que fazem bem ao espírito! Tudo isto mesmo sem se sair do sofá! Sonhe-se!

Salazar, Tiago (2010). As Rotas do Sonho. Oficina do Livro

Susana Leite