OS OLHOS DE MAIAKÓVSKI

Estou numa exposição do artista russo Aleksandr Ródtchenko. Fotografias, colagens, capas de livros.

Entro agora na sala onde estão fotos que ele tirou de seus parentes e amigos.

E, de repente, lembro.

Meu Deus, vivi ali, naquela época, sim, na Rússia, um pouco antes e um pouco depois da Revolução de Outubro.

E convivi com essas pessoas.

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Vou examinando os rostos tão familiares do próprio Ródtchenko e de sua mulher, Varvara Stiepânova. E aqui estão as do crítico de arte Óssip Brik e da mulher dele, Lilia.

Paro, emocionada, diante das fotografias de Vladimir Maiakóvski.

Seu rosto intenso e sombrio, um rosto de louco, talvez, está voltado para diretamente para mim, num reconhecimento.

– O que foi feito de você, Nora? – Ouço-o perguntar.

Por que será que ele me chama de Nora?

Continuo com meus olhos fixos nos seus. Que sensação estranha!

Quem foi Maiakóvski para mim?

Irmão, amigo, amante? Os olhos dele me sugam, me arrastam. Continuo aqui, nesta sala, mas em que outra dimensão?

Ouço um leve ruído, percebo que há alguém atrás de mim. E me viro bruscamente, esperando deparar com Vladimir.

Mas não é ele, e sim Lilia Brik. Sou dominada pelo ciúme. Por quê?

Lilia não é propriamente bonita. Mas tem rosto doce, agradável, muito feminino.

E um corpo bem modelado.

Agora vou lembrando. Mesmo enquanto ele estava comigo, todos diziam que era ela o grande amor de Vladimir Maiakovski.

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Lilia me toma pelo braço e me conduz para a área externa da casa.

Passamos por uma parede de espelho, no corredor – e me vejo, de relance. Minha imagem não é mais a mesma.

Sou outra mulher, que identifico, de repente.

Sim, sou Nora Polonskaia, atriz, casada. Fui amante de Maiakóvski, por mais de um ano, até a morte dele, aos 36 anos, quando eu tinha apenas 23.

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Fui uma das três mulheres da vida de Vladimir. Houve a russa branca que morava em Paris, Tatiana Iacovleva, para quem ele escreveu um longo poema.

A outra, Lilia Brik, seu grande amor, como diziam todos, agora puxa meu braço, com uma raiva mal disfarçada, fazendo com que eu me afaste do espelho e continue a andar a seu lado.

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Vou lembrando de tudo, cada vez mais claramente. Passei com Maiakóvski sua última noite vivo. E tivemos uma briga terrível, porque eu não queria deixar meu marido.

Ele tinha esse trauma – seduzia as mulheres, mas não conseguia levá-las para sua companhia.

Eu e Lilia nos sentamos agora a uma das mesas em torno da piscina da bela casa onde funciona o centro cultural com a exposição de Ródtchenko.

Em frente, um painel de azulejos. Adiante, a floresta que cerca e invade o Rio.

Ainda é cedo, o lugar está vazio, não há ninguém nas outras mesas que pudesse estranhar nossas roupas de época e a conversa em russo.

Lilia me diz:

– O que você está fazendo aqui? Por que voltou? Era a mim que ele amava, não a você. O tempo inteiro, era a mim que ele amava. Infelizmente, quando Vladimir morreu, eu estava em Londres, com Óssip. Se estivesse em Moscou, quem sabe impediria que se suicidasse. Já tinha impedido duas vezes, antes.

– Claro, você estava sempre com Óssip. Não quis deixá-lo para ficar com Vladimir – cheia de espanto, ouço a mim mesma responder.

Faço uma pausa, mas continuo:

– Você sempre o colocou em segundo plano. E, quando me conheceu, foi a mim que ele passou a amar. Vladimir me pediu em casamento. Mas fui fraca, tive medo. Tinha medo até de que alguém descobrisse meu caso com ele. Ah, eu queria aceitar seu pedido, devia ter aceito, mas não tive coragem. Minha situação com meu marido era boa. Vladimir era sedutor, mas tão instável. Quem poderia adivinhar o que faria no dia seguinte?

