“A Criação Literária — Poesia e Prosa”, de Massaud Moisés, consagrou-se como a principal introdução à teoria da literatura de que dispõe o leitor brasileiro. Embora se apoie em vasta bibliografia estrangeira, o autor não se limita a repetir pontos de vista alheios e estabelece seus próprios conceitos.
Se é difícil admitir-se que se possa ensinar Literatura, como observou Fidelino Figueiredo (1889-1967), o ensino da atividade crítica pode ser algo ainda mais questionável. Mesmo assim, ensina-se. E quem quiser pode aprender muito. É o que propõe “A Criação Literária – Poesia e Prosa” (Cultrix, 2012), de Massaud Moisés, obra anteriormente publicada em três volumes, um dedicado à poesia e dois à prosa, que acaba de ganhar uma edição revista, atualizada e unificada.
Concebida originalmente sob o título de “Introdução à Problemática da Literatura”, a obra, cuja primeira edição é de 1967, mereceu sucessivas impressões e constitui o melhor manual de teoria literária produzido no Brasil. Não é de admirar que ainda seja largamente utilizado nos cursos de Letras.
É claro que a imensa maioria que recorre a este livro — que é, acima de tudo, didático — é formada por aqueles que almejam uma carreira no magistério na área de Letras. Mas este livro é fundamental mesmo para quem quer seguir uma atividade cada vez menos prestigiada nestes dias, a de crítico literário.
Até porque esta não é uma carreira profissional e ninguém sobrevive como crítico ou resenhista de livros nem sobreviveu em outros tempos. Agrippino Grieco (1888-1973), grande crítico literário e ensaísta, que viveu seus últimos dias no subúrbio carioca da magra aposentadoria de ferroviário, sempre lamentou o tempo que perdera analisando obras de autores que considerava inferiores a ele em talento. Mas, se não constitui uma carreira profissional, a atividade ao menos serve não só para bem ocupar as horas de ócio como acumular erudição e, melhor ainda, estimular e exercitar os neurônios, o que, na idade madura, pode ajudar a retardar as manifestações do mal de Alzheimer. Já não é pouco.
Para piorar, nestes dias que correm, as revistas e suplementos literários, praticamente, desapareceram. E os que sobreviveram, diante de tantas dificuldades econômicas, não costumam remunerar seus colaboradores. O último, justiça se faça, que ainda pagava por colaboração era o suplemento “Caderno de Sábado”, que desapareceu no começo do século 21, numa daquelas crises periódicas pelas quais passou o “Jornal da Tarde”, de São Paulo, até o seu fechamento às vésperas do Dia de Finados de 2012.
Seja como for, se ainda hoje há jovens que, contrariando a vontade paterna, queiram iniciar-se nesta atividade e tenham disposição e espaço para ler e guardar a infinidade de livros que editoras e autores vão lhe enviar pelo correio, para estes não há outro caminho que não seja começar por “A Criação Literária”. Afinal, por aqui, vão aprender que o verso é só uma maneira de marcar melhor a narrativa, ou seja, “é mero instrumento da narrativa, que assume valor absoluto”.
Portanto, verso não significa poesia, como sabe quem lê literatura de cordel ou os contos em versos de Geoffrey Chaucer (c.1343-1400) ou de La Fontaine (1621-1695). Na verdade, diz Moisés, a “poesia é a expressão do ‘eu’ por palavras polivalentes, ou metáforas”. São expressões que, como observou Octavio Paz (1914-1998), em “O Arco e a Lira” (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982), foram classificadas pela retórica e chamam-se, além de metáforas, comparações, símiles, jogos de palavras, paronomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas.
Essas expressões verbais têm ritmo próprio, ou seja, são o próprio ritmo, o mundo da alma do poeta. Não se deve, porém, confundir ritmo com cadência. Para Moisés, “a cadência participa da formulação do ritmo, mas não o determina: na verdade, o ritmo engloba a cadência, como o todo implica a parte”. Já o ritmo, diz, constitui “a sucessão de unidades melódico-emotivo-semânticas, movendo-se na linha do tempo”.
