Poema «Bicho»‏ | Vera de Vilhena

 

 

«(…)

Não há o desplante de uma grande frase

Quando somos bichos roedores, de barriga cheia,

A quem não importa a chuva, o vento, o frio, a tempestade.

Ela ali está, do lado de fora, mas não nos atinge,

Já que andamos assim, como esquilos regalados.

Tudo pode ser até mais do mesmo, a vida,

Os frutos que já tínhamos na mão sem vontade de comer,

Sem ver; e é agora um pequeno manjar, um doce paraíso crocante,

O corpo leve, no torpor, na protecção de uma fina cúpula

Que a felicidade tece à nossa volta.

É dia 5 e ando nisto.

Tenho a casa do avesso e a alma organizada,

No desarrumo de gavetas e salinhas invisíveis,

No festim dos sentidos, na celebração de um lado luciferino

E narcisista que não permite o desconforto da consciência.

Essa, a consciência, anda algures, soterrada

Num montículo de nozes descascadas e,

Se não se acautela, o diabo ainda a come também.

(…)

As horas não cabem na cova de um dente.

E, na beatitude destes dias, escuto, ao longe,

O eco dos queixumes mais patéticos –

– Não da verdadeira miséria humana, que essa,

Sendo pobre, não tem voz – e fujo

A enfiar a cabeça no conforto da minha toca…

Porque ando assim, como bicho,

E os bichos não mordiscam o caroço às filosofias.»

(Vera de Vilhena in “Fora do Mundo”, Poética Edições, Dez 2014)