Até que ponto realidade e ficção se podem misturar tem hoje expressão quando, como diz José Gil logo na abertura do seu Portugal Hoje: O Medo de Existir, «Depois de assistirmos às notícias sobre raptos, assassinatos, acidentes de viação, mortos palestinianos e israelitas, descobertas de centenas de vítimas taliban asfixiadas em contentores no Afeganistão (…) O apresentador sorri largamente, pisca mesmo um olho cúmplice aos telespectadores».
Apesar de estas e outras imagens desfilarem à nossa frente no écran, se acreditássemos no que estamos a ver teríamos um ataque de pânico ou acharíamos que o mundo é tão mau que não valeria a pena viver nele. Mas, como diz ainda José Gil, pensamos que «É lá longe que tudo acontece» e nós, enquanto jantamos com o televisor ligado, discutimos o último atentado como se estivéssemos a falar de algo passado noutro planeta ou, mais propriamente, num tempo diferente do nosso.
Estamos, pois, no campo da ficção. É um erro partir do axioma básico de que realidade é o que existe e ficção o que temos capacidade de imaginar. Mil e um discursos filosóficos há em torno desta questão, mas basta-nos pensar no adágio que diz que a realidade ultrapassa quase sempre a ficção, para nos surpreendermos com a forma como a ficção tem muito mais de real do que podemos ser levados a crer. E uma das maiores ficções que trazemos dentro de nós são as nossas vivências passadas. Escrever é, antes de mais, trabalhar a memória, esse tesouro que Vergílio Ferreira dizia ser a infância.
Um dos livros que nas últimas semanas me veio parar às mãos redescobre, reinventa e projecta o passado pessoal do autor, e o que mais instiga a leitura é a forma límpida e honesta como as histórias, propositadamente autobiográficas, são narradas. António Cadete Leite nasceu no Porto, em 1934. Formou-se em medicina e acabou por dividir-se entre Portugal e Angola. O livro de que estamos a falar chama-se Dar Sentido ao Tempo, e é o terceiro volume em que o autor olha o seu passado, desta vez com especial enfoque na infância vivida no Porto das décadas de trinta e quarenta, um Porto que à luz dos nossos dias tinha, afinal, mais de rural do que se poderia imaginar.
Um passado distante, portanto. O título do livro, aliás, não é escolhido ao acaso. O exercício de dar sentido ao tempo implica o ponto de vista de um narrador que interpreta a sua memória, o seu passado, a maior parte das vezes com um sorriso, e está a navegar – coisa estranha e extraordinária – num rio de duas correntes: realidade e ficção.
O resultado é que quando o narrador nos conta que teve de cumprir, de joelhos, uma promessa feita pela mãe tendo em vista a cura de um braço que afinal não estava partido, ou descreve o modo como o maior prazer do avô, segundo as suas próprias palavras, era «ir ao barbeiro, sentar-se comodamente na cadeira, sentir a navalha rapar-lhe a barba, ver ao espelho o seu farto bigode a ser aparado», perguntamo-nos por que razão tantos ficcionistas continuam a ter necessidade de a cada página inventarem uma história mais mirabolante que a anterior, que de tão fantásticas a maior parte das vezes perdem o interesse.
São ou não ficção as histórias que Cadete Leite conta na primeira pessoa, indo buscá-las à sua infância? Real mesmo talvez seja o enredo, que apurado pelo tempo se restringe ao indispensável. E ainda bem. A história da criança que levou um bofetão do pai por deixar um pão virado ao contrário na cesta, por exemplo, poderia emocionar-nos se contada em tempo real, mas quem dá sentido a este e outros episódios é um homem que se auto-ficciona, e que ao fazê-lo deve ter-se deixado amiúde surpreender por essa entidade que ao longo da vida mais nos espanta: o passado.
Dar Sentido ao Tempo, António Cadete Leite, 2013, edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto
Outras obras de ficção do autor:
Memórias Coloniais, 2008
Como Vivi a Guerra em Quipedro – Angola no ano 1963
Luís Carmelo