Departamento de Achados e Perdidos

Um astrônomo consagrado classificou as estações

ferroviárias como astros; planetas anões presos à

terra por artérias metálicas costuradas a outras

estações, estes corpos celestiais provocam no

passageiro a sensação de viajador, manifestação

sucessivamente repetida mediante a abertura do tampo

de um computador portátil afixado ao colo individual

por força eletromagnética. A classificação de

planetas gigantes ou anões, astros, cometas e

meteoros varia conforme o humor de um ou mais grupos

de astrônomos com preferências por certos quadrados

universais e é sabido que corpos remanescentes de

estrelas com massa suficiente tornam-se esféricos

pela própria gravidade, assim são os homens.

Entre um e outro universo, se o viajante caminhar

léguas suficientes encontrará uma portinhola,

acompanhada de uma janela vazia e na iminência do

abandono por um funcionário de roupas servis e

encardidas, um maltrapilho das instituições públicas

sem voz/ com sono/ sem ânimo/ com sede e fome/ do

sexo masculino e detentor de um caderno de anotações

magnânimas no qual declara o valor de ítens achados

e perdidos. O funcionário Carvalhosa[1]retém poder

nas mãos macilentas: devido ao sucesso nas provas

concursais, compete-lhe determinar o destino dos

seguintes bens alheios perdidos nos vagões dos

trens:

1. O chapéu de feltro do doutor José Serafim

2. A bolsa de uma rapariga sem documentos que a

identificassem

3. A caneta de um escritor pretensioso e anônimo

4. O mapa das fábricas de queijo sem casca no

interior da França, e,

5. Um mole de chaves presas a um cadeado de

ferro.

Para Carvalhosa estes objetos pouco significam

embora listados em seu caderno e automatizados no

sistema integrado de achados e perdidos das linhas

férreas universais e catalogados sob diferentes

critérios. Ao menor toque, o perdedor insere o

nome do bem deixado para trás e aguarda por alguns

segundos a tela despertar lembrança e existência.

O funcionário cujo sonho seria uma manivela do tempo

insiste que a incorporação das coisas e pessoas

por motores semi-pensantes subtrai a essência pois

no momento em que um nome ou um objeto passam a

integrar a tela de um computador desaparecem do

mundo real para viajarem na esfera misteriosa de uma

ou mais nuvens chamadas virtuais, um céu recriado

humanamente recriado.

Em questão de pessoas, Carvalhosa, destes poetas

nutridos pelo funcionalismo, resolve reaver uma

antiga e querida professora de literatura que

rabiscava sonetos de Camões no quadro negro com giz

e arredondava a letra num capricho de jardineiro.

Consuelo Maria, das unhas laqueadas de escarlate,

do corpo robusto de matrona e ao Carvalhosa

desafiou a máquina de busca até encontrar a data

do óbito. Ah se a houvesse procurado com alguns

meses de antecedência e expressado a gratidão pelo

movimento braçal da professora na sala de aula e

cumprimentado-a pela caligrafia e os contos de sua

autoria os quais não lera. Na mesma semana, como que

por coincidência, Carvalhosa recebeu da rede social

mais abrangente a atualização de calendário de um

querido amigo Francisco G., aquele que traduzira

uns poemas magricelas e esfomeados do Carvalhosa,

e Carvalhosa decidiu aceitar e parabenizar o amigo

mortiço pelo aniversário. No coração a mágoa

doía, a morte do Francisco fôra doída, uma noite

de suspense entre respirar e parar, os anticorpos

em guerra consigo e o Carvalhosa ia a distância,

consciente das anotações burocráticas do guichê

do departamento de achados e perdidos no fundo da

estação ferroviáriaLa Gare au Nord.

Isto cansa, isto me cansa, queixou-se o Carvalhosa

com a faxineira da pequena sala depósito. Meu nome

é Maria Madalena, um dia ela se apresentou num sem

jeito, um dente faltoso, a gengiva a subir para

disfarçar o buraco, o corpo incha para preencher as

lacunas, os trens avançam para furar o ar. Maria

Madalena conseguia limpar todo o piso da estação com

um rodo e um balde de água suja, milagrosa Maria

semblante para canonização. Se o Carvalhosa fosse

capaz de gravitar afora a sua esfera seguramente se

deixaria levar pela Maria Madalena; mas o Carvalhosa

preferia (quando não estivesse sendo observado)

colocar o chapéu de feltro do senhor Serafim

sobre os cabelos oleosos e o couro seborreico,

prender o cadeado de chaves na calça imaginando-

se senhor do castelo deLoisy, anotar com a caneta

de pena de ouro e nanquim sobre o mapa da Savóia e

aguardar a aparição de um novo suplicante no guichê,

possivelmente a rapariga sem bolsa, sob a mira de um

telescópio Hubble.

[1] (em qualquer busca virtual basta colocar-se

o nome deste indivíduo de infância e mãe mortas

há dezenas de anos e descobrir que ele habita

antecipadamente o céu virtual @ skydrive.com)

Katia Gerlach