35º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Devaneios oportunos… Alimento literário. Bachelard! Ah, companheiro das fantasias impossíveis! Inúteis, por que não? Do sonho quando o jovem ao entrar no mar encontra o crânio sem encéfalo. Onde foram parar os pensamentos tão bem guardados dentro da caixa óssea? Mas há registros, tatuagens sobre a ossatura, que permitem saber a origem do ser que habitava um quase cofre, não fossem as artimanhas da memória e os abalos sísmicos dos sentimentos. Viajou alguns quilômetros antes de ser encontrado. Pelos traços, podia-se definir a distância da origem. Talvez alguma vítima de hábitos canibais. Em que tempo? Pouco importa. No devaneio, todos os tempos coexistem. Na mudez e tortuosidade da massa encefálica encontraremos tantas cavernas quanto moradas, tantas histórias quanto personagens, tudo é transitório, passatempo. E resta o mar com sua voz quase inaudível, os arrecifes a quebrantar a impetuosidade das ondas, o céu invertido sobre as águas, o verde criado pelas algas, os pensamentos e o imaginário… O que é deles quando se morre? Não longe, um siri vira os olhos para trás. Não é o que fazemos quando dormimos? Mirar o traseiro, como contemplar de uma janela os fundos da cidade, com seus varais e intimidades, suas antenas e segredos. Que mundos nos visitam nas madrugadas? Ao agonizar a matéria, permaneceremos sonhos? O que de nós sonha? Qual é o real? Ser o outro, o que observa as facetas estéticas que habitam a insensatez onírica. Às vezes me pergunto de onde surgem estas idéias e frases semoventes. São tantos os personagens que não sabia dentro! Ainda há pouco um deles me ignorou, nem preciso dizer, todos perceberam. Dentro uma vontade louca de tragar. Também, de nada adiantaria pedir cigarros… A canseira e o catarro com cheiro de podre levaram-no a parar o vício. Depois disso, desinteressou-se pelos fatos da vida. As correspondências acumulam-se há meses sobre o móvel. O que haveria naquelas cartas? Curiosidade pertinente, elas provocam. Estamos sempre esperando por notícias de quem distante. Boas ou más. Não importa. Mas ele não liga. Necessidade nenhuma de sentir-se da tribo. Perceberia o bafo, não fosse o tempo a nos separar. Somos indiferentes, um à presença do outro. Nem sempre foi assim. Observo-o enquanto abre o primeiro botão da camisa, percebo a umidade em suas axilas e costas, o quanto está cansado, dedos no teclado, ele pega a vasilha e sai na direção do animal, um gato envelhecido, rabo torto e pelo ralo. Nega minha presença. Nem sempre… Melhor respirar um pouco, fugir do mofo. A escuridão e a fumaça são companheiras do desvario. Faltam-me cigarros. Melhor sair para comprá-los. Os dedos merecem um descanso e aqui ninguém cobra pela nicotina alheia. Preciso terminar o texto, um mês de atraso. Há duas horas lendo o mesmo parágrafo, à procura de alguma ideia: Tinha a impressão de ter reconhecido o estranho. Não era só isto, porém. O pior era que sabia que o mundo o conhecia; conhecia-o até muito bem. Tinha-o visto noutra ocasião… Sim, tinha-o visto em algum lugar e não fazia muito tempo… Até sabia o seu nome completo. Sem dúvida, por preço nenhum deste mundo, diria aquele nome…

Estou saindo! Digo alto. Ninguém responde.

 

(continua)