É por isso que pode haver poesia em textos armados em versos ou em linhas cheias, ou seja, numa crônica, conto ou em qualquer outro texto, por exemplo, “El Jardín de Senderos que se Bifurcan” (1941), de Jorge Luis Borges (1899-1986), que Octavio Paz define como poema. Segundo o poeta, nesse relato, “a prosa se nega a si mesma: as frases não se sucedem, obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são presididas pelas leis da imagem e do ritmo. Há um fluxo e refluxo de imagens, acentos, pausas, sinal inequívoco da poesia”. Em outras palavras: estamos diante de uma prosa poética.
Já poema em prosa é, antes de tudo, “poema”, como diz Moisés, ou seja, a sua meta consiste na expressão da poesia, enquanto na prosa poética o objetivo do ficcionista é “recriar o mundo, inventando uma história e suas personagens, ainda que numa atmosfera de permanente lirismo”. Poemas em prosa são pequenas peças líricas em que toda a primazia é do “eu”, isto é, o poeta volta-se para dentro de si, “fazendo-se ao mesmo tempo espetáculo e espectador”. Como exemplo, leia-se fragmentos do “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa (1888-1935).
Nenhuma dessas formas, porém, confunde-se com o poema de forma livre, em que, segundo Moisés, o metro cede lugar ao ritmo que, sem a cadência imposta pela forma fixa, torna-se “a própria alma do verso”, na definição de Antonio Candido, em “O Estudo Analítico do Poema” (Terceira Leitura). Como exemplo, leia-se “Oito Elegias Chinesas” (Edições Descobrimento), poemas traduzidos por Camilo Peçanha (1867-1926), um dos precursores do Modernismo português.
O que sustenta as “Oito Elegias Chinesas” é o ritmo, que espelha também toda a inquietação e as alterações do espírito e da sensibilidade do poeta/tradutor. Livre da camisa-de-força da forma fixa, Peçanha, como tradutor, sentiu-se à vontade nos poemas/traduções para colocar toda a tristeza de sua alma de autoexilado em Macau que se identificou com a anima de poetas chineses desterrados do tempo dos Ming (1368-1628). Para tanto, foi mais longe na subversão das formas poéticas tradicionais, suprimindo rimas, fazendo cortes bruscos, reduções inesperadas ou prolongamentos desmedidos — inclusive, adotando soluções da prosa como a divisão silábica.
Mas não é só para elucidar estas questões ligadas à teoria da poesia, aparentemente difíceis, que serve este “A Criação Literária”. Vai mais longe ao analisar também as formas em prosa, como o conto, a novela, o romance, a crônica e o teatro, além de outras formas híbridas e, por fim, a crítica literária, “talvez o mais espinhoso e controverso” dos problemas relativos à teoria da literatura, como o próprio autor admite.
Professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, Massaud Moisés foi professor visitante nas universidades de Wisconsin, Indiana, Valderbilt, Texas, Califórnia e Santiago de Compostela. Alguns dos seus livros, consagrados à teoria literária e às literaturas em vernáculo, constituem referência obrigatória para estudantes e estudiosos destas matérias como evidenciam as sucessivas edições que têm merecido “História da Literatura Brasileira”, “A Análise Literária”, “Dicionário de Termos Literários”, “A Literatura Brasileira Através dos Textos”, “A Literatura Portuguesa Através dos Textos”, “Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira”, “A Literatura Portuguesa”, “Fernando Pessoa: o Espelho e a Esfinge” e “Machado de Assis: Ficção e Utopia”, todos publicados pela Cultrix, “A Literatura Como Denúncia” (Íbis) e “As Estéticas Literárias em Portugal” (Editorial Caminho), entre outros.
Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.