Logo que me sento na primeira poltrona disponível, um pouco distante do palco, ouço, sem muito o querer, a conversa de dois velhos poetas: ela mora na Califórnia e ele, num subúrbio de Nova Iorque. Ambos estão acima do peso e empenham-se no programa dos vigilantes, formaram-se em direito e ele ainda exerce a profissão, ela dá aulas. Comentam sobre os filhos, trocam impressões sobre a programação do festival literário em seu sexto ano desde a fundação por Salman Rushdie e ele lhe revela segredos sobre o trabalho juvenil de John Irving (peças ridiculamente eróticas, uma reencarnação de Sade?). Criticam escritores que se recusam a compartilhar um livro, a fazer uma declaração para uma orelha ou um prefácio. Enquanto isto, os organizadores do evento desaprovam a iluminação do teatro, o tamanho das letras na tela gigantesca que reproduz os textos lidos no idioma do autor, o público ocupa todos os espaços e os dois poetas tentam ajeitar-se nas poltronas apertadas. As vozes não me permitem pensar, relaxar antes que a cerimônia comece. E lembro-me: isto sim uma extravagança pretender relaxar nesta cidade.
Vamos ao que importa: os trechos literários lidos na noite de ontem. Daniele Mastrogiacomo é um jornalista italiano que relata a sua experiência como vítima de sequestro no Afeganistão. Yiyun Li, natural de Pequim, escreve uma prosa no estilo de Ha Jin, cobrindo o quotidiano dos chineses sob o regime comunista. Vinda de Helsinki, Sofi Oksanen dá uma nova dimensão à Estônia, expondo a ocupação soviética na região e dramas familiares que, segundo a autora, chegam a tirar o sono do leitor. Atiq Rahimi, afegão exilado em Paris, é autor de Syngué-Sabour: Pedra-de-Paciência, ele aparece no palco com um chapéu e uma manta. Mohsin Hamid vive em Lahore e o seu livro O Fundamentalista Relutante posicionou-se entre os finalistas do Man Booker Prize. Andrzej Stasiuk apresenta-se, alguns na platéia gritam, e ele logo dá início à leitura de uma história triste, nota-se o espírito sombrio de um europeu do leste. Alberto Ruy-Sánchez é o único escritor latino-americano na noite e a sua prosa não esconde o sabor dos trópicos na sua obra Los Jardines Secretos de Morgador, um palmo acima da superfície do realismo. Miguel Syjuco não faz segredo da emoção de estar ali por causa da sua primeira novela “Ilustrado”, que começa com um crime em Nova Iorque e cobre cento e cinquenta anos da história filipina. Patti Smith introduz o livro auto-biográfico Just Kids, após a leitura de um ensaio por Salman Rushdie. Os fotógrafos ainda não podem ir para casa pois precisam ficar para os autógrafos.
Confesso que me custou a leitura na tela com as traduções. As letras corriam sem que os olhos pudessem acompanhá-las na medida. Alegrei-me quando Atiq Rahimi anunciou que leria em francês. Havia pessoas saindo antes que o evento terminasse, descontentes com o lay-out da apresentação. Os poetas ao meu redor logo partiram por esta razão. A leitura de Andrzej Stasiuk me fascinou pelos detalhes descritivos, a enumeração sintomática dos objetos de um quarto, esforcei-me para captar em inglês o que ditava em seco o autor polonês.
Alusões à lua e ao sol estavam presentes em quase todos os trechos lidos e apesar do impacto da crescente urbanização da literatura contemporânea, não se desfaz a conexão entre o homem e os sinais da natureza a cercá-lo. Num parágrafo comovente, Alberto Ruy-Sanchez descreve uma cena de amor entre a protagonista e o sol. Andrzej Stasiuk fez menção ao sol diversas vezes e encerrou a leitura com um sol tão vermelho quanto o do sagrado coração. Yiyun Li abre um conto com o sol e as mudanças sazonais. Em seguida a uma semana de dias cinzentos, Nova Iorque acedeu aos chamados dos escribas e hoje amanheceu o sol a resplandecer sob um vento sussurrante incansável. Nem por isso, faltarei ao evento New York Stories a começar às sete!
Kátia Gerlach