Lilia me olha com raiva crescente.

– Nunca senti ciúmes de você, como não sentia de Tatiana Iácovleva. Dizem que ele também a pediu em casamento. Mas era tudo para tentar fugir de mim. Era a mim que Vladimir queria. Mas eu não conseguiria separar-me de Óssip. Quando o conheci, eu tinha 13 anos. Nosso relacionamento não era o de um homem e uma mulher, ia muito além disso. Óssip não tinha ciúmes de mim. Vladimir, sim. Óssip sabia que eu nunca o deixaria.

Digo, com desdém:

– Vocês três vivendo juntos, na mesma casa, um ménage à trois que causou escândalo, mesmo na Moscou liberada da moral burguesa.

– Não houve ménage à trois. Quando me tornei a mulher de Vladimir, deixei de ser a mulher de Óssip, continuamos juntos apenas como irmãos.

– Lilia, você pode tentar enganar a quem quiser, a mim não engana. Você e sua irmã, Elsa Triolet, sempre foram umas coquetes, mulheres fáceis, que ostentavam um verniz de cultura apenas para seduzir os intelectuais e artistas e viver livremente no meio deles, dormindo com quem quisessem.

– Elsa se casou com Aragon e ela o amava – responde Lilia, ofendida. – Polonskaia, eu não tive ciúmes de você, mas uma coisa não lhe perdoo. Você passou a noite com Vladimir e o abandonou, deixando que se matasse.

– Eu já tinha saído do quarto, quando ouvi o tiro. Estava no corredor daquele maldito prédio da Travessa Lubiánski. Sabia que não adiantava voltar, que estava tudo encerrado. Já antes, vez por outra, ele falava em suicídio. O revólver só tinha uma bala, mas ela se alojou bem em seu coração. Vladimir deve ter ensaiado muitas vezes aquele gesto final. Seu bilhete de despedida talvez fosse escrito com antecipação. “Como se diz, o caso está encerrado. Estou quite com a vida.” Mais ou menos isso. Não voltei ao quarto, não queria que ninguém soubesse do nosso caso. Só mais tarde me contaram os detalhes. Eu era tão jovem. O suicídio de Vladimir me deixou infeliz pelo resto da vida.

– Ele parecia disposto a atender ao chamado de outro suicida, o poeta Iessenin – diz Lilia, aparentemente mais calma. – “Até logo, até logo companheiro,/Guardo-te no meu peito e te asseguro:/O nosso afastamento passageiro/É sinal de um encontro no futuro.”

Ela se cala, ficamos ambas em silêncio.

De dentro da casa vem uma voz de homem que grita o nome dela. Eu a reconheço, é de Vladimir.

Sim, ele tinha feito sua escolha, como Lilia disse. Foi a ela que Maiakóvski sempre quis.

Por ela, matou-se.

Mas não apenas por ela. Estava marginalizado, desprestigiado, como todos os seus amigos, depois da consolidação de Stalin no poder.

Os membros da vanguarda russa deixavam o país, mas talvez ele se sentisse sem forças para isso.

Lilia se levanta e vai correndo para dentro.

Fico sentada ali fora por mais alguns instantes, olhando para piscina azul.

Depois, também sigo para a entrada lateral do prédio. Ao passar pela parede espelho, quem devolve meu olhar já sou eu mesma, neste final de ano de 2010.

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Meio tonta, vou até o estacionamento, entro em meu carro, dirijo de volta para meu apartamento.

Mais tarde, abro um livro que comprara dias antes sobre a arte e a vida de Ródtchenko.

Leio algumas informações sobre os últimos anos de Lilia Brik.

Depois que Óssip morreu, ela se casou com V. Katanian, biógrafo de Maiakovski. E se suicidou aos 86 anos.

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À noite, sem conseguir dormir, leio em voz alta, para mim mesma, alguns poemas de Vladimir.