ENSAIO SOBRE A MORTE E OS VIVOS | Rui Sobral

Nada mata tanto quanto a morte daquele que vive em nós. Não há relatividade para a dor do que fica. Choroso. Perdido. Carregamos a existência do morto nas lembranças a pingar de sangue por cada vez que um gesto ou um toque, um som, nos leva a momentos de nostalgia. Sorrir passa a torna-se pecado. Sempre que esboçamos alegria na face, cai-nos a mágoa por “desrespeitar” aquele que deixou de viver por cá. O viver, para o que fica, torna-se indubitavelmente condicionado. Chega a dar vontade de arrancar as memórias que nos mantém cozidos. Cozidos. Cozidos – sem anestesia, com pontos de uma linha vermelha e ávida de secura. A morte não se limita a levar o corpo do morto. A morte encarrega-se de asfixiar o vivo.

Recto. Horizontal. O que vai, vai deitado e encharcado pelas lágrimas dos que deixa e pálido. Frio. Imaculadamente vestido e penteado. Esteticamente, vai bem acondicionado. Lá vai ele. Queimado ou enterrado? Missa longa? Curta? Flores. Sim ou não? Muitas ou poucas? Quem vai? Quem não aparece? A toilette deveria ter sido aquela? A fotografia. De agora ou mais antiga? Todo esse processo é penoso. Desde o choque ou desde a inevitabilidade aguardada, até ao adeus ao corpo, à presença física – mesmo que morta. Morrer é um desporto – disse um dia um guru. É um desporto radical, daqueles que, segundo a tendência mostra, todos acabam por participar. Dificilmente estaremos preparados. Muito menos os que ficam.

Depois vem a distribuição dos pertences do defunto. Abrem-se as gavetas – outrora pessoais e intransmissíveis. Cai uma lágrima. De rosto molhado, vasculham-se os bolsos das calças que ainda cheiram a vida. Dos casacos. Das camisas. Tudo é remetido ao assalto. Após o roubo, tudo é exposto a quem de direito. Àqueles mortos-vivos de faces iguais sentados à mesa, abalados, mas prontos para a partilha. Um ficam com fotografias, outros com aquele anel especial, outros guardam postais ou cartas ou demais coisas. Sim, coisas. Coisas de bem proporcional. Essa solene reunião, no fim, tem a morte sentada à mesa e ninguém está imune a ela.

Dias depois, a morte continua a saciar-se. Vem aquela missa em memória do enterrado, do queimado, enfim. Os, então, mortos-vivos – mais mortos que vivos, estão presentes para lembrar o adeus em missa solene ou algo parecido. Mais fundo vai ficando o punhal da morte na carne do vivo. Dizem-se coisas da praxe, chora-se mais um pouco – como se não bastassem as lágrimas deitadas nos últimos dias, e no final daquele pesar regressa-se a casa. Suspira-se. Ouvem-se coisas do género “finalmente acabou”. Mas nada acabou. É uma rasteira. A morte está no ínicio. Abram-se alas.

A vida encarrega-se de desmembrar dores que deveriam ser de outros. Não são. Tornam-se nossas. Daqueles que têm a cicatriz do adeus no olhar. Daqueles que jamais serão integralmente felizes. Daqueles que se sentirão traidores quando esboçarem o tal sorriso. A vida passa a ser uma montanha cinzenta e escorregadia. Estamos no pico. Estamos no topo. Só nos resta deslizar, escorregar. Por mais que demoremos a chegar ao vale no fundo dessa montanha, a memória do que nos deixou assombrará sempre os dias mais claros, mais alegres, mais felizes. A morte começa quando deixamos de ouvir a voz e de sentir o toque daquele que amamos. De tudo se sentirá falta. A morte pode ser longa, mas se ainda não começou, não tardará a deitar-se contigo na cama que será ainda mais fria.

Rui Sobral