A obra é lançada hoje, dia 23 de Maio, às 18.30, na Livraria Leya na Barata, Av. Roma, Lisboa.
“Depois eu regressava ao trabalho e ela ficava ali na poltrona de couro, a olhar pela janela, vendo a paisagem, os carros, as pessoas a fugir da chuva ocasional, táxis, um cão vadio, uma mãe a passear a criança, o par de namorados de mão dada, o homem do casaco a falar ao telemóvel, o polícia diminuído pela presença das outras forças de autoridade. Sofia via tudo pela janela e já não lhe restava esperança. Passara da meia-idade embora não o confessasse. Ninguém o diria. Tomava conta de si. Fizera pequenos retoques, malabarismos da estética. Todas as semanas espiava-se num espelho de um estúdio de Pilates ao Chiado e, depois, numa máquina, puxava molas e respirava pelas costas, alongando o corpo até a um limite em que a dor era ainda suportável. A professora dizia-lhe muitas vezes que a elasticidade que possuía, com aquela idade que ninguém lhe dava, era invejável. Os pés enfiados nas pegas, as molas a fazer contra-peso e a professora
As pernas direitas, na diagonal, para a janela, inspira, as pernas
para o lado, expira para as trazeres de volta à posição inicial. Traz as
pernas pela força da barriga, quero esses músculos internos a trabalhar.
Sofia cultivava uma vaidade disfarçada com uma meninice que lhe permitia prolongar uma certa ideia de si mesma. A traição chegava-lhe apenas nas mãos; cheias de manchas, sinais inesperados, irregulares, meias à mostra. Teria gostado de viver um pouco mais. Era nisto que ponderava enquanto olhava pela minha janela, ouvindo-me teclar no computador. Alguém lhe dissera que o prédio da editora fora construído à prova de tudo
Sismo
Fogo
Terramoto
Inundação
Bomba
Era uma mulher atenta aos acontecimentos. Sabia o resultado de todas as operações combinadas. Intuía-o. Era, afinal, filha de militar, um homem grande que fizera a guerra em países distantes e em todos os sítios para onde o mandaram: uniforme impecável, rações limitadas, bacalhau pelo Natal, quinze dias de licença. Uma folha de serviço de fazer inveja. Era só a vida de um homem dedicado a obedecer. O pai de Sofia reformara-se tarde, aos setenta e oito anos, cravejado de medalhas e outras distinções. Rumara à província e deixara-se ficar a ver o mar. Até ao fim, avisara a filha dos inúmeros perigos, do quadro alargado de tensões mundiais que levariam, um dia, por fim, à destruição de tudo o que conhecíamos como construção do Homem. O pai de Sofia dizia
Será sempre pior que Guernica, pior que o nazismo, que os genocídios
africanos, que todos os 11 de Setembro, que a Guiné e o Darfur juntos,
pior que todas as ditaduras derrubadas ou por derrubar. Prepara-te,
filha, ainda será no teu tempo de vida.
Sofia ouvia, calada, e desvalorizava. O pai estava a ficar senil, pensava. Confundia-se e perdia objectos. Desenvolvera uma fixação, súbita no entender da filha, pela história do Partido Comunista. Uma organização datada, que historicamente perdera o interesse e razão de ser. Era assim que definia o partido para quem quisesse ou não quisesse ouvir. Era capaz de falar várias horas de seguida e, depois, adormecia. Não era o mesmo homem. Mirrara. Sofia observava o pai com alguma ironia. Fora sempre um pai severo, cheio de regras, apesar de terem, entre si, apenas duas décadas de diferença. Sofia cedo se tornou rebelde, contestatária, libertina e até, porque não dizê-lo?, perversa. Na verdade, como ela afirmava, era apenas um clássico dos cânones da psicologia.
Vê bem a minha falta de originalidade. Segui o modelo: pai castigador,
filha rebelde. O que dizer? Nada. Nada a dizer.
Quando o pai foi a enterrar, Sofia chorou como uma criança.
Na ausência do pai, Sofia compilava informação e, nessa medida, passou a estar ciente da velocidade dos acontecimentos. Não se admirou com a chegada dos militares. Não pestanejou quando começaram os ataques. Queria ter ficado à janela do meu
escritório, mas tão-pouco previu a violência que a atingiu no dia em que, oficialmente, o inferno devastou a Terra.
Aconteceu como sempre dissera: acabou sozinha. Quando tudo rebentou, Sofia decidira passar uns dias na aldeia. Levava consigo umas folhas impressas a preto e branco, uma coisa tirada da net sobre o sistema de cura havaiano Ho’oponopono. Eu brincara com o nome e considerei que a minha amiga corria o risco de perder o pé. Sofia explicou que estava fascinada com o poder da auto-cura, com a ideia de todos serem um e ainda com uma pequena oração interior capaz de remeter o Mal para a Luz.
Quando me sinto mal, digo o Ho’oponopono: sinto muito, perdoa-
me, amo-te, obrigada. É como um mantra, se quiseres. Dá-me paz
e acredito que tenha efeitos à minha volta.
Dois dias depois desta conversa, na véspera do fim, num assalto interior de coragem, Sofia mandou um e-mail
Escrevi isto. Desculpa. Deve ser uma merda. Mas é um conto e tu és editor, por isso to deixo. Acho que vais gostar. Se for muito mau, não mo digas, não aguento qualquer espécie de dor, mesmo as do ego. Beijos de amor S”.
Patrícia Reis
Patríca Reis, Por Este Mundo acima (romance)
A obra é lançada hoje, dia 23 de Maio, às 18.30, na Livraria Leya na Barata, Av. Roma, Lisboa.
Im.: PPPPP
Cr.: http://www.domquixote.pt
Ficha Técnica:
Título: Por Este Mundo acima
© 2011, Patrícia Reis e Publicações Dom Quixote
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Nuno Carvalho
Este livro foi composto em Rongel,
fonte tipográfica desenhada por Mário Feliciano
Capa: Maria Manuel Lacerda
Fotografia da capa: © Christophe Dessaigne / Trevillion Images
Fotografia da autora: © Daniel Mordzinski
Paginação: Filipa Gregório | Atelier 004
1.a edição: Maio de 2011
Depósito legal n.o 325 206/11
ISBN: 978-972-20-4634-3