O andar cabisbaixo identifica o monstro. O monstro nascido hoje. Morto em breve. A fome, nestes dias, é coisa zero, matéria nula. A noite será passada num inferno diferente. O frio, vestido de vermelho, está pronto para as facadas e os passos desamparados cantam silêncios. Os cartões – apaixonadamente encharcados. O monstro dele irá lembrar-lhe passados longínquos e aí, nessa tortura, tornar-se-à mais mártir que nunca. Ele, um comum sem-abrigo, sentirá que o natal não é para todos. Felizmente. O natal morreu. Uma morte nunca anunciada.
O natal é um país que cheira a podre. Um lugar onde os joelhos suportam feridas. Onde os corações são dentes separados. Nunca a celebração será honesta! Desde o motivo às constatações, aos costumes. O natal é uma merda espetacular.
Os lacinhos e os embrulhinhos e as luzinhas e os bonequinhos e as corzinhas e todas essas coisinhas próprias deste período são náuseas e emanam vómitos contentes, provenientes dos transeuntes que ostentam presentes à “última ceia” – nós. O natal é uma merda espetacular.
E os velhinhos, muitos sozinhos. Oh, coitadinhos! Anseiam fins nos princípios dos “ainda não” desacreditados. Coitadinhos. E os que morreram nestes dias? E os que, sufocados, estão lá no hospital? E os que, no leito da doença, nos assombram a memória? – lembramo-nos e esquecemo-nos ao primeiro desembrulho. O natal é uma merda espetacular.
Abram alas à mentira. Ao natal. À alegria. Deixem passar as batatas e o bacalhau. Que se ligue o aquecimento ou a lareira ou qualquer coisa porque “faz frio”. Ah!, mas que se coma rápido porque as crianças – famintas – estão impacientes. Pelos presentes. Agitados. Ansiedade. Rápido! Rápido! O mundo não interessa. Lá fora? “Faz frio” – sinto muito. É natal, é natal. Saudação e luz. O natal é mesmo uma merda espetacular.
Rui Sobral